Cinema no Netflix: Da 5 bloods, um filme de Spike Lee
No final dos anos 80, início da década seguinte, os filmes de Spike Lee estreavam e desencadeavam discussões quentes e apreensão nos EUA. Receava-se que ateassem violência. Sem internet, um filme bomba tinha de ter tonelagem para conseguir enviar uma onda de choque além do seu ponto de impacto. E os filmes dele conseguiam esse efeito. Ainda assim, algumas linhas dedicadas aos filmes de Lee que ia conseguindo ler por cá não eram suficientes para perceber até que ponto se estava a tornar relevante. O tempo veio permitir a conclusão de que o realizador (também actor, argumentista e produtor) não era um simples provocador, mas alguém com capacidade para fazer tremer as raízes da hipocrisia americana em relação a temas difíceis. Lee anda a fazer filmes há muito tempo, conseguiu um Oscar honorário e outro pelo argumento de BlacKkKlansman. O seu estatuto está hoje assegurado, quer como pioneiro, quer como agitador de consciências, para uns incómodo, para outros necessário, para outros, dispensável.
Do the right thing, aquele que me fez descobrir o seu nome, logo seguido de Jungle Fever, traziam às salas a questão racial, a desigualdade, ou as relações inter-raciais, a música de Stevie Wonder. Não sei quem mais por essa altura pegava assim no racismo, no preconceito, na violência, no sexo. Se eu fosse uma afro-americana teria adorado descobrir esse cinema. Como portugueses, que ao tempo tão pouco se sentiam identificados com o cinema português que aparecia nas salas, (e hoje, como estamos?) imaginem o que teria sido descobrir um realizador nacional que vos falasse da vossa realidade, da vossa história, do vosso ser e sentir por imagens realmente decifráveis e relevantes. Eu, branca, desde lado do Atlântico, também gostava de assistir aos filmes de Lee e de conhecer os seus actores - Samuel L. Jackson, Giancarlo Esposito, John Turturro, Schiorra, Washington...Eles eram uma porta para uma realidade que desconhecia e isso já valeria o preço do bilhete.
Até hoje recordo-me bem desses dois filmes. Do the right thing é um filme de ficção que na origem tem factos reais: assassinatos motivados por racismo. O tom provocatório do mesmo tornou-se assinatura de Lee numa época em que assuntos polémicos eram facilmente ultrapassados no grande ecrã por histórias inócuas, populares, ao género de Driving Miss Daisy, propostas incapazes de "incendiar" a opinião pública mas que eram o entretenimento ganhador. Vi o filme, creio que no Tivoli, em Coimbra, e foi fácil identificar-me com o que tinha presenciado, uma história de desigualdade e frustração, sem parcialidades ou comentários morais. O cinema de Lee não era só para uns, era para todos, todos os que o quisessem ver de mente aberta, sem preconceitos. Foi o que eu achei na ocasião, um cinema honesto.
É provável que, em tempos recentes, muitos que viram esse filme se tenham lembrado da personagem do Radio Raheem, o homem do radio e do discurso sobre as mãos direita e esquerda, a do amor e a do ódio, sempre em luta, que morre sufocado às mãos de um agente da polícia. Da ficção à realidade. Teria Lee estado à frente do seu tempo? Ou apenas ficcionara uma realidade que desconhecíamos e que nos era estranha? Nesse tempo a realidade era muito mais simples, pelo menos para os cinéfilos menos informados: se havia poucos realizadores a mostrar-nos a vida da comunidade afro-americana nos bairros dos EUA, e parece que hoje ainda não há suficientes, o que não havia era um clamor generalizado sobre essa ausência na indústria, ou sobre a falta de papéis relevantes para os actores negros, ou, histórias de qualidade que espelhassem o seu viver segundo a sua óptica, ou protestos na passadeira vermelha, ou discursos que estragam a festa do cinema, como alguns dizem. Essa ainda não era uma discussão, essa era uma polémica ainda por ganhar forma, pelo menos, não fora do meio onde se moviam os poucos realizadores que, com seus filmes bomba, ousavam quebrar o círculo da branca quietude de Hollywood.
Entretanto o mundo deu uma volta, ou duas, o cinema outra volta, e os Festivais, os Prémios, os Oscars começam a ser criticados por serem demasiado brancos. E de repente uma jovem poetisa afro-americana, Amanda Gorman, sobe a um palco numa tomada de posse de um Presidente, brilha ao recitar um poema maravilhoso, que encanta o mundo inteiro, e de repente, a bomba: é notícia que o poema não pode ser traduzido por uma (premiada) jovem escritora holandesa porque esta é muito branca, não é activista e não tem consciência negra. Uma escritora holandesa, negra, protesta a escolha da própria Gorman num artigo, talvez online, que é onde hoje se inflamam as massas. A qualidade da tradução é relegada, o que importará doravante é o sexo, a idade, a militância negra. Se isto não é confundir cultura com ideologia e politiquice, não sei o que será. Mas o fenómeno multiplica-se e o poema também não pode ser traduzido por um homem branco catalão, e é possível que a história não termine aqui. "Eles não questionaram as minhas capacidades, mas procuravam um perfil diferente, que tinha de ser uma mulher, jovem, ativista e de preferência negra. Se não posso traduzir uma poetisa porque é uma mulher, jovem, negra, americana do século XXI, também não posso traduzir Homero porque não sou um grego do século VIII a.C. Ou não poderia ter traduzido Shakespeare porque não sou um inglês do século XVI". Reforço, para quem não saiba, que em causa não estavam quaisquer qualificações técnicas dos tradutores: a questão é a da identidade. Em choque, eu própria começo a perguntar-me, 30 anos depois ter visto Do the right thing, se tenho o direito de ler os poema de Gorman, e, quem sabe, se daqui a uns tempos, poderei ou não entrar numa sala de cinema para ver os filmes de Spike Lee, ou de outros realizadores negros. Afinal sou branca, como poderei perceber a realidade que Lee me quer mostrar? Este rumo das coisas deixa-me perplexa e até confusa, e até triste. Não sei como será o futuro, mas este caminho não me soa a conquista alguma e antes a retrocesso.
É provável que, em tempos recentes, muitos que viram esse filme se tenham lembrado da personagem do Radio Raheem, o homem do radio e do discurso sobre as mãos direita e esquerda, a do amor e a do ódio, sempre em luta, que morre sufocado às mãos de um agente da polícia. Da ficção à realidade. Teria Lee estado à frente do seu tempo? Ou apenas ficcionara uma realidade que desconhecíamos e que nos era estranha? Nesse tempo a realidade era muito mais simples, pelo menos para os cinéfilos menos informados: se havia poucos realizadores a mostrar-nos a vida da comunidade afro-americana nos bairros dos EUA, e parece que hoje ainda não há suficientes, o que não havia era um clamor generalizado sobre essa ausência na indústria, ou sobre a falta de papéis relevantes para os actores negros, ou, histórias de qualidade que espelhassem o seu viver segundo a sua óptica, ou protestos na passadeira vermelha, ou discursos que estragam a festa do cinema, como alguns dizem. Essa ainda não era uma discussão, essa era uma polémica ainda por ganhar forma, pelo menos, não fora do meio onde se moviam os poucos realizadores que, com seus filmes bomba, ousavam quebrar o círculo da branca quietude de Hollywood.
Entretanto o mundo deu uma volta, ou duas, o cinema outra volta, e os Festivais, os Prémios, os Oscars começam a ser criticados por serem demasiado brancos. E de repente uma jovem poetisa afro-americana, Amanda Gorman, sobe a um palco numa tomada de posse de um Presidente, brilha ao recitar um poema maravilhoso, que encanta o mundo inteiro, e de repente, a bomba: é notícia que o poema não pode ser traduzido por uma (premiada) jovem escritora holandesa porque esta é muito branca, não é activista e não tem consciência negra. Uma escritora holandesa, negra, protesta a escolha da própria Gorman num artigo, talvez online, que é onde hoje se inflamam as massas. A qualidade da tradução é relegada, o que importará doravante é o sexo, a idade, a militância negra. Se isto não é confundir cultura com ideologia e politiquice, não sei o que será. Mas o fenómeno multiplica-se e o poema também não pode ser traduzido por um homem branco catalão, e é possível que a história não termine aqui. "Eles não questionaram as minhas capacidades, mas procuravam um perfil diferente, que tinha de ser uma mulher, jovem, ativista e de preferência negra. Se não posso traduzir uma poetisa porque é uma mulher, jovem, negra, americana do século XXI, também não posso traduzir Homero porque não sou um grego do século VIII a.C. Ou não poderia ter traduzido Shakespeare porque não sou um inglês do século XVI". Reforço, para quem não saiba, que em causa não estavam quaisquer qualificações técnicas dos tradutores: a questão é a da identidade. Em choque, eu própria começo a perguntar-me, 30 anos depois ter visto Do the right thing, se tenho o direito de ler os poema de Gorman, e, quem sabe, se daqui a uns tempos, poderei ou não entrar numa sala de cinema para ver os filmes de Spike Lee, ou de outros realizadores negros. Afinal sou branca, como poderei perceber a realidade que Lee me quer mostrar? Este rumo das coisas deixa-me perplexa e até confusa, e até triste. Não sei como será o futuro, mas este caminho não me soa a conquista alguma e antes a retrocesso.
Embora tenha deixado de atender à opinião dos críticos de cinema, em especial aqueles que não me ajudam a expandir a minha percepção sobre as imagens e apenas se limitam ao comentário banal e genérico, que também sou capaz de fazer, retive a má impressão do Eurico de Barros sobre Da 5 bloods, e de cada vez que passava pelo cartaz do filme na Netflix, passava à frente. Passava à frente sobretudo porque, um pouco como tendo a ver qualquer coisa que tenha o selo A24, também fujo dos filmes com carimbo Netflix. Até agora foram poucos os que considerei realmente bons. Mas este fim de semana apeteceu-me finalmente ver Da 5 Bloods, afinal sempre vi os filmes de Spike Lee e não era por ser produzido pelo Netflix que ia deixar de o fazer.
Em Miracle of St.Anna, Lee já tinha filmado uma história de quatro soldados negros que sobrevivem a um ataque nazi num povoação italiana na IIª Grande Guerra. Agora traz-nos de novo uma história com quatro soldados, desta vez quatro veteranos da guerra do Vietname que se reencontram muitos anos depois, para resgatar os restos mortais do seu líder e companheiro de armas. Quando já se pensava que o filão de histórias sobre esta guerra se tinha esgotado, Lee conseguiu escavar mais uma história dos escombros desse drama, e até usa deliberadas referências a filmes que nos ficaram na memória: a música "Cavalgada das Valquírias" ou o nome "Apocalipse Now" para um bar, a paleta desmaiada de tons nas imagens que remetem ao passado dos veteranos. Todavia, desde logo somos alertados para o facto de que o combate mais importante das vidas destes homens talvez não tenha sido travado. O filme abre com uma montagem de fotos de personalidades e factos históricos destinada a demonstrar que enquanto nos EUA decorria uma guerra pela conquista de direitos civis e Martin Luther King morria, assassinado, os irmãos, os "bloods", estavam deslocados a combater um inimigo que tinha mais em comum com eles do que a história que lhes tinha sido vendida pelo Governo. Lee também faz uma crítica aos filmes do Rambo, ao herói branco solitário, que resgata prisioneiros brancos na selva, que ele diz serem "imaginários", afinal uma crítica ao cinema dos brancos que esqueceram que naquela frente de combate a maioria dos soldados eram negros. Até Crispus Attucks, morto no Massacre de Boston, é invocado para reforçar o longo sacrifício que os negros fizeram pelos EUA, pela bandeira, sempre à espera de um reconhecimento que tardava. Os sentimentos dos quatro soldados perante este lanço de história, a questão do stress pós traumático, do falhado regresso à vida normal, e a flama do seu inspirado líder, - cujos restos mortais pretendem recuperar, a par de um tesouro, - teriam bastado para justificar este filme. Mas a estas fundamentais e "incendiárias" questões outras dinâmicas são introduzidas: a previsível ganância que uma caça ao ouro sempre desperta, disputas familiares, relações amorosas, perseguições e deambulações, que acabam por tornar o filme desnecessariamente longo.
Da 5 bloods perde, em virtude disso, a coesão narrativa, porque se dispersa e balança entre tom e géneros de forma um pouco questionável, misturando o filme de guerra, a caça ao tesouro, comentário social, mas ainda assim é capaz de nos motivar reflexões necessárias e até de nos proporcionar bom entretenimento. Da 5 bloods conta com boas interpretações dos principais actores, uma boa banda sonora, bem conjugada com a utilização das canções de Marvin Gaye. O seu pecado maior é realmente, um pouco à semelhança do que sucede no referido Miracle in St. Anna, de jogar com demasiados assuntos ao mesmo tempo, não sendo capaz de sustentar até final a sua aposta mais séria e questionadora, que é também a mais interessante. Para uns, obviamente para quem o elegeu como o melhor filme de 2020, - o que apenas descobri quando fiz uma busca pelo cartaz para subir aqui- isso não parece ter feito diferença. Mas para mim, menos teria sido mais.
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