Sou Marciana desde 2019


Sou Marciana desde Maio de 2019. Já se tinha notado qualquer coisinha, não? Começando pelo princípio. Portugal do séc. XXI vai ficar marcado pela fuga dos cérebros. A emigração de portugueses altamente qualificados banalizou-se de tal modo que já nem se fala disso. Por exemplo, aquele seu vizinho que nunca o cumprimentava e que parecia andar sempre com a cabeça na Lua, esse mesmo? Quando foi que o viu pela última vez? Ah, o confinamento, e tal? Já não sai de casa há um mês? Não, ele não está confinado, e não, não morreu com Covid. Era um cientista português de alto gabarito, muito desempregado, cujo cérebro fugiu e o levou na mala.

Mas a notícia que fez notícia, e que já não faz por ser banal, não conta toda a verdade. Para isso estou cá eu. Há bastantes mais cérebros a fugir. Só que deixam os corpos para trás, por aí, a olhar para ecrãs, a levitar. São cérebros comuns, que cumprem, mas que se decepcionaram com os seus donos. Foram em busca de vida melhor. O pior é os donos não se aperceberem disso. Como é que nós percebemos isso? Sempre que aparece um corpo falante a produzir insanidades, sem noção alguma, eis-nos na presença de uma cabeça oca, um barco sem timoneiro. É dramático, ora reflitam lá no assunto, se ainda tiverem cabeça. Evidentemente, nem todas as acções precisam de ser comandadas por um cérebro. Por exemplo, as esponjas marinhas fazem coisas. Têm cérebro? Não, não têm. Mas isso não deverá confortar ninguém. Só elas é que se podem gabar de não ter cabeça e de ainda assim, existirem mais ou menos. Eu, contrariamente, só vejo a crónica de uma morte anunciada que qualquer um deles podia escrever, ou postar, ou vlogar, se tivesse consciência. 

Ora, não sendo eu uma portuguesa altamente qualificada, vir a fazer parte dessa tal estatística do séc. XXI português não me ralava. Mas perante a constatação deste crescente fenómeno paralelo comecei a recear uma fuga do meu cérebro. Num primeiro momento fiquei revoltada com a potencial traição do orgão máximo do meu corpo mas depois acabei por reconhecer que nem sempre o trato com o cuidado que devia. Durmo pouco, bebo demais, não leio muito, há anos que não resolvo palavras cruzadas nem sudoku, os frutos vermelhos são caros, suplementos, idem, os peixes são nossos amigos, etc, etc. O pobre tem razões de sobra para se pôr a milhas. Imaginei como seria o torpor de não poder acordar para os maiores disparates, nem sequer poder morrer de vergonha, nem poder cair em mim, viver para sempre no limiar da inconsciência, sem noção do ridículo, que espectáculo triste esse não seria. Assim, para escapar a esse eventual embaraço, resolvi antecipar-me: Marte era uma oportunidade única!

Inscrevi-me nas missões intra-planetárias da China, dos Emirados Árabes Unidos e da Nasa. Como numa nota de rodapé do cardápio da minha ancestralidade constavam as façanhas duns tais que deram novos mundos ao mundo, e também porque Portugal foi o primeiro a reconhecer os EUA como um país, somos uns autênticos old buddies, - é para isto que serve a história, para meter cunhas espaciais, - os engenheiros da NASA lá me arranjaram um lugarzito no porta-bagagens. Assim é que desde 2019 tenho um pé em Marte e outro na Terra.

Se teme que o seu cérebro lhe fuja, se receia começar por aí a espalhar enormidades, sem noção, a fuga para Marte é a solução. No planeta vermelho as noites são tão frias que o seu cérebro não terá nunca coragem de o abandonar: sem o seu calor humano, definharia! E a gravidade é tão reduzida que sentirá menor peso na consciência por ter voltado as costas à Terra mãe que nos criou. E o melhor de tudo é que com todo este treino de confinamento, nem sentirá sequer falta de espaço durante a viagem! Já somos 12.000 orgulhosos Marcianos de Portugal. Por que espera?

 (Agora a sério. A NASA tem sempre umas boas brincadeiras para nos aproximar dos seus programas espaciais. Foi possível, por exemplo, enviar o meu nome para Marte, num chip, na Preserverance, receber um boarding pass, um patch, e ter acesso ao desenvolvimento da missão num site repleto de informação e curiosidades. Podem inscrever o vosso nome para futuras missões. Procurem no Google por Send Your Name to Mars. Vemo-nos por lá, ok? ;) )

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