Alimentos processados. Nem é carne nem é peixe


Vi agora mais um anúncio. Coxinhas "Chicken style" e Croquetes "Beef style", lê-se nas embalagens. Torci logo o nariz ao inglês, eu sou torcida, já me conhecem. É para dar "estilo"? Sim, eu sei que o termo é empregue como "variedade". Sei inglês de viagem, ok? Mas gosto mais que comuniquem comigo na minha língua. Já perceberam do que se trata: é mais uma cena congelada, alternativa à proteína animal.

Todas as crianças têm embirrações com certos pratos que aparecem na mesa, eu também tinha, mesmo se não havia grande folga para queixumes dessa ordem. A minha mãe limitava-se a dizer, mesmo sem levantar os olhos do seu prato: "Belinha, faz de conta que é bife." Eu era bem mandada, fazia de conta, mas a magia não acontecia: o peixe cozido era peixe cozido. Tinha peles prateadas e pretas, viscosas, e espinhas. Escorregava no azeite por entre batatinhas, que também não me cativavam especialmente. O peixe era meu inimigo. Eu já sabia e tomava cuidados. Mas uma vez por outra uma espinha dissimulada lá conseguia entrar-me na boca e ferrar-me. Um ai! seguido de choro convulsivo e desproporcionado assinalou algumas vezes a vitória do peixe sobre a gengiva mimosa. O sangue que mal se via era compensado por lágrimas abundantes e a refeição logo interrompida para exame cirúrgico com pilha eléctrica destinado a remover a maldita. Os meus pais não encontravam nada. Acabava por ser eu a extraí-la, entre funguice mimada e soluços, a examiná-la entre os dedos antes de a atirar para o chão de mosaico negro com raiva, para que a sua memória dorida se perdesse na escuridão do chão. "Bochecha com água, vá. - dizia a minha mãe. - Faz de conta que é remédio. "

O "faz de conta" era uma solução à prova de tudo no manancial de técnicas maternais para lidar com as contrariedades do meu crescimento e consequente desapontamento com o mundo. Também hoje o "faz de conta" não pára de se inventar na indústria alimentar. Este anúncio mostra atraentes pacotinhos coloridos. As fotos bem repuxadas no Photoshop fazem o impossível: antecipam o momento de degustação ideal daquelas coisas moldadas em forma de coxinha e de croquete a partir de pastas informes. Prometem mais do que alguma vez as coxinhas e croquetes de trigo, ervilha e ovo serão capazes de oferecer. Mas as pessoas compram a ilusão e quando não corresponde encontram uma desculpa: é o Photoshop, esse demónio!

Não faltará quem vos diga que até comer insectos é mais nutritivo e saudável do que ingerir estas coisinhas moldadas por máquinas automatizadas. A Angelina Jollie é uma enorme entusiasta da bicheza. Apenas uso o nome dela por ser conhecida das massas e também porque se fosse usar um nome tailandês ou cambodjano vocês não iam prestar atenção. As pessoas que comem insectos não têm conta. E mais: dizem que são gostosos, crocantes. Ela e os filhos devoram insectos voadores e rastejantes, pelo menos desde que estiveram no Cambodja. Há quem diga que o mundo civilizado está muito atrasado nesse aspecto: temos mais de 1000 possibilidades comestíveis à espera e andamos por aqui a comer as bolas do tio Jerónimo. O tio Jerónimo ainda não despertou para a entomofagia. Um dia vocês também lhe vão comprar insectos, e até eu. Mas por enquanto o tio quer é dar uma solução a quem não quer ser cúmplice na morte de bichinhos, ou apenas comer menos carne. Comer insectos é coisa que vos causará decerto maior repulsa do que comer comida de faz de conta com sabor e textura de carne. E eu até vos entendo, mas mais depressa comeria grilos fritos comprados nas ruas de Singapura do que coxinhas Chicken Style! Mas eu sei que não posso ser exemplo para ninguém: eu comi bananas amarelinhas, laranjas, ou peixes de plasticina moldados com dedicação culinária pelas minhas mãos miúdas! Moldava as refeições para as minhas bonecas e depois dispunha os pratos de plástico à roda de uma mesa de brincar. É claro que a mãe de todos também tinha de se alimentar. Na minha imaginação não havia diferença entre a comida de plástico e a da cozinha da minha mãe.

Eu era, apesar de tudo, uma criança com boa boca, e, curiosa, gostava de experimentar as iguarias novas. Há até uma história de que passei do leite materno para o arroz de tomate, que o meu pequeno estômago recusou todas as papas lácteas! Mas um dia trinquei um conta gotas de vidro que encontrei pela casa. Hoje já não se fabricam, foram substituídos pelo plástico. Sempre gostei de pensar que essa mudança foi motivada pela minha aventura dramática. Dizem que os bebés usam a boca para explorar. Às tantas eu tinha um atraso de desenvolvimento e continuei a servir-me da boca para explorar o mundo em vez de usar o meu cérebro. Sempre que examino esse marco dramático da minha infância fico perplexa: afinal nem sequer gostava muito de alimentos crocantes! Inclino-me para que tenha sido um teste de materiais. Era o meu espírito científico infantil a afirmar-se, o mesmo que me fazia encerrar insectos em frascos de pickles até à morte. Ou então, mais simplesmente, eu apenas gostava de morder. Mordia lápis e esferográficas até ficarem no esqueleto. Lá está: teste de resistência de materiais. Gostava muito do sabor da madeira ensalivada. O plástico era uma porcaria insípida. Já os lápis de cera tinham um apelo mais exótico! Também mordia as pernas à minha mãe. Gatinhava direito a ela toda animada e ferrava o dente. Era pequena mas tinha uma mordida poderosa. As cicatrizes ainda hoje confirmam. Também não encontro razão para tal, talvez fosse a minha maneira de demonstrar afecto. Afinal partilhava as minhas migalhas de pão e lascas de maçã com os insectos cuja morte haveria de causar. Nunca pensei que estava a ser cruel até porque não havia crianças más.

A ideia de comer plasticina também vos poderá causar aflição mas mas a mim afligem-me mais as experiências de paladar oferecidas pelo tio Jerónimo. Entendo que como qualquer criança gostamos do que nos dá prazer, - o bife! - evitamos o que nos exige sacrifício - o peixe cheio de espinhas tinhosas! Então a solução mágica dos tempos modernos para o problema dos que querem deixar de comer carne sem renunciar ao sabor e à textura da carne, é fazer de conta que se está a comer carne! Alinhar neste jogo do faz de conta é uma brincadeira de crianças, possivelmente até lucrativa, que não consigo engolir. Como é que os adultos compram esta ilusão sem se sentirem ludibriados? Estou convosco, acreditem, pelo direito de não ter sangue nas mãos quando se sentam à mesa. Há muitos anos que não encerro bichinhos em frascos de pickle. Mas, por favor, não envergonham o reino vegetal desta maneira. Não faltará quem vos diga que por cada coxinha Chicken Style do Jerónimo que vocês comam, uma desapontada curgete comete suicídio na zona de frescos...

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