Quero ir a S.Paulo comprar uma casa ao lado do mar
De tempos a tempos encontro pessoas vocalmente afinadíssimas que têm essa capacidade de falar com extrema inteligibilidade que me parece cada vez mais incomum e nem sequer cultivada. Alguns, poucos, concordarão comigo que a fala humana é também uma espécie de música. Se ninguém duvida que as palavras são musicais, umas mais do que outras, já é possível discordar que em banais conversas se possa ouvir a sua canção. Por isso entendo que é normal, quando lhes digo que é maravilhoso poder ouvir todas as sílabas, julgarem que estou na brincadeira, ou que sou dada a galanteios esquisitos, uma maluqinha das letras, enfim, alguém que não deve ser levada muito a sério.
Em crianças talvez nos tenhamos divertido com trava-línguas do tipo "O pinto pia, a pipa pinga. Pinga a pipa, pia o pinto. Quanto mais o pinto pia mais a pipa pinga." A brincar estávamos a exercitar a fala sem saber. Devem existir razões que expliquem porque tantos deixam de fazer a devida articulação verbal responsável pela produção de fonemas, vogais e consoantes. Os movimentos coordenados dos órgãos fonoarticulatórios, língua, lábios, mandíbula e dentes, tornam-se então preguiçosos em maior ou menor grau: mascamos os sons, comemos as sílabas, engolimos as palavras como comprimidos, com ar à mistura, sem respirar e sem ritmo. Mas se ninguém engorda a falar, poucos quererão saber de uma aeróbica da fala que tonique as palavras e lhes devolva a pujança perdida. Que isso seja preocupação dos que fazem da voz o seu ganha pão ainda vá; que eu, que nem sequer sei escrever me vá preocupar com isso, é gozarem comigo. Impensável dedicar precioso tempo a uma rotina para corrigir e aperfeiçoar a dicção, treino que ainda por cima não queima calorias, me dirão, mas, digo eu, que os poderia tornar mais elegantes aos ouvidos de outros, sedutores até.
Ora, um destes dias, apanhei boleia para Leiria, o meu amigo estava a ouvir uma canção que se chama São Paulo. O som abafado arrebatou-me quando abri a porta, hip-hop, uma batida gira, embalando a viatura num certo nevoeiro sonoro, um potencial êxito nacional, sibilou ele, como se aquilo fosse um segredo bem guardado que estava a partilhar: "êguerigotigoãsanpal"..."ganhásentimentnaumvale"...qualquer coisa que não entendi...."comprar uma casa ao lado do mar"...Nacional mas eu não conseguia perceber uma frase inteira e convenci-me de que estava constipada dos ouvidos, quem sabe Covid. Os apoiantes do Trump também andavam a cantar o Killing in the name (Rage against the machine) euforicamente sem perceber o sentido das palavras e eu ri-me. Mas agora estava quase na mesma situação: "êguerigotigoãsanpal...ganhásentimentnaumvale..."
O meu amigo disse-me que o artista nacional se chama Yuri e à noite fiz o caminho até ao Youtube para ver se percebia como é que o Yuri ia fazer para comprar a casa ao lado do mar, em São Paulo, pois eu também gostava. Mas continuava surda. Nova busca, desta feita pelas palavras, pela letra. Não, não estou aqui a apontar o dedo ao hip-hop que o Plutónio é bem explicadinho. Ou sequer ao Yuri: que tenha muito êxito e seja muito feliz, que vá a São Paulo, que compre o cavalo em vez do Ferrari - mas é melhor que não o afogue quando se cansar porque a PETA não vai perdoar - beba o whiskey com Cola, fique no sol e fume a erva toda, que isto, de resto, está tudo tão mau que até a mim me apetecia fumar um baseado e sair da zona. Mas, que diabo, não é bué de estranho que eu consiga perceber melhor o Sinatra do que o Yuri, que canta na minha língua?
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