São João 2020: para esquecer ou para recordar?
Quando iniciei o confinamento voluntário em Março disse a alguns amigos do Porto que fizessem o sacrifício, que ia valer a pena, ou corríamos o risco de ficar sem festa de São João. Tinha seguido atentamente o desenrolar da situação na China e em Macau e pensava que nos livraríamos do vírus, ou, pelo menos, destas limitações à nossa normal movimentação e interacção pessoal antes do Verão. Também acreditava que no Inverno o vírus regressaria, mas possivelmente enfraquecido devido a alguma mutação e com a vantagem de muitos de nós já estarem naturalmente imunizados o que lhe trocaria as voltas. A cada dia a informação acumulava-se, estudos sobre estudos surgiam como cogumelos. Mas a sensação de que era preciso tempo para que os estudiosos conseguissem reunir todos os dados e tirar conclusões ponderadas impunha-se. Rapidamente concluí que apenas perdia tempo em vez de me esclarecer ao dedicar-me a tantas leituras.
A pandemia desenrolou-se, semanas tornaram-se meses. Após muitas leituras de opiniões diferentes, e até contraditórias, percebi que o cenário não era promissor ainda que os números o fossem, e que continuaríamos a viver sujeitos a certos transes por largos meses. Também a cada novo país para onde a infecção se expandia, alguns tornando-se o novo epicentro da mesma, se repetiam as questões, e em alguns casos mais do que o alarmismo até o absurdo de situações. O ciclo de acontecimentos repetia-se. Rever tudo aquilo a que já se assistira antes desgastava-me e sobretudo dava-me a impressão de que estávamos longe do fim da crise, da serenidade, da normalidade perdida. Por fim, em termos de novidade já nem as fontes oficiais acrescentavam nada que não se soubesse, ou davam o dito por não dito, num processo normal de adaptação a novos dados, mas fastidioso e desgastante, e em última análise pouco útil. Perante essa avalanche de impressões que em vez de esclarecerem me confundiam e lançavam dúvidas até sobre algumas convicções que já levavam meses, passei lentamente a deixar a pesquisa de lado e a concentrar-me apenas em duas coisas: fazer o possível para me proteger da infecção e aos outros, próximos e mais distantes, seguindo as instruções básicas que tinham sido divulgadas pela OMS ou pelas autoridades de Macau logo no início do surto. E a Covid 19 passou a ser apenas a realidade concreta com que tinha de viver o meu dia-a-dia e não a realidade do mundo inteiro trazida pela internet em vagas sucessivas e comentada nas redes até à saturação, numa espécie de competição pela pole position na grelha das estratégias, em cada teclado um especialista em opiniões, muitas que o tempo quase sempre derrubava, algumas próximas da realidade que, afinal, se afigurava bem mais desafiadora do que se previra.Também os meus afazeres me forçaram a desligar de tudo o que não fosse essencial, até mesmo da escrita diletante aqui no blogue.
E, quase de repente, é véspera de São João. Estamos no Verão, ainda inaugurado de fresco, mas já a correr diariamente alheio a todas as nossas aflições e com o seu habitual convite à nossa entrega à sua luz revigorante e calor. Mas o panorama continua carregado e sombrio por mais janelas abertas e vestidos de tecidos leves e florais que se vistam. Nas notícias há relato de zonas do país, sobretudo em Lisboa, onde os casos de Covid 19 dispararam e pedidos de uma cerca sanitária para evitar o alastramento da infecção. Ou de festas de aniversário no Algarve que escaparam da mão aos organizadores e que promoveram a infecção de grupo, assim acabando por suscitar a censura e a condenação da maioria generalizada por representarem um mau exemplo de conduta cívica em tempos de pandemia e um risco para a saúde pública.
No Porto há muito que o São João tinha sido "oficialmente" cancelado. Li, na ocasião, a declaração institucional disso mesmo com incredulidade. Ontem vi num site da TV um excerto de uma notícia: era o relato da ausência total de preparativos sanjoaninos na zona da Ribeira por parte de donos de bares e restaurantes: a palavra de ordem é manter a distância social. Que coisa esta. O São João é a festa maior da proximidade: na noite de São João toda a gente se conhece e trata por tu. O distanciamento social desaparece e acreditamos que podemos ser todos amigos, até o distanciamento emocional é esbatido. Não há forma de festejar mantendo o distanciamento, não há meio termo na noite de São João: o que mais importa é estarmos juntos. A sala de estar é pequena demais por maior que seja. O terraço e até o pátio. As paredes não são mais bem vindas. Então o espaço público é conquistado metro a metro: a cidade enche-se de gente. É essa a essência da festa. Mas não em 2020. Um São João diferente nos aguarda, esta noite, um sem a espontaneidade popular que o caracteriza. Esta noite as ruas repletas de gente que por uma noite deixam de ser estranhas e de se estranhar, a vitória da familiaridade, não vai acontecer. Fica adiado o grande encontro na rua, que a Covid 19 quer vazia de gente e de emoções. Que estranho vai ser não ouvir o som dos martelinhos até ao nascer do sol.
Resta festejar o São João em modo familiar. Cá por casa fiz questão de caprichar nos pormenores e logo à noite não vão faltar nem as decorações e acessórios da festa nem as típicas sardinhas, a salada de pimentos assados com tomate e cebola, a broa, a sangria, a cerveja bem geladinha e até um copo de verde. Vamos todos para fora, na nossa varanda, e cá dentro, na nossa sala, porque a rua tradicionalmente cheia e festiva é hoje território proibido. Vai ser uma noite de São João muito diferente do que alguma vez imaginei mas que espero se torne tão memorável como outras que passei na cidade do Porto. Não podemos deixar de celebrar e viver o que é importante. O espírito da festa estará lá, entre quatro paredes. As saudades do futuro, sem distanciamentos de nenhuma ordem, também.
Desejo um bom São João aos meus amigos do norte e a todos os outros que também o festejam em alguns outros pontos do país.
Comentários
Venho em retribuição agradecer por você ter se interessado a conhecer, visitar, seguir meu blog e acompanhar as minhas postagens nele.
Eu também estarei acompanhando seu blog e suas postagens e comentando aqui, conforme o possível, a partir de agora. :)
Já gostei de alguns conteúdos que eu vi por aqui e por ser um blog que já está há mais de uma década no ar, torna-se ainda mais precioso para mim. Eu realmente acho e vejo os blogs mais antigos, com mais tempo no ar, como referências e até influência, inspiração, para quem começa a entrar e se aventurar nesse mundo. São modelos.
Seu apelido(?) me lembrou o apelido de uma das personagens de um livro que eu reli nesse ano, meses atrás, a Belinha, cujo time de voleibol do qual fazia parte ia disputar um campeonato no Peru. O livro chama-se 'Aventura no Império do Sol', de Sílvia Cintra Franco. Eu falei sobre o livro em meu blog depois que o li. Acho que não sou boa com resenhas, mas me dispus e tentei fazer a desse livro, entre outras que já me aventurei e tenho me aventurado a escrever para o blog.
O São João já passou, mas espero que você tenha tido boas comemorações; mesmo em isolamento social.
Eu também sempre gostei das festas (e comidas típicas) do São João e me divertia e me deliciava sempre nessas épocas nas festas realizadas pelas escolas onde estudei.
Um abraço.
~Cartas da Gleize. 💌