Dark: a temporada 3 estreia hoje!
Na Netflix.
"Nós não somos livres nas nossas atitudes
porque não somos livres nos nossos desejos." - Jonas
(1ª temporada)
Não costumo ver séries televisivas mas neste ano, excepcionalmente, já assisti a uma meia dúzia e visto menos filmes. Queria ter escrito sobre cada uma delas, ou pelo menos das que mais gostei, por exemplo, The end of the fucking world. Não tive oportunidade mas hoje consegui vir cá deixar umas notas sobre Dark, talvez desnecessariamente: a popularidade de Dark não pára de aumentar e eu apenas vi a primeira temporada. Numa votação recente feita apelo site Rotten Tomatoes a série que estreou em 2017 de mansinho e sem grande alarido bateu algumas candidatas bem sérias como Black Mirror, que também vi, ou The Crown, que não vi. Trata-se de uma produção alemã, com actores alemães, falada em alemão e filmada na Alemanha. É uma votação algo histórica quando é sabido que são quase sempre os produtos anglo-saxónicos que costumam conquistar o público.
A votação fez acender uma rivalidade online entre fãs de Stranger Things e de Dark. Não entendo bem esta competição cerrada entre séries tornada tão frequente nos últimos anos entre "fãs" quase em jeito clubístico. Não sinto necessidade de rankings, não estou no negócio da produção, nem da premiação: estou apenas a consumir entretenimento. É, muitas vezes, difícil comparar produtos quer sejam semelhantes e ainda mais quando são muito diferentes. Cada um, à sua maneira, pode ser excelente. Para quê teimar em hierarquizar? Esta lógica dos concursos, de haver um vencedor e uma resma de vencidos, é uma paranóia inútil. Mas há gente que vibra com isto. Por outro lado também houve acusações de cópia por parte dos fãs da série americana. Abundam, de facto, as comparações online com Stranger Things, talvez fruto de julgamento superficial já que as semelhanças entre as duas não querem dizer quase nada: são mínimas. São as diferenças entre as duas que as definem e não as semelhanças. A série alemã é mais adulta e mais dramática, investe muitíssimo mais na caracterização das personagens e na atmosfera, criando uma experiência muito mais envolvente e rica em termos psicológicos. Creio que as suas questões de fundo serão também mais profundas e problemáticas, envolvendo teorias científicas, religião e filosofia, e outro nível de desafios para o espectador. Desisti de Stranger Things após a primeira temporada, não porque fosse má ou não tivesse gostado, mas porque não me entusiasmou assim tanto e preferi ver outras propostas. Bem esgalhada, sem dúvida, mas quando pensei que os miúdos iam crescer, eventualmente se perdendo a componente mais interessante da série, a sua dinâmica infantil e cúmplice, comecei a "fazer filmes" decepcionantes sobre o que me esperaria nas temporadas seguintes e optei por outras. O tempo não perdôa: o universo infantil-adolescente cederia a um outro juvenil-adulto. Também o factor "nostalgia" que parece ter cativado tantos pelo transporte para os anos 80 me passa um pouco ao lado apesar de ter vivido os anos 80. A época dos Walkman e seus hits musicais, populada por crianças protagonistas de aventuras, parecem ter sido uma fórmula mágica, fascinando audiências de todas as idades, um pouco à semelhança de Super 8, de J. J. Abrams, no cinema, de tal forma que agora existem imensas séries com miudagem e algumas insistem em buscar inspiração nos anos 80, embora nem todas consigam ser brilhantes. De Dark não desisti mas interrompi, apeteceu-me fazer um intervalo para espreitar grandes êxitos já antigos que não tinha visto, - Peaky Blinders, ou Fleabag, por exemplo, - ou algumas séries sugeridas por amigos, - Giri /Haji, Trapped, The leftovers - já que há tanto para conhecer neste universo e formato que não costumo consumir.
E, entretanto, os meses foram passando e hoje chega o epílogo de Dark, não se falando de outra coisa nas redes. Terei de deixá-la em stand-by pois tenho de ainda ver a segunda temporada antes de conhecer o desfecho. É bom saber que não haverá mais temporadas. Menos é mais, em muitas circunstâncias, mas criadores há, bastantes, que não conseguem resistir fazendo com que boas séries se arrastem e terminem sem o brilho inicial.
Como vejo muitos filmes de ficção científica - dos mais antigos aos mais recentes, dos puros aos que cruzam géneros, como Source code, Interstellar, Predestination, Safety not guaranteed, 12 monkeys. Primer, Arrival, e há pouco James Vs His future self - as histórias de viagens no tempo não me são estranhas nem os seus paradoxos. Mas em Dark a arquitectura da narrativa é particularmente intrincada e complexa. Pensem em algo como Interstellar, de Christopher Nolan. É essa a toada tal como Stranger Things estaria para Super 8 de J.J. Abrams. A primeira temporada pediria até um revisionamento pois tenho a certeza que agora encontraria detalhes que me escaparam e relações que podia ou, às tantas, devia ter feito e não fiz. Nela se procede à apresentação das personagens e mistérios, através de um jogo lento e calculado com precisão de relojoeiro. A cada episódio pensava até começar a fazer um esquema com os nomes dos membros de cada família: Doppler, Nielsen, Kahnwald e Tiedelmann! Mas depois encontrei uma "árvore" no Reddit! (Vejam a imagem abaixo.) A complexidade que resulta dos pulos temporais e relações entre personagens e viajantes no tempo vai aumentando à medida que as revelações se sucedem, obrigando a bastante ginástica cerebral! Lentamente vamos juntando as peças e entendendo, mas pouco, pois logo surgem mais pistas e desafios. Para ver Dark é preciso estar confortável com algum nível de perplexidade já que no termo do último episódio eu acumulava desconfianças e poucas certezas. Não é apenas por não ter entendido o que vi, é porque a série não quer que entendamos ainda.
Nos primeiros episódios, a cidade fictícia de Winden, na Alemanha, é palco de eventos dramáticos: um homem suicida-de e crianças desaparecem. É, realmente incrível descobrir por que razão ele se suicida, acreditem. E isso será apenas o princípio. Começamos por seguir a jornada de Jonas, o filho do suicida, que quer descobrir o porquê da morte do pai, e também a de um polícia, Ulrich, que quer descobrir onde está o seu filho desaparecido, acabando por fazê-lo até à margem da investigação policial que decorre: o seu irmão já tinha desaparecido 33 anos antes e agora situação similar se repete. A partir daí as personagens estão colocadas nos trilhos da constante surpresa, descoberta e inquietação e nós seguimos idêntico destino.
Existem quatro famílias na cidade cujas vidas estão ligadas de forma peculiar pela possibilidade de viajar no tempo que alguma coisa dentro de umas cavernas na floresta e próximo a uma central nuclear possibilita: é um "buraco de minhoca" criado por um acidente na central. As pessoas entram ali em 2019 e podem sair 33 anos antes, em 1986. Ou em 1953... Assim, acabamos por conviver com as personagens e suas acções em diferentes épocas - presente, futuro e passado, - em diferentes fases da suas vidas - crianças, adultos e idosos - ao mesmo tempo.
A série tem um tom sombrio e angustiante que assenta num magnífico trabalho de fotografia e cenários rigorosos, que os proeminentes efeitos sonoros - o som e a edição sonora são cruciais - e banda sonora da autoria de Ben Frost reforça. Por vezes desenvolve-se mais como uma investigação policial, outras mais como uma história de mistério e sobrenatural. Explicativas e fundadoras do que acontece, as referências à mitologia, (o mito do Labrinto, o fio de Ariadne) à magia e ocultismo, (a triquetra, símbolo de presente, passado e futuro, a tábua esmeralda que aparece como uma tatuagem e gravura numa parede, e que se refere à possibilidade de transcender o tempo ou a essência de toda a matéria), a teorias várias - a teoria do eterno retorno abordada pelo filósofo Nietzche, a do buraco de minhoca capaz de distorcer o espaço-tempo e fazer uma ponte para outra dimensão, ou a da relatividade de Einstein e Rosen que nos informa da possibilidade de existirem realidades paralelas, interligadas por um caminho pelo espaço-tempo, vão sendo citadas. Também notei evidentes referências literárias - a máquina de viajar no tempo existe num livro de H.G. Wells, - e, como não podia deixar de ser, outras da cultura popular alemã, dos anos 80. O nível de representação de todos os envolvidos, crianças, adolescentes e adultos é elevadíssimo, assim como a escrita e realização. Cada episódio carrega mais mistério para a trama, - surgem pistas, indícios, novas personagens - e questões para a história do que respostas! Os segredos e as revelações bombásticas começam a avolumar-se. Ninguém é perfeito e todos têm a sua vida de alguma forma transtornada, incompleta, tocada pelo infortúnio ou insatisfação. Viver em Winden, no meio de densas florestas e chuvas copiosas, é um inferno e uma doença.
É esse adiar contínuo de desenlace que me afasta das séries de TV: enquando um filme me devolve a resolução de todos os dramas e dilemas ao fim de duas horas, nas séries tenho que visualizar uns 10 episódios até ao desfecho e ao entendimento de tudo - ou não, pois, não raro, pelo menos uma grande questão fica em aberto para nova temporada! - a que assisti. Faz parte, é certo, e agora até é mais fácil escapar a essa espera que me impacienta e desmotiva: podemos ver vários espisódios de uma assentada. Imaginem nos anos 80 em que tínhamos de esperar uma semana pelo episódio seguinte da nossa série favorita! Mas, ainda assim, quando os episódios medidos em horas se começam a somar, eu tendo a desinteressar-me e regresso ao cinema com a sua inequívoca economia de tempo e personagens. Um modelo que também aprecio é o de Black Mirror: histórias únicas com personagens únicas a cada episódio.
Apenas assisti à primeira temporada da série Dark e considero-a uma proposta de entretenimento diferente, com uma qualidade invulgar e uma singular abordagem narrativa. Quanto mais não fosse valeria a pena vê-la pela envergadura da sua estrutura narrativa embora para muitos não seja esse o apelo essencial quando se escolhe uma série. Pensar que é esse grande pormenor que a torna cativante ou então hermética e desinteressante é um erro. Há mais do que forma para nos absorver e intrigar.
Se gostam de ficção científica, não se deixem intimidar por esse constante foco na complexidade de que todos falam: caso seja necessário imprimam o esquema abaixo que ajudará bastante durante o visionamento e embarquem serenamente nesta viagem espácio-temporal! A série exige alguma paciência e atenção aos detalhes, mas não é um nenhum quebra-cabeças caótico e sem nexo. Aconselho verem até ao 5º episódio antes de decidirem se querem continuar ou abandonar "a viagem".
Comentários
https://epossivelsonhar46.blogspot.com/