O indecente ombro nu de Tracy Brabin

Secretária da Cultura, Tracy Brabin, e o indecente ombro nu.

A mulheres estão sempre tramadas. Não concordam? Estão sim. A história dá muitas voltas, mas não passa do mesmo sítio confuso onde sempre esteve: nós mesmos. Parece até que valeu a pena a Emily Davison ser apanhada pelos cascos do cavalo do rei, o Anmer, na pista de Epsom, em Inglaterra, em 1913: as mulheres afinal, votam, votam lá e votam cá. Estão no Parlamento lá e cá.  Ambos os países até já tiveram primeiros-ministros do sexo feminino. Fantástico. Perfeito!

Não sei ao certo quando li sobre a morte de Davison a primeira vez, possivelmente quando tive de preparar formação sobre os direitos das mulheres no mundo. É possível que este episódio seja vosso conhecido,  tenha aparecido naquele filme, As sufragistas, estando presente, mas não vi o filme. Mas, em todo o caso, resumo. São dadas várias interpretações do sucedido: que ela se tinha suicidado no Derby, gritando sufrágio no momento crucial, premeditando uma morte horrível à vista do Rei e da Rainha, em forma de protesto; que tinha sido um acidente, já que apenas pretendia atravessar a pista, que queria colocar uma faixa pedindo o direito de sufrágio para as mulheres na sela do cavalo do rei, mas que não calculou bem o que ia fazer, sendo derrubada. Faleceu daí a uns dias, após coma, e o seu funeral uma enorme demonstração de pesar, assistido por homens e mulheres: 5000 acompanharam, a pé, a carruagem que transportava o corpo. Para uns foi guindada a mártir do movimento sufragista, para outros rotulada como uma doida que se colocou em risco a sua vida, ao jockey - que afirmou ter vivido assombrado pelo rosto dela - e o desenrolar do evento. A luta continuou, até com recurso a fogo posto, greves de fome, vandalismo e suscitando forte repressão. O direito de voto chegaria, mas ainda condicionado, em 1918. Em 1928, foi estendido a todas as mulheres que completassem 21 anos. Nancy Astor foi a primeira mulher com assento parlamentar: 1919.

Ora, vem isto a propósito de Tracy Brabin. Ela foi eleita depois do assassinato de Jo Cox, uma política britânica, membro do Parlamento pelo Partido Trabalhista, que defendia a permanência do Reino Unido na União Europeia. Participava de um comício contra o Brexit quando foi baleada e apunhalada por um homem de extrema-direita. A sua eleição gerou menos comentário que o seu ombro nu, lá está, já não é nada de especial que as mulheres sejam eleitas para o Parlamento. Esta semana ela apareceu em Westminster com um vestido que deixava o ombro descoberto e foi tanto o chinfrim que até parece que algum Guy Fawkes tinha desta vez conseguido mandar a casa histórica pelos ares. Os britânicos nunca tinham visto um ombro nu no Parlamento e encheram o Twitter da deputada com uma avalanche de insultos. Seria que Tracy estava voltando da discoteca? Teriam os padrões do Parlamento descido assim tanto? Seria a roupa certa para usar? Não, nem para ir ao Parlamento nem para qualquer trabalho, boa só para uma discoteca. Alguém foi mais direto e aconselhou Tracy a vestir roupas a sério pois assim ela parecia uma prostituta. E outra pessoa achou que Tracy talvez estivesse a querer demonstrar solidariedade com as velhas prostitutas do distrito por que foi eleita.  Outras ainda disseram que estava com ressaca, ou pronta para amamentar, que era uma vagabunda,  uma bêbeda, que parecia que tinha acabado de fornicar em cima de um caixote de lixo.


Tracy Brabin justificou-se dizendo que porque tem o tornozelo quebrado e o pé engessado, e que por causa de não perder o equilíbrio teve de se apoiar na mesa fazendo com que o vestido descaísse um pouco. Disse também que tinha estado numa reunião de trabalho com executivos da indústria da música antes e que foi de lá para o Parlamento, para cumprir horário, e que as câmaras estão sempre lá e que nem sempre é possível vestir para a ocasião. De facto, se puderem e tiverem interesse, façam uma busca pelo nome dela e vão ver como aparece vestida no Parlamento, quase sempre de casaco.

Tracy Barbin reunida com os executivos da música
envergando o infame vestido preto

Em Westminster não existem regras precisas, um "dress code", sobre como se devem vestir os membros do Parlamento. O importante é que a roupa seja respeitosa, que seja utilizada habitualmente para tratar de negócios. A roupa desportiva não é aceite. Há até um vídeo de John Bercow a dizer que se os homens vierem vestidos adequadamente - isto é, se não usarem roupa desportiva - não é por não usarem a gravata que ele os impedirá de falar. Há membros do Parlamento que vestem casacos e camisas com bastante cor, por exemplo, e isso é considerado aceitável. Os membros devem guiar-se por um documento simples,  House of Commons Rules of Conduct and Courtesy, de onde retirei esta passagem:
O Parlamento inglês é hoje um lugar menos formal, onde se respira melhor. Mas as pessoas não querem, preferem o bafio. Reparem que até aquelas cabeleiras que os secretários de mesa usavam, e que deviam ser não apenas caras, mas quentes e decerto malcheirosas, com o passar dos dias, se deixaram de usar. Tracy não é a primeira mulher a ser apupada. As parlamentares parecem estar sempre debaixo de fogo, mesmo quando estão absoluta e formalmente dentro das regras de conduta e cortesia:  Barbara Castle, foi criticada por usar roupas garridas, ir ao cabeleireiro vezes demais, usar jóias; Margaret Thatcher,  foi criticada por ter seguido os gostos daquela, cores vivas e uma malinha que se lhe tornou característica; Theresa May,  foi criticada por usar calças de pele e sapatos que desafiavam o facto de já não ser jovem, coloridos, decorados, sei lá, eram muitos os títulos sobre os sapatos da May, demais até;  Harrriet Harman, eleita em 1982, porque usou um vestido de pré-mamã quando prestou juramento.

O Presidente da Câmara dos Comuns, que é o diretor e a autoridade máxima da Câmara dos Comuns, lugar que pertenceu a Bercow até à sua demissão no fim do ano passado, não fez nenhum reparo a Tracy nem tão pouco a impediu de falar, o que teria indubitavalmente feito se entendesse que ela estava a ser desrespeitosa de alguma maneira ao usar um vestido que deixava ver o ombro. Mas uma porção de gente sentiu-se desrespeitada! Ó pá, o indecente ombro nu da parlamentar suscitou mais polémica do que a visita da Cicciolina, uma loura política italiana do Partido Radical, e actriz do cinema porno, ao nosso Parlamento em 1987, onde, depois de ter passeado pelos Passos Perdidos e abraçado Natália Correia, puxou o seu vestido branco e folhado de ombros desnudos - dois ombros, note-se - e mostrou os pequenos seios nas galerias da nossa Assembleia da República! A sua visita relâmpago e imprevista foi mote logo aproveitado por Natália que assim escreveu:

Estava o Parlamento em tédio morno
Do Processo Penal a lei moendo
Quando carnal a deputada porno
Entra em S. Bento. Horror! Caso tremendo!
Leda à tribuna dos solenes sobe
A lasciva onorevole Cicciolina
E seus pares saudando ali descobre
O botão rosado da tettina.
Para que dos pais da Pátria o pudor vença,
Do castro bracarense o verbo chispa:
“Cesse a sessão em nome da decência
Antes que a Messalina mais se dispa.”
Mas – ó partidas que prega a estatuária! –
Que fazer no hemiciclo avesso ao nu
Daquela estátua que a nudez plenária
Ali ostenta sem pudor nenhum?
Eis que o demo-cristão então concebe
As vergonhas velar da escultura.
Honesta inspiração do céu recebe
E moção apresenta de censura:
Poupado seja à nudez viciosa
O olhar parlamentar votado ao bem.
Da estátua tapem-se as partes vergonhosas.
Ponham-lhe cuequinhas e soutiens.

Natália Correia, “Inéditos (1979/91)” ‑ “Cantigas de Risadilha” O sol nas noites e o luar nos dias. Lisboa, Círculo de Leitores, 1993 (1ª ed.)


Tracy estava a fazer uma intervenção importante sobre a ilegitimidade de certos jornalistas não poderem marcar presença numa conferência de  imprensa de Downing Street na próxima etapa das negociações do Brexit: o assunto foi totalmente ofuscado pelo seu ombro nu! Para mim isto é quase o mesmo que nos deixarmos distrair daquilo que um homem ou mulher, extremamente bonitos, ou muito feios, dizem. A culpa não é deles, é nossa. Temos de ser capazes de estar para além disso. Afinal somos adultos, não?

Habitualmente é ensinado pelos consultores de imagem e protocolo que a roupa a usar não deve causar interferências no receptor da mensagem, que é por isso que não se pode usar uma roupa qualquer em qualquer ocasião. Ou que a roupa transmite uma mensagem, as mais das vezes de seriedade, profissionalismo, etc. Está mais que provado que  não devemos ser escravos desse código pois é bem certo que o hábito não faz o monge. Fazer depender a idoneidade profissional da roupa que uma pessoa veste é quase risível tantas vezes comprovado que é o contrário, não sei porque tantos insistem nisso como se fosse um acto de fé.

  "Com um vestido preto, nunca me comprometo" , dizia a Ivone Silva. Mas parece que isso depende da quantidade de pele mostrada. A pele é sempre um enorme problema. No caso de Tracy, não estamos sequer a falar de um decote bem cavado ou de uma subida e justa mini-saia: é um simples ombro! Quem diria que um ombro podia ser tão obsceno ou sexy! Que visão tão perturbadora e inapropriadamente erótica! Não sei se estou com falta de imaginação ou se são os outros que têm imaginação a mais. Bem sei que o corpo feminino sempre foi mais sexualizado que o masculino e que é daí que nasce quase sempre a censura. Mas o problema, não estará, parece-me, no ombro da Tracy e mais na forma de olhar a Tracy, e, como sempre, e sobretudo, na forma de julgar a Tracy.

A questão também foi demasiadamente empolada. Não sei quantos se sentiram atingidos mas é possível que não tenham sido assim tantos no universo total dos que viram a transmissão. Talvez uma uma minoria que depois ganhou uma voz retumbante auxiliada pelas redes e debates. Ainda assim, é preciso debater, sim, mas não o ombro nu. É preciso discutir a questão do tipo de linguagem e afronta que foi dirigida a Tracy.

Não sendo uma seguidora das tendências de moda, a verdade é que já vi muitas propostas de vestidos e blusas assimétricas, com ombro desnudado, deve ser uma das tendências, e até gostei de algumas, como esta. Então quer isto dizer que por não ter ombro, esta blusa não se pode levar para o trabalho? Mas qual trabalho? Esta mulher não pode, por exemplo, usá-la como secretária de uma administração? Professora na Faculdade? Balconista na biblioteca municipal? Talvez não deva apresentar-se assim se for vindimar no Douro, não? Um pouco chique demais.  Mas, então, onde, de resto, onde é que esta blusa preta sem ombro impede a pessoa de ser profissional e de ser olhada como tal?
Tendência: blusa assimétrica com ombro nu

O que é então sobretudo lamentável é constatar o tipo de insultos que as pessoas dirigiram à parlamentar. Ter uma opinião, considerar que o vestido é inadequado para o lugar, mais próprio para uma festa, acho inteiramente normal. Mas já não é normal nem digno criticar insultando diminuindo, rebaixando humilhando, desprezando aquela mulher. Chamar-lhe "puta" com todas as letras, em muitos Twits apenas porque mostrou um ombro no Parlamento é que é indecente e ainda mais quando as mesmas pessoas criticam ferozmente as mulheres no Médio Oriente que desejam cobrir os braços ou a cabeça por motivos religiosos. Ainda há pouco tempo o fizeram, em Portugal, com a Fátima Habib, a jogadora muçulmana  de basquetebol, no Algarve.  E agora, esses mesmos, dizem que a Tracy não devia estar assim "destapada", que usar este vestido é mais de puta que quer atenção do que de uma política séria. Não foram ingleses, não senhor, foram portugueses, um deles, um homem até de bastante cultura e eloquência. Não trouxe prints para mostrar mas acho que não é difícil de acreditar, pois não?

Façamos este exercício. Assumamos que  Tracy foi indecente. E este homem? E se eu dissesse que este filho dum grande cabrão parece mesmo que acabou de fornicar no Parlamento? Seria adequado ou educado da minha parte? 
Presidente da Casa dos Comuns e membro do Partido Conservador

Jacob Rees-Mogg protagonizou um episódio de também abundante falatório no Parlamento inglês quando, em Setembro, decorria na Câmara dos Comuns um debate durante o qual o Governo perdeu a maioria parlamentar, o primeiro-ministro pediu eleições antecipadas e os deputados se aproximaram do objetivo de impedir um Brexit sem acordo. Mogg esteve deitado languidamente a maior parte do tempo, a passar pelas brasas, a rir e a fazer de conta que tudo o entediava, nos bancos verdes. Mais tarde  admitiu que reclinar-se no banco da frente da Câmara dos Comuns tinha sido um erro. Rees-Mogg foi criticado pelos dois lados da Câmara pela sua postura desrespeitosa que comunicava desdém pelo parlamento, pela democracia e pelos seus colegas. No entanto, desafio os leitores a encontrarem linguagem sexista nas críticas dirigidas a este membro do Parlamento... 

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Sugestão de leitura

Is the world ready for politicians to dress in workplace casual?, para ler, aqui.

Power dressing: why female MPs have faced a century of scrutiny, para ler, aqui.

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