Antigamente não havia bullying?



Circulava aí há dias um texto - que não sei de quem é graças àquela prática que muitos têm de copiar ignorando o nome, substituído por um "ouvido por aí" , - onde o autor,(?)  a propósito da "diferença", se queixava do estado de "agora"  e puxava o lustro ao "antigamente" , "um tempo onde nenhuma criança queria ser igual às outras. Dizia que então as crianças aprendiam a rir de si mesmas quando alguém lhes chamava nomes. Que aguentavam firme ou, se não gostavam, então lutavam para mudar. Que não se culpavam nem os outros nem a sociedade, como agora acontece. Nessa luta, uns falhavam e ficavam para trás, outros venciam."

Julgo que o texto tenha sido escrito por quem não guardou memórias difíceis dos tempos da infância e adolescência, daquelas que se agarram a nós para futuro fruto da nossa impotência para lhes ter conseguido fazer frente. Calçar os sapatos do outro é sempre difícil, compreendo. E a crítica ao presente até a subscrevo, ainda que não na íntegra, é verdade, hoje basta uma criança puxar o cabelo a outra e a melindrada telefonar para casa que mãe ou pai ou tia aparecem logo ao portão da escola em socorro. (Já acorrem com menos celeridade  quando são os professores a ligar por causa da má educação dos filhos.) Fomos da consideração das provações do crescimento como totalmente irrelevantes  à sobrevalorização genérica de todos os queixumes dos infantes. Escrever que se tem "saudades do passado", todavia, equivale a dizer que está certo ignorar queixas, sabe-se lá com que consequências, e por outro lado a retirar importância a um entendimento que, apesar de tudo, é mais que necessário num presente de dinâmicas  muito  diferentes de então, e onde, além dos velhos problemas vão surgindo novos. Tem certa razão o autor, pois tem, hoje é tudo bullying, mas antigamente muito havia que era bullying e ninguém queria saber: era tudo "educação".

Hoje anda aí a circular um video de uma criança de 9 anos em lágrimas a dizer que se quer matar. Foi o que me motivou a escrever isto, sendo impossível escapar à consternação daquelas imagens. A mãe filmou o vídeo no cúmulo do desespero, não sabe o que há-de fazer mais para garantir que os outros respeitem o seu filho. Apela à comunidade, aos educadores, aos professores, a todos, por acções, por ajuda. Não creio que essa criança do video queira ser diferente das outras ou que alguma vez venha a aprender a rir quando ouvir os outros a chamarem-lhe nomes como baixote ou deficiente ou atrasado ou o que quer que a inteligência fértil das crianças para o mal, - e jovens, e adultos, - encontre para o importunar. E quem deve essa criança culpar? A si mesma porque nasceu diferente?! É errado proteger alguém que não tem forma de reagir perante o mais forte porque era assim no "antigamente"? Que sofra, que se fira, ou que se mate? Era melhor quando não havia vítimas, nem bullying, nem nada, - como diz o tal texto? Que  lei então existia senão a dos mais fortes sobre os mais fracos?  É isso que deseja para os seus filhos, se os tiver,  mesmo que não tenham "defeitos" ou "alcunhas", como ele diz, o autor do texto? Deixá-los entregues à tranquilidade do "antigamente" porque  no tempo do "agora" em que todos queremos ser ouvidos, em que todos merecemos ter voz,  não encontra qualquer préstimo?  Que bons eram tempos do "antigamente" onde ninguém chorava quando lhes chamavam nomes. Pois não. Sofriam silenciosamente, sem incomodar, engolidos na vergonha, no medo, no sentimento de fracasso, na frustração, na dúvida, na solidão, o que era tão melhor para a maior parte da sociedade que assim podia folgar iludindo-se de que tudo estava bem. 

Yarraka Bayles, mãe de um menino de 9 anos, com nanismo, filmou um video doloroso para que todos vejam o que o bullying faz. Não, eu não tenho saudades dos tempos do "antigamente", onde eu estendia a minha mão a reguadas que até hoje sinto a arderem como injustas. E isso nem sequer era bullying, era apenas educação à antiga. Mas ainda menos saudades tenho dum presente onde se anseia pelo passado, só porque isto de estarmos sempre a levar com "ismos" a toda a hora, é muito aborrecido. Ah, pois é. Agora imaginem o aborrecimento que é para quem é alvo de bullying, ou  "ismos" ter de ouvir chamar nomes a toda a hora. Tenho é mesmo muitas saudades do futuro, isso sim, que espero seja melhor para as crianças, jovens e adultos vítimas de abusos. Talvez ele lhes traga a devida empatia por parte de todos.

Ainda na primária os meus pais foram confrontados com a minha recusa em ir à escola. Sempre fui boa aluna, não gostava de números, mas eles não me amedrontavam, safava-me. Gostava muito de escrever e desenhar. O meu problema era o João, um puto ruivo e sardento, que me importunava de toda a forma e feitio. A situação resolveu-se com o meu pai a levar-me à escola quase por uma orelha e a ameaçar o rapazote, que já estava à espreita, à entrada do portão, ele que me perseguia por todo o recreio e da escola até casa, inclusivamente chegámos a jogar à pedrada na rua e não era brincadeira, era mesmo a ver se algum rachava a cabeça do outro. Eu era resistente, mas nem tanto, lutadora, mas nem tanto. Quando se me acabou a força, tive o meu pai, o meu herói, a defender-me. Mas muitas crianças não tiveram os pais, os professores, enfim, os mais velhos, a ouvi-las e a compreendê-las, a interceder por elas, nem a minha resistência, era assim. Isto era o que hoje se chama bullying, uma expressão nova para um assunto velho, renomeado pela modernidade.

Mais tarde, com as aulas de educação física, observei como eram tratadas as crianças gordas, - que o tal texto também menciona. Ali eram despidas das suas vantagens: de nada lhes valia a sua simpatia bonacheirona ou as folhas que sempre tinham para "emprestar" aos colegas nas aulas, ou os chocolates que dividiam com os outros no intervalo. Eram apenas os seus corpos contra os aparelhos, as fitas métricas e o cronómetro, num combate sem glória, sem sequer possibilidade de recurso a cábulas ou truques. A solidariedade do exíguo grupo de amigos ficava esquecida no balneário e os adultos eram indiferentes. Ali chegados era como que a consagração da vocação dos gordos como alvo de gozação por todos. E isso era entendido como normal porque as crianças gordas faziam perder pontos. Ninguém as queria ali mas não se podiam mandar embora.

As alcunhas por vezes eram como medalhas que as crianças ganhavam à ida para a escola e que depois acompanhavam os adultos pela vida fora, até à morte. O Zé "Gordo" Manel quando casou, os seus membros alongados e corpo enxuto, há muito a infantil gordura sumida, continuava a ser o Gordo. Fora uma criança respondona, emocionalmente robusta e bem humorada, a quem a alcunha não incomodara nem um pouco. A "Pulguita" era assim chamada por ser pequena e brincava com aquilo. O "Fininho", um miúdo magro, muito reguila e eléctrico, também assumia a sua alcunha sem complexos. Mas outras crianças não conseguiam sacudir, nem que quisessem, as alcunhas que tinham ganho e que as incomodavam, alcunhas vezes sem conta repetidas que evidenciavam a sua diferença com negatividade e sem pinga de afecto - não havia cá "itos" nem "inhas : ao Pipas, ao Banhas, à Baleia, à Guida "Margarina",  que era gorda e suava as estopinhas ou à Tina "Gelatina", de rosto sempre afogueado e brilhante, só restava crescerem para fugir àquela tortura.

Não apenas as crianças gordas, também as meramente desajeitadas, em especial, os rapazes, sofriam por serem considerados um estorvo no meio competitivo que ali se pretendia. Começava tudo no Ciclo Preparatório. Eram facilmente identificados: ficavam sempre para último quando se faziam escolhas de equipas, eles e as meninas. Riam de si mesmos, claro, desvalorizavam. Mas riam porque estavam felizes, sendo assim ostracizados pelos colegas com a cumplicidade dos professores? O método para o sucesso destes alunos  consistia em marginalizá-los,  ou ridicularizar com gritos explícitos ou entre-dentes, a falta de perícia ou a gordura, e o mau aproveitamento dali resultante. (Dali ou da falta de apoio e incentivo que era zero?) Era assim que "antigamente" se entendia estimular o que de melhor havia nas crianças, era assim que se pretendia fazê-las crescer. Um professor chegou até a convocar a turma para exercer uma punição colectiva na forma do que chamava "calduços": todos tínhamos de bater na nuca do aluno fisicamente gordo ou desajeitado porque se recusava a jogar futebol ou a saltar o aparelho, já não sei. Uns vinte e mais calduços no nuca do desgraçado, cabeça curvada sobre o peito,  em penitência, ajudariam certamente o aluno de 11 anos a porfiar da vez seguinte e a fazer dele um exemplo para todos. Era o momento para os que o detestassem descarregarem e os outros se indignarem silenciosamente e serem brandos. Enquanto isso, eu dava a mão a uma colega que o medo tolhia e impedia de fazer muitos dos exercícios, conjecturando que na aula seguinte talvez fosse ela a apanhar. Gelada, tremia de nervoso e nem sequer conseguia falar, enquanto a fila avançava. Ela sofria não por ser gorda, mas por ser magríssima: onde andará hoje a franzina Anabela, a quem chamávamos a "Vesga", para a distinguir da outra Anabela? À distância julgo até que a Anabela pudesse ser um caso de má nutrição, fruto de condições de pobreza, ou que tivesse um qualquer problema de saúde.

Alguém se matou? Felizmente, não. Que estas crianças sofreram? Sem dúvida. Era isto necessário? Respondam vocês, se conseguirem calçar os sapatos apertados dos meninos gordos e desajeitados. Ou da Anabela, a Vesga, e caminhar, semana após semana, sem forças ou motivação, pelo pavilhão gimno-desportivo ao encontro do terror das aulas de educação física, de palmas das mãos geladas, olhos chorosos e garganta seca. O que faziam estas crianças e adolescentes para conseguir ultrapassar esse transe? Calavam a sua tristeza e o seu medo, não dormiam, perdiam o apetite, vomitavam, esgotavam o número de faltas possíveis à disciplina, arranjavam desculpas para ficar no banco, ganha a coragem para isso, outras, que conseguiam falar do assunto com os pais, apresentavam justificações destes, talvez até atestados médicos, apesar de serem saudáveis. Muitas crianças e jovens adolescentes passaram por este tipo de vivências, umas melhor, outras pior, algumas com muito sofrimento psicológico, semana após semana. Lamento, mas desta faceta do meu "antigamente" não tenho saudades.

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