Manuel Resende. O poeta que não desperdiçava a poesia com porcarias
Manuel Resende (1948-2020), o poeta que não desperdiçava a poesia com porcarias, como agora se leu nas notícias, nasceu no Porto e vivia em Lisboa, estudou Engenharia mas nunca foi engenheiro, não cursou grego mas era especialista na língua grega, o grego moderno. Por meia dúzia de anos foi jornalista no Jornal de Notícias e por 20, tradutor ao serviço da União Europeia. Além do gosto pelas palavras, tinha também o gosto pelos ideais políticos: foi como activista político que Louçã o relembrou enquanto autor das teses sobre situação política e económica discutidas no congresso de fundação da Liga Comunista Internacional, mais tarde PSR e depois Bloco de Esquerda. Para a sua editora, Cotovia, é um dos maiores poetas portugueses, quer escrevendo os seus quer traduzindo os versos de outros grandes poetas como Konstantínos Kaváfis ou Elytis. Traduziu também Shakespeare, Brecht, Kafka, Beckett, obras como "O Capital", de Karl Marx, e "A Caça ao Snark", de Lewis Carroll.
Também o que é eterno morre um dia.
Eu tusso e sinto a dor que a tosse traz;
O doutor quer por força a ecografia,
Mas eu não estou pra tantas precisões.
Eu rio à morte com um riso largo:
Morrer é tão banal, tão tem que ser!
Disto ou daquilo, que me importa a mim?
Mas, ó horror, com fotos, não, nem documentos!
A tanta exactidão mata o mistério.
O pH, o índice quarenta...
Não quero as pulsações, os eritrócitos,
O temeroso alzaimer, ou o cancro,
Nem sequer o tão raro, do coração.
Ver o pulmão, o peito aberto, o coração,
A palpitar a cores no computador?
Eu morro, eu morro, não se preocupem,
Mas sem saber, de gripe, ou duma coisa,
Ou doutra coisa.
Manuel Resende, in 'O Mundo Clamoroso, Ainda'
A obra literária de Manuel Resende são três livros. Em 1983 fez a sua estreia com "Natureza Morta com Desodorizante". Sem pressas, quinze anos depois publicou "Em Qualquer Lugar", e em 2014 publicou "O Mundo Clamoroso". Só em 2018 dei por ele. Não vou estar aqui a inventar que foi antes porque não foi. Mesmo se gosto de poesia e se leio e compro bastantes livros de poesia é mais o que não sei desse universo do que aquilo que sei. Recordo ter visto na livraria, apesar da minha memória de passarinho, o volume de capa azulada da Poesia reunida, cuja publicação, agora sei, se sucedeu à convalescença do poeta após melindroso internamento hospitalar. Como já é habitual neste tipo de colectâneas, o preço era elevado. Peguei no livro, examinei-o e voltei a colocá-lo no lugar. Fiquei sempre à espera de poder comprá-lo em 2ª mão. Até hoje ainda não apareceu. Quem o tem, tem-o preciosamente alinhado em alguma prateleira de estante. Se eu o tivesse na minha, também não me desfazia dele. Costumo vender os livros que vou lendo mas os de poesia não. Compreendo que os leiores se apeguem a eles, mais que a outros. Também em vão se procura pela internet pelos seus poemas. São mesmo muito poucos os que se encontram. No seu desaparecimento, "Também o que é eterno" foi o poema mais partilhado. Esperava que mais versos de Resende fizessem a sua entrada online, mas não. E que mais peças surgissem que me ajudassem a conhecê-lo um pouco melhor também. Procurei mas não encontrei muitas melhores que aquelas que já existiam, velhas de um ou dois anos. Ou talvez me tenham escapado pois este tempo desde o Natal tem sido sugado por tudo e nada, isso a par da disposição engripada que não promove a produtividade e outros azares.
Hoje saiu mais uma peça sobre o poeta e é dela que copio na íntegra este texto importante e sensível, escrito por alguém próximo dele, e também por duas outras razões. Por desconfiar que são raras as pessoas que chegam ao final dos meus textos e clicam nas "sugestões de leitura" que ali deixo (que são usualmente as minhas fontes ou propostas que permitem aprofundar o assunto sobre que escrevi) e porque o Jornal I pode, sei lá, pode lembrar-se de reservar o acesso daquela página só a assinantes. Se não lerem mais nada sobre Manuel Resende, leiam, pelo menos, esta opinião do seu amigo Rui Manuel Amaral, responsável pela reunião da poesia de Manuel Resende no tal livro que aguardo na minha estante, que assim o lembra:
Habituei-me a imaginar que o Manuel Resende sobreviveria a tudo. Em 2017, esteve hospitalizado durante semanas em estado muito grave. Alguns amigos temeram perdê-lo. A verdade é que voltou directamente dos cuidados intensivos para lançar a Poesia Reunida, em 2018. O livro de poemas português mais importante deste século.
Cada novo leitor que esse livro conquistou é como um sinal de que o nosso mundo entrou nos eixos. A grande poesia do Resende já não é um segredo de meia dúzia de leitores fanáticos. O mapa literário do país assumiu, por fim, a forma correcta.
O Resende não jogou uma única carta neste jogo. Não fez nada para que os poemas fossem mais ou menos conhecidos. Não lhe competia a ele. Ele era apenas um poeta. Escrevia porque tinha de escrever. Os três livros que publicou, antes da antologia de 2018, surgiram por intervenção de amigos ou em resposta a convites de editores. A antologia também. Não foi o Resende que a propôs e não foi ele quem a organizou.
Nada disto tem a ver com alguma espécie de arrogância ou falsa modéstia. É exactamente o contrário. Trata-se de pura timidez. Da mais pura noção de que nada disto é assim tão importante. De que a literatura é muito maior do que qualquer escritor. Ninguém que eu conheça estudou e amou mais a literatura. Conhecia-a a fundo, sílaba após sílaba, verso após verso, capítulo após capítulo.
Traduziu milhares de páginas. Dos grandes, mas também dos outros, dos chamados “menores”. Anos e anos de trabalho deram-lhe a sabedoria de pôr as coisas em perspectiva. A literatura é feita de tudo isto: grandeza e miséria, humildade e presunção, silêncio e fogo-de-artifício.
Talvez por isso se tenha transformado num misto de sábio e “palhaço triste”, no sentido chaplinesco do termo. Não sei explicar melhor. Havia nele uma qualquer tristeza profunda, que embrulhava em humor e auto-ironia. Porque todos somos feitos da mesma matéria: poeira da estrada e pó dos livros. Porque a história acaba da mesma maneira para todos. Não está certo nem errado, é simplesmente assim.
Talvez isto explique também a dose de pessimismo com que olhava para o mundo, apesar de o seu coração ter batido sempre à esquerda. Desde a juventude, no Porto, até ao último dia da sua vida. Não há camarada dos tempos da luta política que não o adore. Não conheci companheiro ou adversário que não gostasse do Manuel Resende.
O Resende concedeu-me a sua amizade e eu nunca tive nada de especial para lhe dar em troca. Tudo o que podia e posso fazer é ler os seus livros. Uma e outra vez. E tentar aprender com ele os pequenos truques para enganar a morte até onde é possível.
Abaixo deixo os links para algumas entrevistas e mais opiniões sobre Manuel Resende. Espero que da sua leitura desponte a curiosidade sobre este poeta tão merecedor da nossa atenção, amantes dos versos. A única coisa boa que o seu desaparecimento trouxe é que mais gente leu sobre ele e ficou desperta para a sua obra.
Hoje saiu mais uma peça sobre o poeta e é dela que copio na íntegra este texto importante e sensível, escrito por alguém próximo dele, e também por duas outras razões. Por desconfiar que são raras as pessoas que chegam ao final dos meus textos e clicam nas "sugestões de leitura" que ali deixo (que são usualmente as minhas fontes ou propostas que permitem aprofundar o assunto sobre que escrevi) e porque o Jornal I pode, sei lá, pode lembrar-se de reservar o acesso daquela página só a assinantes. Se não lerem mais nada sobre Manuel Resende, leiam, pelo menos, esta opinião do seu amigo Rui Manuel Amaral, responsável pela reunião da poesia de Manuel Resende no tal livro que aguardo na minha estante, que assim o lembra:
Habituei-me a imaginar que o Manuel Resende sobreviveria a tudo. Em 2017, esteve hospitalizado durante semanas em estado muito grave. Alguns amigos temeram perdê-lo. A verdade é que voltou directamente dos cuidados intensivos para lançar a Poesia Reunida, em 2018. O livro de poemas português mais importante deste século.
Cada novo leitor que esse livro conquistou é como um sinal de que o nosso mundo entrou nos eixos. A grande poesia do Resende já não é um segredo de meia dúzia de leitores fanáticos. O mapa literário do país assumiu, por fim, a forma correcta.
O Resende não jogou uma única carta neste jogo. Não fez nada para que os poemas fossem mais ou menos conhecidos. Não lhe competia a ele. Ele era apenas um poeta. Escrevia porque tinha de escrever. Os três livros que publicou, antes da antologia de 2018, surgiram por intervenção de amigos ou em resposta a convites de editores. A antologia também. Não foi o Resende que a propôs e não foi ele quem a organizou.
Nada disto tem a ver com alguma espécie de arrogância ou falsa modéstia. É exactamente o contrário. Trata-se de pura timidez. Da mais pura noção de que nada disto é assim tão importante. De que a literatura é muito maior do que qualquer escritor. Ninguém que eu conheça estudou e amou mais a literatura. Conhecia-a a fundo, sílaba após sílaba, verso após verso, capítulo após capítulo.
Traduziu milhares de páginas. Dos grandes, mas também dos outros, dos chamados “menores”. Anos e anos de trabalho deram-lhe a sabedoria de pôr as coisas em perspectiva. A literatura é feita de tudo isto: grandeza e miséria, humildade e presunção, silêncio e fogo-de-artifício.
Talvez por isso se tenha transformado num misto de sábio e “palhaço triste”, no sentido chaplinesco do termo. Não sei explicar melhor. Havia nele uma qualquer tristeza profunda, que embrulhava em humor e auto-ironia. Porque todos somos feitos da mesma matéria: poeira da estrada e pó dos livros. Porque a história acaba da mesma maneira para todos. Não está certo nem errado, é simplesmente assim.
Talvez isto explique também a dose de pessimismo com que olhava para o mundo, apesar de o seu coração ter batido sempre à esquerda. Desde a juventude, no Porto, até ao último dia da sua vida. Não há camarada dos tempos da luta política que não o adore. Não conheci companheiro ou adversário que não gostasse do Manuel Resende.
O Resende concedeu-me a sua amizade e eu nunca tive nada de especial para lhe dar em troca. Tudo o que podia e posso fazer é ler os seus livros. Uma e outra vez. E tentar aprender com ele os pequenos truques para enganar a morte até onde é possível.
Abaixo deixo os links para algumas entrevistas e mais opiniões sobre Manuel Resende. Espero que da sua leitura desponte a curiosidade sobre este poeta tão merecedor da nossa atenção, amantes dos versos. A única coisa boa que o seu desaparecimento trouxe é que mais gente leu sobre ele e ficou desperta para a sua obra.
Eis, então, alguns excertos para vos incentivar ao clique extra. Garanto que não é "cliquebaite"!
“A minha poesia é uma colagem. Tem as mais diversas influências. Desde o Sófocles ao Rui Veloso e ao Sérgio Godinho; tem os Beatles, André Gide, Breton, Cesariny, Jorge de Sena... As coisas mais díspares. E as formas poéticas são as mais desencontradas e aparentemente desconexas. Eu atiro aquilo para lá e de vez em quando começa a sair um soneto, compreende?”
“Eu também escrevo sobre o quotidiano, mas nunca é um quantificado trivial e fútil. É sempre a pensar nas coisas, perdoe a presunção, nas coisas mais essenciais da vida.A poesia é muita rara para ser desperdiçada com porcarias. Essas coisas são o amor, a liberdade...É isso. E falo muito do tempo, porque o tempo é a natureza de que somos feitos. O ser humano é um animal muito delicado e frágil. Tem de aprender tudo, excepto mamar e fazer xixi e outras coisas que tais. Tem de ser ensinado, precisa de uma família, precisa de tempo, precisa de um lastro histórico. Senão, não existiríamos, nunca seríamos o que somos.”
"O meu pai andava sempre a recitar poemas e eu li Fernando Pessoa muito novo, não tinha idade para aquilo, mas ia escrevendo umas coisas.O dadaísmo é uma reacção contra as condições de cultura e de literatura da sociedade. Uma reacção de rejeição de uma sociedade que, com tão elevada cultura, faz a II Guerra Mundial! Essa relação conflituosa com o mundo tal como ele é esteve sempre comigo.”
"É mesmo, vejo o poema quase como a montagem de um filme. Primeiro andamos às voltas e depois é preciso juntar aquilo tudo. Ou como fazer um bolo — é preciso seguir uma certa receita para a massa ficar leve. Cozinho sim, e estava agora a lembrar-me que tenho de arranjar uma solução para os falafel. Comecei a fazer há pouco tempo, porque como cada vez menos carne. Há um problema — se a massa tiver um bocadinho de água, quando se deita na frigideira, desfaz-se. É preciso escoar a água toda do grão de bico, mas isso pode resultar numa coisa muito seca. Há uma ciência, não é só misturar. A sabedoria, a mão do cozinheiro é que conta. Isso também vale para a poesia? Não sei, acho que sim. Para mim, a poesia é uma espontaneidade muito bem estudada. Para se ser espontâneo é preciso um bocado de treino.”
Sugestão de leitura:
Manuel Resende (1948-2020). “Uma lágrima cai de leite sobre cinzas”, aqui.
A razão dos ritmos antigos, aqui
Uma vida de leitura e escrita, até não restarem segredos, aqui.
A poesia é muito rara para ser desperdiçada com porcarias, aqui.
“A minha poesia é uma colagem. Tem as mais diversas influências. Desde o Sófocles ao Rui Veloso e ao Sérgio Godinho; tem os Beatles, André Gide, Breton, Cesariny, Jorge de Sena... As coisas mais díspares. E as formas poéticas são as mais desencontradas e aparentemente desconexas. Eu atiro aquilo para lá e de vez em quando começa a sair um soneto, compreende?”
“Eu também escrevo sobre o quotidiano, mas nunca é um quantificado trivial e fútil. É sempre a pensar nas coisas, perdoe a presunção, nas coisas mais essenciais da vida.A poesia é muita rara para ser desperdiçada com porcarias. Essas coisas são o amor, a liberdade...É isso. E falo muito do tempo, porque o tempo é a natureza de que somos feitos. O ser humano é um animal muito delicado e frágil. Tem de aprender tudo, excepto mamar e fazer xixi e outras coisas que tais. Tem de ser ensinado, precisa de uma família, precisa de tempo, precisa de um lastro histórico. Senão, não existiríamos, nunca seríamos o que somos.”
"O meu pai andava sempre a recitar poemas e eu li Fernando Pessoa muito novo, não tinha idade para aquilo, mas ia escrevendo umas coisas.O dadaísmo é uma reacção contra as condições de cultura e de literatura da sociedade. Uma reacção de rejeição de uma sociedade que, com tão elevada cultura, faz a II Guerra Mundial! Essa relação conflituosa com o mundo tal como ele é esteve sempre comigo.”
"É mesmo, vejo o poema quase como a montagem de um filme. Primeiro andamos às voltas e depois é preciso juntar aquilo tudo. Ou como fazer um bolo — é preciso seguir uma certa receita para a massa ficar leve. Cozinho sim, e estava agora a lembrar-me que tenho de arranjar uma solução para os falafel. Comecei a fazer há pouco tempo, porque como cada vez menos carne. Há um problema — se a massa tiver um bocadinho de água, quando se deita na frigideira, desfaz-se. É preciso escoar a água toda do grão de bico, mas isso pode resultar numa coisa muito seca. Há uma ciência, não é só misturar. A sabedoria, a mão do cozinheiro é que conta. Isso também vale para a poesia? Não sei, acho que sim. Para mim, a poesia é uma espontaneidade muito bem estudada. Para se ser espontâneo é preciso um bocado de treino.”
Sugestão de leitura:
Manuel Resende (1948-2020). “Uma lágrima cai de leite sobre cinzas”, aqui.
A razão dos ritmos antigos, aqui
Uma vida de leitura e escrita, até não restarem segredos, aqui.
A poesia é muito rara para ser desperdiçada com porcarias, aqui.
A verdadeira ralidade, aqui.
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