Extra: Desafio de Escrita dos Pássaros #6: O amor, uma cabana...e um frigorífico
– Casa comigo. Nunca mais terás de comprar um livro.
Um ano depois viviam nos arrabaldes de uma cidade perdida. Nunca faltavam à missa exceptuando se andavam longe, fazendo feiras de velharias. No regresso, depois do almoço habitual no Centro Social Paroquial, sempre visitavam o prior.
– E novidades da terra?
– O Engenheiro Garcia.
– Que descanse em paz.
– Raul, como vai o negócio? Não é fácil viver com esse infortúnio...
– Sr. Padre, não o é. Três dedos chegam para fazer o sinal da cruz. – E sorria. – Esse Engenheiro é o que morava na vivenda azul?
Daí a dias tocavam à porta do falecido para apresentar sentimentos:
– ...e se tiver por aí alguns livros que estejam só a ocupar espaço, nós podemos ajudar.
Certa vez Leonilde trouxe do lixo uma televisão que ainda funcionava. Colocou-a numa pilha de livros. À Sexta nunca mais perdeu o Concurso que dantes via no café. Enciclopédias faziam de banco. Então uma camioneta veio descarregar um frigorífico enorme. Telefonara e acertara na resposta. Mas Leonilde ligou-o e o quadro eléctrico estoirou.
– Serve de estante, – resolveu Raul.
Estavam nisto quando a TV bateu à porta para os transformar em estrelas por um minuto.
A coberto da noite, entre romances, confessou-lhe:
– Assaltei a casa de um ricaço. O meu cúmplice foi preso, os cães perseguiram-me pinhal adentro. Ia perdendo as duas mãos. Safaram-se estes, – disse sorriu, afundando os dedos nos pelos púbicos dela.
Leonilde saiu da cama. Voltou da cozinha e saltou-lhe em cima, colando-lhe uma faca gelada ao pénis:
– Voltas a mentir, capo-te.
Dito isto, cavalgou-o com fúria.
Nem um mês volvido, Raul entrou de rompante na velha casa.
– Onde o guardaste?
Pela porta forçada a pontapé entraram dois colossos que caíram em cima do maneta. Leonilde, atirada contra a parede, desmaiou. Voltou a si e Raul no chão, de olhos temerosos nela:
– O envelope?
– No frigorífico.
– Vai ver. Vasculharam tudo.
Ali estava, no congelador, atrás dos seus livros preferidos. Abriu-o. Era a primeira edição dos sonetos de Antero de Quental. Lembrava-se do célebre roubo ter sido notícia há alguns anos.
– Leonilde! – chamou Raul, tentando levantar-se.
Da cozinha chegou-lhe aos ouvidos um som metálico.
Comentários
Já escrevi uns 3 textos do género e adoro. Pode chocar alguns, mas não deixa de ser a realidade de muitos (apesar de escrevermos ficção).
Parabéns.