Acho esta explosão de repúdio pela proposta de Joacine por muitas pessoas que habitualmente depreciam a cultura africana, considerando-a inferior à nossa, encantadora. Quando terá sido a última vez que o líder do PNR ou do Chega foram apreciar as
nkisis ao Museu de Etnologia? Já viram
selfies deles com elas? Eu não. Surpreenderia, de facto, sempre tão unidos na defesa do homem branco e da cultura ocidental, que sentem estar a ser atraiçoada por Joacine. Não deviam antes estar aliviados por ela os querer livrar desses incomodativos artefactos primitivos? Quantas vezes leio, sobretudo no FB, sobre a superioridade da nossa cultura sobre todas as outras pelos seus acólitos? Agora espumam porque alguém ousou sugerir que as peças sejam devolvidas à procedência? Talvez fossem mais brandos se a sugestão fosse antes vendê-las como a história da
nkisi de Faro vagamente sugere, não? Vi uma
nkisi no Museu Santos Rocha, na Figueira da Foz, há muitos anos, e quando cheguei a casa desenhei-a diversas vezes: a estatueta, material sombrio de que se fazem os mistérios, invocação de medos e de poderes sobrenaturais, ali, de pé, a olhar para mim, de espelho na barriga, cravejada de pregos, era formidável. E agora a Joacine quer que as
nkisis voltem para África? Carago. Pode lá ser isso possível?! Não pode ser assim tão simples. Os museus não são inteiramente vilões nesta história. Muitas
nkisis e outras obras similares foram até compradas por eles, cuidadas, preservadas. Incorporadas nas suas colecções e com isso serviram e servem a divulgação da cultura africana entre nós. Ou seja, a devolução integral à sua origem silenciaria parte da cultura africana entre nós. É isso desejável? A mim parece-me empobrecedor, por muito que digam que hoje há livros com boas fotografias, há a internet. Nunca é a mesma coisa, digo eu, que calcorreio museus e monumentos sempre que posso. Por outro lado, algumas das obras não foram adquiridas de forma legítima, foram pilhadas com 100% de segurança. Os países de onde são originárias estão privados de fazerem receitas com elas e do seu desfrute pelos nacionais. Quanto a estas, haverá discussão? Repugna a alguém que o apropriado indevidamente seja restituído, talvez com compensação a quem preservou e divulgou durante anos? Ou negociado? Mas, mesmo sendo roubadas, não estiveram ali a falar por quem não tinha voz, não foram embaixadoras dos seus países, da sua cultura tantas vezes incompreendida e relegada para plano inferior? Não contribuíram para a manterem viva? Não alimentaram o imaginário dos visitantes, não comunicaram impressões fortes, como aconteceu comigo, sobre a história do Homem? Tantas e mais questões que se levantam. Mas em vez de debate temos provocações e clamores, um exercício estéril, como se tudo fosse preto ou branco. Não sei onde é que está a nossa superioridade cultural. No Parlamento, não me parece.
Sugestão de leitura
Chama-se Nkisi e tanto atrai os maus espíritos como ofertas milionárias. Mas Faro não vende, artigo do Público,
aqui
Comentários
E depois ainda por cima o jornal "Público", ontem, branqueia as palavras de Ventura e diz que este "ataca ideia" de Joacine. Ele não atacou "ideia" de Joacine, o facho emitiu um comentário racista e xenófobo.