Cinema: a guerra dos super-heróis e outras guerras





Scorsese deu, em Outubro, uma entrevista à revista Empire e disse que não pensava que os filmes da Marvel fossem cinema, que os via mais como parques de diversão. Muitos acharam que Scorsese tinha ido longe de mais no seu julgamento da Marvel e posicionaram-se em luta: o realizador seria o vilão a abater. Scorsese veio posteriormente explicar que era uma questão de gosto pessoal que nada tinha a ver com o talento que era aliás, evidente, e que reconhecia a quem realizava e a quem interpretava os papéis dessas produções. Para ele, e fruto do momento em que tinha nascido e crescido, o cinema tinha a ver com revelação estética, emocional e espiritual. Tinha a ver com personagens e a sua natureza complexa e contraditória, com o inesperado que caracteriza a vida e que o cinema revela. E ainda com a expansão dos limites daquela forma de expressão e a procura do cinema como arte. O debate era, na ocasião, se havia um lugar para o cinema no universo artístico, tal e qual a literatura ou a música e a dança. Ora, Scorsese fala do primado da emoção sobre o do espectáculo. Que é isso que falta aos filmes da Marvel: a revelação, o mistério ou o perigo emocional genuínos. Esses filmes são variações de um tema só, projectadas e testadas para satisfazerem o mercado. Não oferecem novidade, não levam o espectador para experiências inesperadas. Mas, independentemente dessa crítica, há mais uma razão para criticar este tipo de cinema. A razão da sua invasão e domínio nas salas. Por um lado, estes títulos estão em quase todas as salas, por outro, a distribuição preponderante acontece hoje via streaming. O cinema independente fica prisioneiro desta evidência. Não há espaço para ser mostrado e os realizadores continuam a sonhar com a exibição da sua obra em ecrãs gigantes e salas repletas de espectadores: é assim que o cinema deve ser visto. As pessoas não têm realmente escolha: a maioria dos títulos nas salas são de franchise e ver no Netflix o outro cinema não é a mesma coisa. Muitas mudanças tomaram lugar: o cinema eliminou o risco eliminou também a visão pessoal, única, do realizador para passar a servir o gosto das audiências. Não necessariamente isto quer dizer que o cinema tenha de ser subsidiado, pois uma tensão entre público e realizadores, ofereceu, durante anos, muito bom cinema ao público. Em resumo, hoje a questão do cinema como arte passou para segundo plano. Hoje temos entretenimento audiovisual global e cinema. São coisas distintas e opostas. Por vezes ainda se sobrepõem mas é raro. E como os ganhos financeiros do primeiro tipo são enormes, isso pode levar à desvalorização do cinema-arte e sua marginalização.

A questão sobre se os filmes da Marvel são ou não cinema tem demorado a morrer e continua a ser colocada a outros realizadores, e a ser discutida um pouco por toda a gente: quem os faz, quem os critica e quem os vê. Menos importante que saber se são ou não cinema, admitindo que o cinema é uma forma de expressão abrangente, sendo difícil definir o que seja, - mais fácil é distinguir entre cinema que é arte e cinema que não o é - é a constatação de que o acto de ver cinema sofreu grandes transformações. Nunca vi cinema apenas pelo entretenimento mas nunca enjeitei essa sua possibilidade. Para mim, cinema sempre foi, igualmente, e sobretudo, conhecimento, inspiração, cultura, uma janela para outros mundos, uma arma contra a intolerância. Mas nunca exclui nenhum tipo de cinema, nem o documental, nem de animação. E este ano vi bastantes filmes de terror, uma estreia para mim, que apenas conhecia os clássicos. Todavia, quanto mais cinema se vê, mais exigente se fica e  mais raramente se fica completamente satisfeito com a experiência. Isso não é necessariamente mau, apenas significa que nem tudo o que reluz no escuro das salas é ouro. E está certo que assim seja.

Scorsese queixa-se de ter menos hipóteses de mostrar os seus filmes nas salas como eu sempre me queixei de não conseguir ver cinema de outros países que não, predominantemente, os anglo-saxónicos. Durante anos estava habituada a ter o Festival de Cinema da Figueira da Foz à porta para experimentar esta possibilidade de descoberta de obras noutras línguas, de outros cantos do mundo. Procurava também na televisão, no tempo em que esta ainda considerava que mostrar filmes era algo em que valia a pena apostar, antes dos reality shows e outros os remeterem para horas mortas. E nos extintos video-clubes. Mas depois aquele certame acabou e eu deixei de ver televisão. Este ano assisti a filmes do Brasil, da China, da Coreia do Sul, da Dinamarca, da Suécia, do Japão, da Noruega, de Espanha, de França e de outros países. A maioria destes filmes não foram vistos em salas, o que não quer dizer alguns deles até não tenham estado nas salas, mas não nas mais próximas de mim. Em muitas localidades não há sequer salas de cinema, e, muito menos uma Cinemateca, Cine-Clubes, cinemas independentes, ou outros pólos de difusão que se ofereçam como alternativa aos Multiplex. Por isso, é claro que foi com regozijo que assisti ao aparecimento de plataformas como o Netflix, Amazon Prime, HBO Go, que, num momento posterior, começaram até a ser alternativas aos estúdios, na medida em que lançam as suas produções, financiando até cinema fora do universo anglo-saxónico.

A guerra entre o que é cinema ou não cinema, é apenas uma das possíveis. Em 2017, em Cannes, já se tinha assistido a outra guerra. Estúdios de cinemas, donos de redes de cinemas e alguns cineastas de prestígio defenderam a importância da experiência do cinema em sala. Almodovar entendia que filmes que não fossem exibidos nas salas não deviam concorrer a prémios ali. Duas produções da Netflix disputavam então a Palma de Ouro: Okja, de Bong Joon Ho, - que agora celebra o sucesso do fantástico Parasite, um dos meus favoritos deste ano - e The Meyerowitz Stories (New and Selected), de Noah Baumbach, que realizou Marriage Story, outro dos meus recentes predilectos. Os filmes estiveram para ser retirados da competição. Os realizadores queriam que fosse respeitado um período de espera de três anos entre a estreia em sala e estreia na plataforma. Penso que a partir dali ficou decidido que os filmes têm obrigatoriamente que passar nas salas para serem admitidos a competição. Posição diferente de Cannes adoptou o conselho da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, responsável pela atribuição do Oscar, admitindo que os filmes a concurso não necessitam de ser lançados em exclusivo nas salas para entrarem na competição: podem até ser lançados em simultâneo na plataforma mas nunca antes de serem lançados nas salas.

A meu ver, sempre haverá filmes que se podem ver em pequeno ecrã sem perdas significativas, e outros que exigem a sala, pelas suas características, resultando em menorização da experiência para o espectador se assim não for. Cabe ao espectador fazer essa escolha, ou até ver nos dois formatos, caso possa, ou então, contentar-se com menos quando não pode usufruir das melhores condições. Em todo o caso, é positivo ter acesso a filmes que de outra forma nunca poderia ver. Se eu fosse realizadora de cinema, é claro que gostaria que os meus filmes encontrassem o seu público nas salas tradicionais. Entendo Scorsese. Mas, por outro lado, também gostaria que os meus filmes chegassem ao maior número de pessoas.

A Netflix, fundada em 1997, começou como um serviço online de aluguer de filmes que enviava DVDs por correio para casa dos assinantes. Em 2007, passou a oferecer a opção de assistir a alguns dos filmes e programas de televisão via internet e, em 2010, transformou-se definitivamente em plataforma de streaming. Basicamente o que estes realizadores de cinema queriam era que os filmes que são lançados em streaming concorressem aos Emmy e não a Oscars. Seriam filmes de televisão (telefilmes) e não filmes de sala. Mas quem nunca viu um bom telefilme que pensou merecedor de um Oscar? Estou a recordar-me de Liberace, por exemplo, com uma grande interpretação de Michael Douglas no papel do cantor. Um dos defensores desta posição é Spielberg: filmes na televisão, não são cinema. Portanto eis aqui um equivalente da ideia de Scorsese de que "filmes da Marvel não são cinema".

A guerra vai continuar. O filme "O irlandês", de Scorsese, não estreou em nenhuma sala portuguesa, mas estreou em algumas salas nos EUA, em festivais, em Espanha e Itália. Evidentemente que gostaria de poder ver Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci e Martin Scorsese num grande ecrã. Fiquei com pena que assim não tenha sido deliberado. As formas de distribuição e exibição cinematográfica alteraram-se significativamente com a entrada em campo das plataformas de streaming e não são apenas os produtores, exibidores, distribuidores e programadores portugueses que se ressentem com as decisões. O público mais cinéfilo e exigente não é indiferente a estas alterações, sobretudo aquele que ainda experimentou a alegria da exibição cinematográfica independente.

Outra guerra menor opôs o universo da fantasia ao cinema dito sério por longos anos. Nos anos 70-80, quando comecei a ver cinema, eram raros os filmes de super-heróis. Mesmo filmes com um enredo mais fantástico, com boa realização, argumentos interessantes e grandes interpretações foram, anos a fio, desconsiderados por não serem intelectualmente ou  artisticamente robustos. Então, a partir talvez de 2008, tudo começa a mudar. O Dark Night é um grande êxito, - mas, claro que não é nomeado para Melhor filme nos Oscars - um filme adulto, talvez como só, anos mais tarde, Logan - nomeado para Melhor Argumento -  voltaria a ser,  mais mais um thriller à base de crime, que o singulariza e torna diferente, por exemplo, da fórmula de Iron Man, que é ainda um êxito maior e inaugura o Marvel Cinematic Universe que nos trouxe o final, neste 2019, em The Avengers: Endgame, uma vintena de filmes depois! Doravante os super-heróis e seus enredos viveriam numa teia de ligações de que The Avengers inaugura o modelo. Surgiriam também, desenvolvimentos isolados, o caso de Deadpool ou Wonder Woman ou do enorme êxito Black Panther.

A vaga de super-heróis a que se assiste agora  é a 2ª vaga. As vagas tomam forma, elevam-se e depois alastram, reduzem-se e desaparecem. A 1ª vaga de super-heróis surgiu nos anos 30. O  "sonho americano" tornara-se uma miragem, deu-se a "Grande Depressão" e na Europa o fascismo ganhava terreno. Destes tempos conturbados nasceu o Super-Homem nos livros de banda desenhada. Foi no seio de uma sociedade fragilizada que necessitava de ânimo, de escape e de algo em que acreditar, que histórias de luta do bem contra o mal, que reflectiam os episódios, personagens e valores seus contemporâneos, e que sempre terminavam com um final feliz, se tornaram populares. Além do Super Homem, foram criados o Homem Morcego, a Super Mulher e muitos outros. Após a II GG os super-heróis recolheram aos seus mundos de papel e tinta. Os homens  sentiram-se de novo confiantes e capazes para assumir o controlo do seu destino. 

Por semelhança com o passado, diz-se que esta recente ascensão de super-heróis  é apenas um sinal de que, uma vez mais, atravessamos tempos de insegurança e de angústia. Mais do que para nos divertir,  precisaríamos deles para nos reconfortar quando escasseia quem encarne ideais de justiça, rectitude, sacrifício. Será mesmo isso que explica a sua popularidade? Não deixa de ser estranho que incapazes de reconhecer heróis de carne e osso que nos inspirem  estejamos a celebrar heróis fictícios, - ou até anti-heróis - que estão, alguns, muito mais próximos do perfil de criminosos - ou loucos - do que de encarnar os ideais que precisávamos de ver em acção. Será esta espécie de alienação também um sinal dos tempos? Esta overdose de fantasia cinematográfica parece imparável, o fim da 2ª vaga de super-heróis parece ainda longínquo. Mas então talvez o vilão a derrubar não seja a Marvel, como pensa Scorsese, e antes a própria Humanidade, na sua perene - ou cíclica - imperfeição, que precisa de ser chamada a dar o definitivo salto em frente!

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