Não irei mais ao cinema se Joaquin Phoenix não ganhar o Oscar
"É a vida. É o que todos dizem./ Você está no auge em Abril/ morto em Maio/ Mas eu sei que mudarei essa toada/ Quando voltar ao topo em Junho./ Já fui um fantoche, um indigente, um pirata, um poeta, um peão e um rei/ Eu já estive no cimo, no fundo, dentro e fora, e uma coisa eu sei/ Sempre que me encontro derrotado no chão/ ergo-me e volto à corrida./ É a vida (é a vida), não posso negar isso/ Pensei em desistir, mas meu coração simplesmente não aceita. Sacudo a poeira e volto para a corrida."
That's life, Frank Sinatra ( Banda sonora de Joker)
(Há spoilers à frente.)
É a vida, é o que todos dizem. Uns estão no topo, a elite, os poderosos; outros, uma grande maioria, indivíduos que de alguma forma se sentem oprimidos ou mesmo invisíveis aos olhos da sociedade, estão na fossa. Arthur Fleck é um enjeitado da vida. Quem é que não anseia por reconhecimento? Não é isso que todos buscamos? E se ele tardar? E quantas vezes aguentaremos ficar de rastos e voltar a erguer a cabeça? Arthur Fleck lembra- nos que somos resistentes mas nem tanto. Onde está o nosso limite individual é algo que a realidade testa todos os dias. Qualquer um pode perder as estribeiras reunidas as condições para tal. Abandonado pela sorte desde que veio ao mundo, sujeito a abusos e privações, ainda assim Arthur não vive à margem da lei. Desconfiamos que já caiu no chão mais vezes do que a maioria consegue aguentar. É um estranho e deprimido cidadão de Gotham, uma cidade macilenta e hostil, tomada pelos ratos que aproveitam a greve do lixo para reinar, onde todos parecem cada vez mais loucos, onde ninguém tem empatia pelo próximo, onde todos gritam com os demais, onde ninguém é civilizado, onde "o sistema" ignora uma boa parcela de gente.
Fazer serviços de palhaço parece ser algo a que estava destinado, porque ficamos a saber que a mãe um dia lhe disse que ele tinha nascido para trazer o riso e a alegria ao mundo. No entanto essa é apenas uma forma hábil de mascarar a doença mental que ele desenvolveu: Arthur ri compulsivamente e em total e confrangedor desacordo com as emoções ditadas pelo momento. Não consegue controlar-se o que dificulta a sua interacção social. E "o pior para quem sofre de uma doença mental é saber que as pessoas esperam que o doente se comporte como se não tivesse uma". A doença explica em parte por que o filho subnutrido e dedicado que cuida da sua fragilizada mãe e que tem por divertimento único um "late night show" de comédia se isolou mais e mais.
Por muito que o palhaço pule e dance, ostentando vitalidade e alegria, Arthur por dentro é apenas amargura. Ainda que compareça a shows de stand-up comedy e tire até apontamentos como um aluno aplicado, ele é um falhado. A sua vida é um total vazio relacional e revelações sobre o seu passado apenas contribuem para o pior quando em vez de compreensão e calor humano recebe mais uma agressão pela mão de Thomas Wayne, o magnata candidato a mayor. Uma desgraça nunca vem só: perde o emprego e o apoio social, - ainda que este se revele "surdo", pouco era melhor que nada, - que esperava e necessitava da parte do "sistema". Arthur, sem medicação, é uma bomba relógio à espera de detonar. Mal se consegue segurar: tudo o que ele tem são pensamentos negativos. E com a ajuda de um falso comparsa que lhe coloca uma arma de fogo nas mãos, o equivalente de uma piada de mau gosto, a tragédia anuncia-se para breve. Ficaríamos à espera do seu fim inglório se não soubéssemos de antemão que, mais adiante, Joker irá fazer a sua entrada triunfante.
Neste ponto apetece-me dizer que não irei mais ao cinema se Joaquin Phoenix não ganhar um Oscar. A princípio parece haver em Joker um certo excesso de interpretação, dispensável, reforçado ainda pelo dramatismo do violoncelo da banda sonora. Mas a imersão de Phoenix na personagem é uma de corpo e alma. A transfiguração do actor na personagem é fenomenal. Após alguma hesitação o actor vence a nossa relutância e desfrutamos cada instante como se nunca tivéssemos visto nada assim. E não. Não que ele não o tenha feito antes, esta intensidade é habitual, mas o seu Joker permite uma exteriorização plástica das emoções levada ao extremo. Não há um movimento, um trejeito, um olhar que não sejam significativos. Ao mesmo tempo a câmara de Phillips segue Phoenix como um cão segue uma cadela no cio. Não o larga nunca, o seu corpo, o seu rosto, e nos grandes planos em que o vemos rir e soçobrar, engasgado, é tal o sofrimento, o embaraço e a impotência que comunica que é difícil não nos sentirmos profundamente incomodados e confrangidos pelas suas gargalhadas. Na sala de cinema ninguém ri. E, no final, abandonamos também a sala silenciosamente.
Como gosto ainda mais de cinema do que de Joaquin, não arrisco dizer que nunca mais irei ao cinema se não lhe derem a estatueta dourada. Há anos que aguardo que lhe atribuam um Oscar. É claro que sei que também dependerá dos concorrentes e, por vezes, de jogos que o grande público nem chega a perceber. Já há falatório em torno de grandes nomes como Robert de Niro, Leonardo DiCaprio, ou Adam Driver. Teremos de esperar para ver mas a interpretação de Phoenix é o melhor do filme de Todd Phillips. Ele é Joker, ele é o filme.
Esse Oscar de Melhor Actor para Phoenix, para mim, há muito tempo que é uma questão de tempo, algo previsível, tão previsível como saber que este filme nos traria uma história previsível ou ele não fosse ainda o Joker, mesmo sinalizado aqui para um público mais adulto. No entanto, durante talvez cerca de uma hora, o filme é muito mais sobre Arthur que Joker. É a transformação daquele neste que nos é explicada apelando por todos os meios à nossa compaixão pela criatura.
Allan Moore, o mesmo que escreveu V, de Vingança, ou Watchman, escreveu The killing joke, uma história aos quadradinhos onde Joker é um homem comum e já não um criminoso com um passado, como em anteriores bandas desenhadas. Nesse livrinho ele é um comediante fracassado e desempregado que perdeu a esposa grávida num acidente. Vem daí a empatia pelo aberrante Joker que inspirou a opção de Phillips neste seu filme. A premissa de ambos é a de que tudo o que uma pessoa precisa para enlouquecer é de um dia mau. A vida é feita de altos e baixos, todos sabemos disso, o que não é razão para desculpar um monstro. Compreender, sim. Arthur Fleck, luta para conviver com a doença mental, é abusado de toda a maneira, pelos garotos na rua, pelos seus comparsas de trabalho, e depois enfrenta o ridículo de uma cidade que vê o seu vídeo no programa humorista de Murray Franklin onde é gozado pelo anfitrião. Fica progressivamente mais enfurecido, descontrolado, e isolado na fantasia da sua própria cabeça. Porque comete um crime em directo é elevado a ícone da revolta por vigilantes que entretanto assaltam as ruas de Gotham, muito por culpa de Thomas Wayne que nomeara de "palhaços" os menos favorecidos da cidade. Arthur, um anti-herói, descobre a violência como forma de sentir controlo sobre os outros e o mundo: é assim que finalmente se sente no topo. Fica revigorado, em êxtase até, deixa finalmente de ser invisível.
Tínhamos sido quase completamente sorvidos pela compaixão por um ser que não foi bem amado e protegido e que o "sistema" encalhara de vez na vida, mas à medida que o filme progride para o final é impossível não termos sentimentos contraditórios acerca da personagem. Joker apresenta-se na TV como uma grande estrela e aplaudimos em uníssono com a audiência em estúdio, embora temerosos do desfecho, porque sabemos mais. Ou teríamos sido enganados? Apesar de já termos assistido a diversas mortes violentas, não estamos - não estava, eu - preparados para o assassinato perpetrado a sangue frio e televisionado. Somos invadidos por uma grave perplexidade. Joker justifica: "o que é que acontece quando se junta um solitário louco com uma sociedade que o abandona e trata como lixo? O merecido. " Que, no caso, é um tiro certeiro no meio da testa. Pensávamos, eu pensava, que ele tinha ensaiado o seu suicídio. Afinal, o que se lia no seu caderninho? "Espero que a minha morte faça mais sentido que a minha vida". Só que Joker percebeu no estúdio de televisão que a sua vida não era uma tragédia, era antes uma comédia. Ele assume-se finalmente como o monstro, um inimputável, um louco, o marginal, que, com uma ajudinha do poder instantâneo da televisão para construir estrelas, neste caso do crime, os oprimidos celebram como ícone na sua luta contra os privilegiados. No meio do caos das ruas de Gotham, num palco acidentado e brutal, Joker ascende à condição de um herói daquelas massas anónimas, um sinal mais do que evidente de que os habitantes de Gotham viviam cada dia mais alienados e distantes da civilidade. Arthur tinha avisado e com razão.
Joker retoca então o seu sorriso de palhaço, mas desta vez é com sangue, não a tinta, por sinal, o único momento em que algo na sua expressão do seu rosto me lembrou Heath Ledger. Adeus Arthur, olá Joker.
A velhinha discussão sobre se a violência no cinema inspira violência na vida real voltou à ribalta com Joker a somar acusações de glorificação da mesma desde a vitória em Cannes. Não deixa de ser curioso quando o que não faltam são doses elevadas de violência noutros filmes. Porquê tanta polémica quando o cinema veio habituando as plateias a mais e mais cenas duras de olhar, sempre elevando a fasquia perante a progressiva perda de impacto dessas cenas? Umas vezes a violência, embora em quantidade absurda, é declaradamente encenada, e muito pouco real, hiper-representada, outras, é tanto quanto possível transformada numa reacção quase justificada, normalizada. Os filmes violentos veiculam representações, são sempre intermediações. Permitem a repulsa ou a adesão do espectador, mas também a reflexão distanciada sobre o material violento. Em geral, e felizmente, os espectadores estão longe de vivenciar actos de violência e ao poderem observá-los na tela poderão compreendê-los e reforçar a sua condenação de actos violentos. Se Gotham não estivesse em crise e a sua população a viver afrontada pelos privilegiados, e insatisfeita até ao tutano, o homicídio violento no metro dos três jovens bem-na-vida não teria inspirado qualquer admiração e seria unanimemente condenado. Compreender isto não significa que vá subscrever o comportamento dos citadinos e desatar a roubar e aos tiros quando o custo de vida voltar a subir na minha realidade. Os filmes são sempre imagens de violência e não a violência em si. A vida não vai buscar inspiração ao cinema, é o inverso que sucede: o cinema busca inspiração na realidade. É o meu ponto de vista, claro, não o único. Seja como for, nos Estados Unidos de todos os atentados, não foi a polémica em torno da violência que afastou as pessoas dos cinemas. Joker já bateu records de bilheteira no fim-de-semana de estreia e, na opinião de muitos, ruma aos Oscars como favorito.
Sugestão de leitura:
O que é a Síndrome Pseudobulbar? "Entre as características mais marcantes da doença estão dificuldade para falar e para engolir adequadamente, alteração na movimentação dos músculos da face e da língua e labilidade emocional: riso ou choro inadequados, exagerados ou desproporcionais a um evento. "
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Comentários
Você não faz ideia do número de pessoas que lá vão,
não na esperança do ídolo ganhar nada, mas para vê-la
comer pipocas e se deliciar com o papel que ele faz
na película.
Beijos e, vamos fazer seu livro.
As inspirações estão em tudo, se a linha de pensamento por essa, as pessoas não devem bem ver o telejornal nem debates políticos... ambos são bem mais perigosos a nível de influências!!!