Tentáculos de pota: uma coisa do demónio!

Dentes dos tentáculos de pota

Portugal possui uma zona económica exclusiva de cerca de 1700000 km2 e uma linha de costa de 2.830 km. Mas muitas vezes compramos peixes e frutos do mar oriundos de mares e oceanos longínquos. De vez em quando compro tentáculos de pota congelada. Utilizo-os porque o polvo fresco é caro e o congelado tem aquele problema do excesso de água de vidragem: acabamos a comprar água ao preço de polvo. De si o bicho encolhe naturalmente na cozedura mas com os truques da água ainda é pior.  Se é para ser enganada, compro os tentáculos de pota que são mais em conta.

Hoje, quando abri uma embalagem de tentáculos de pota encontrei em algumas das protuberâncias dos tentáculos estes dentinhos que vos mostro. Surpreendida fixei o nome da espécie para investigar: no rótulo lia-se Dosidicus giga. Procurei no Google e encontrei monstros! Devia logo ter suspeitado:"Gigas" em grego quer dizer "gigante"! Incrédula, ainda me pergunto se não teria havido um erro na catalogação: será que andamos mesmo a comer tentáculos de demónios vermelhos?  É que existem mais potas grandinhas na família! 

Os tentáculos de pota  na panela de pressão, já limpos
Os tentáculos de pota depois de cozidos

👀 Vídeo  : a pesca no Mar de Cortez

O golfo da Califórnia no México, também conhecido como mar de Cortez, separa a península da Baixa Califórnia do resto do território do México. Ao ver o vídeo sobre a pesca dos "demónios vermelhos" ou potas, no mar de Cortez, nas imediações do município de mexicano de Santa Rosalía, lembrei-me que Jacques Cousteau chamou "aquário do mundo" àquele mar de fascinado com a abundante vida marinha ali existente. Pois bem, Dosidicus giga é o nome científico da lula Humboldt.  Este refere-se à corrente de Humboldt , ou corrente do Perú, que transporta água fria paralela à costa oeste americana na direcção sul-norte e fornece comida abundante - por exemplo, plancton -  à vida marinha.

Conhecido por  "jibia" no Chile, "potón" em Espanha e por "demónio vermelho" pelos mexicanos, que até o responsabilizam pelo desaparecimento de pescadores, este animal tem expandido o seu habitat de forma impressionante. Em pouco mais de dez anos invadiu as águas frias do sudeste do Ocenao Pacífico, tanto no alto mar como perto da costa. Estão presentes em diferentes latitudes do leste do Pacífico, abrangendo o norte do Alasca, através do Canadá, os Estados Unidos, México, Honduras, Guatemala, Costa Rica e Peru. A sua expansão e adaptação bem sucedida surpreendem os investigadores que continuam a procurar razões além do desaparecimento de alguns dos seus predadores por pesca intensiva, ou de alterações no oceano e clima.

Os pescadores peruanos chamam-lhe "pota", tal como nós. À medida que a pescada escasseava nas águas peruanas a pota reproduzia-se abundantemente. Por volta de 2004 começaram a pescá-la, encontrando aí uma alternativa comercial,  embora os nacionais não revelassem grande interesse pelo consumo dos seus filetes que começaram a ser exportados para os EUA com êxito e depois para a Europa. A indústria também transformava a pota em farinha para ração, bolinhos congelados ou pasta de surimi, (produto intermediário do processamento do pescado, muito utilizado no Japão e Estados Unidos para a elaboração de produtos como a carne artificial de caranguejo (kanikama), e kamaboko, chikuwa e bolinhos de peixe (fish ball) no Sudeste da Ásia) . Pelo que percebi, inicialmente os tentáculos eram usados como isco.
Fonte
A lula Humboldt  ou lula Jumbo,  é um cefalópode que pode crescer até aos 4 metros de comprimento e alcançar mais de 50 kg: um monstro. Normalmente é apanhado com 10-30 kg. Apesar de não ser o maior molusco do mundo, é o maior da família Ommastrephidae, coloquialmente chamada família das potas. Tem 8 braços com ventosas com dentes afiados. Estes braços abrem como uma estrela quando caça. Dois tentáculos, também com ventosas que ostentam anéis de dentes rendilhados, entre 100 a 200 cada um, apanham e seguram as presas impedindo que escapem e conduzem-nas ao centro, onde está a sua boca em forma de bico de papagaio, - que pode ser do tamanho de uma bola de ténis nos adultos - cheia de dentes afiados capazes de se  mover em todas as direcções.

As potas possuem excelente visão subaquática, olhos que podem até ser do tamanho de um punho. Grandes nadadoras, têm barbatanas em forma de diamante. Juntamente  com a propulsão "a jacto" usam-nas  habilmente para se deslocar na água a uma velocidade de cerca de 15 quilómetros por hora, podendo até saltar para fora dela para fugir de predadores. Por isso também lhe chamam lula voadora. Geralmente formam cardumes de acordo com a sua idade. Caçam ou sozinhas ou em grupos que podem chegar aos 200 animais.

Os "demónios vermelhos" desenvolveram  cromatóforos, isto é, células com pigmentos que lhes permitem modificar a sua cor, alternando o branco para um tom vermelho quando pescadas. Podem mostrar, fora dela,  um tom acinzentado pálido. A cor actua como camuflagem nas águas profundas, que os outros animais não conseguem ver.  Julga-se que usam também a cor para comunicar. Utilizam ainda a tinta contida na bolsa para defesa e também para reduzir a visibilidade da presa quando atacam. Cachalotes, tubarões, focas, espadartes, atuns grandes, leões marinhos e gaivotas alimentam-se da lula de Humboldt.

A Dosidicus giga vive apenas um ano e meio mas cresce depressa graças a um metabolismo rápido que exige muito alimento. Alimentam-se de tudo ao seu alcance não importando o tamanho das presas: camarão, ameijoas, peixe lanterna, pescada, anchova, etc. Por isso a sua expansão representará sempre um perigo para as outras espécies. Quando o seu alimento escasseia pode até devorar os mais jovens elementos do cardume.

Além do mais, a pota caça desde a superfície até grande profundidade.  Essa mudança da zona epipelágica à noite para a zona mesopelágica durante o dia é conhecida como migração vertical. Vive confortavelmente entre os 600-1000 m de profundidade, onde o oxigénio rareia. Por isso caça  a muita profundidade camarões e  peixes mesopelágicos que aí buscam refúgio, letárgicos pela falta de oxigénio.

Reproduzem-se com facilidade. A fêmea tem um único ciclo de reprodução e os ovos ficam envoltos numa massa flutuante que pode ter entre 0.6-2.0 milhões de ovos. Parece que cada fêmea pode produzir entre 3-20 massas durante a sua vida...

O oceanógrafo Scott Cassell, que as filmou dezenas de vezes,  considera a Dosidicus Giga inteligente e perigosa, quase alienígena. Eu considero, se é mesmo essa pota que ando a comer, que até pode ser um demónio dos mares, mas que é muito saborosa, e, por isso, aqui deixo as indicações de como preparo os tentáculos de pota congelada para quem se quiser aventurar numa jornada gastronómica sem riscos.
  • Tentáculos de pota à lagareiro
Ingredientes:

- 1 embalagem de tentáculos de pota
- 1 cebola grande
- 2-4 dentes de alho
- 1 folha de louro
- Batatinhas pequenas para assar, de preferências batatas novas
- Sal  e azeite e pimenta
- Salsa ou coentros picados, o que preferir

Preparação:

Depois de descongelar e lavar  os tentáculos de pota, coloque-os na panela de pressão e cubra com água. Junte a cebola descascada e a folha de louro e deixe cozer durante 25 minutos a partir do momento em que a panela silva.

Lave bem as batatas, eu costumo usar uma escovinha. Deixo a água ferver e coloco sal e as batatas a cozer. Depois de cozidas, escorro a água, retiro-as com uma colher pois sou muito escaldadiça e coloco-as sobre um pano de cozinha, que ajuda a absorver a água. Dou um murro rápido em cada uma para ficarem um pouco esmagadas.

Depois de arrefecida, abra a panela de pressão com cautela por causa do vapor. Retire e escorra os tentáculos da pota. Corte os tentáculos para ficarem separados. Coloque-os num tabuleiro ou pirex de ir ao forno com as batatas à volta. Pique os dentes de alho e espalhe por cima. Regue generosamente com azeite e tempere com pimenta e uma pitada de sal. Leve ao forno aquecido a 200ºC durante cerca de 5-10 minutos. Quando sair do formo salpique com salsa ou centros picadinhos. Está pronto para levar à mesa.
  • Salada fria de tentáculos de pota
Ingredientes:

1 embalagem de tentáculos de pota
1 cebola
2 folhas de louro
2 dentes de alho
azeite
sal
pickles
coentros ou salsa
pimenta
vinagre
azeite

Preparação:

Depois de descongelar e lavar  os tentáculos de pota, coloque-os na panela de pressão e cubra com água. Junte a cebola descascada e a folha de louro e deixe cozer durante 25 minutos a partir do momento em que a panela silva.

Depois de arrefecida, abra a panela de pressão com cautela por causa do vapor. Retire e escorra os tentáculos de pota. Corte os tentáculos em pedacinhos. Corte os pickles também em pedaços e pique  alhos e coentros (ou a salsa). Numa taça coloque os pedaços de tentáculos, os alhos, os pickles e a salsa (ou coentros.)Tempere com pimenta, vinagre e azeite. Misture. Leve ao frigorífico e sirva frio. Pode acompanhar com batatinhas cozidas, bróculos, e cenoura.
  • Arroz de tentáculos de pota
Ingredientes

1 embalagem de tentáculos
1 cebola
2 dentes alho
arroz (uma chávena)
(Se usar carolino ele vai absorver mais água e temperos, fica envolto num molho cremoso.)azeite
piripiri
pimenta
salsa (ou coentros)

Preparação

Depois de descongelar e lavar  os tentáculos de pota, coloque-os na panela de pressão e cubra com água. Deixe cozer durante 25 minutos a partir do momento em que a panela silva. Não necessita usar cebola nem louro, mas pode fazê-lo, se quiser. Depois de arrefecida, abra a panela de pressão com cautela por causa do vapor. Retire e escorra os tentáculos de pota. Corte os tentáculos em pedacinhos.

Pique a cebola e os alhos e refogue em azeite num tacho. Deite aí a água de cozer a pota na proporção que desejar. Prove pois pode acontecer que o caldo esteja muito salgado. Se assim for deve usar uma parte de água. Há quem prefira um arroz mais caldoso ou mais seco, pelo que deve ajustar a porção de líquido a seu gosto. Uso a medida 1 de arroz e 3 de água, por regra. Faço isto tudo a olho e resulta sempre. Junte pimenta e piri-piri, ou um ou outro, conforme gostar. Quando começar a ferver, adicione o arroz lavado e escorrido, de seguida os pedaços de pota e deixe cozer por 10 minutos, mais ou menos, controle a evaporação do líquido de acordo com a sua preferência. Se o tapar ele vai secar ainda mais. Polvilhe com salsa ou coentros frescos picados no momento de servir.

Sugestão de leitura:

Fotografias da Dosidicus giga
Dosidicus gigas, de plaga a sustituto del pulpoDosidicus gigas
A lula gigante: o ogro que invade o Pacífico
Scott Cassell - The Squid Nerd
THE RED DEMONS OF THE SEA OF CORTEZ
Humboldt squids might communicate by flashing


Comentários

Beatriz Sousa disse…
Que bicho grande!! xD
Ai um polvo à lagareiro é tão bom, mas estou como tu é caro e quando a minha mãe se lembra de comprar congelado (muito raro) lá o vemos a mingar até desaparecer.
Assim sendo, bem que lá vai de vez em quando umas lulas ou umas potas, mas dá vontade de ser rico e comer polvo à fartazana. E polvo com azeite e salsa? Ai que maravilha.