Sozinha no sotão com a tempestade Leslie
Em Abril fui forçada a fazer uma grande limpeza no sotão ainda em virtude de estragos provocados pela passagem da tempestade tropical Leslie a 13 de Outubro do ano passado. Andei a adiar a empreitada quanto pude. Mas lá tive de deitar mãos à obra.
O Leslie foi considerado o pior furacão a chegar a Portugal desde 1842, o que levou a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) a pedir aos portugueses que não saíssem à rua e retirassem os carros de debaixo das árvores para evitar danos. Foi precisamente na Figueira da Foz que a tempestade chegou a terra, pelas 22:10, e onde se registou a rajada de vento mais forte, de 176 km/hora. Todos aprendemos a dizer "landfall", isto é, o ponto onde a tempestade toca a terra. Desde que o Santana Lopes foi presidente da Câmara da Figueira que nenhum homem, coisa ou evento tinha conseguido voltar a colocar a Figueira da Foz "no mapa das atenções" de Portugal inteiro. (Aliás, pessoas de vários pontos do mundo inteiraram-se da minha segurança através do Facebook.) Nem mesmo o RFM Somnii - O maior Sunset de sempre conseguiu tamanha proeza!
As consequências podiam ter sido piores se a Leslie tivesse chegado durante o dia e durante a semana de trabalho. Apesar dos avisos sobre a tempestade se intensificar à noite e se dirigir para aquela área geográfica, o Centro Comercial Foz Plaza continuou a funcionar, o cinema a mostrar as fitas agendadas para a noite. A Carminho também estava a cantar no Centro de Arte e Espectáculos para 800 alminhas. Quando a luz faltou as pessoas foram retidas não podendo regressar a casa antes da borrasca terminar: na rua os ventos vertiginosos arrancavam o que podiam e atiravam tudo pelos ares. Não culpo ninguém pela insensatez de não estar em casa àquela hora porque não temos cultura destes fenómenos. Mas que fique na memória o que aconteceu para que no futuro os avisos dos meteorologistas sejam levados a sério no "jardim à beira mar plantado" - e parece que o futuro será pródigo em fenómenos extremos - e tomadas as medidas de protecção não apenas colectivas mas a título individual também, pois todos temos a nossa quota de responsabilidade em matéria de segurança.
Além das janelas dos sotãos do prédio, a cobertura de vidro, isto é, a claraboia que deixa entrar luz para as escadas, também foi arrancada: uma parte caiu nas escadas no último piso, restos ainda alcançaram o R/C, no hall de entrada, com estrondo. A passagem do Leslie provocou grandes estragos nos edifícios em geral e mobiliário urbano, na sinalética, e em suportes publicitários. Mas o que mais me impressionou foram as árvores partidas ao meio, e não tanto os metais retorcidos. São às centenas as que ainda permanecem inclinadas indicando a direcção que o vento soprou. Os troncos das árvores partidos pelo vento como se tivéssemos pegado em lápis e quebrado em dois ainda são visíveis para quem circula de carro na estrada nacional 109 que dá acesso à ponte embora a maioria que estava no chão já tenha sido removida. Nos dias seguintes o cheiro dos pinheiros era extremamente intenso, de tal forma que o ar que entrava dentro do carro vinha perfumado fazendo lembrar o cheirinho de um difusor ambiente ali colocado. É provável que na Serra da Boa Viagem continuem por retirar muitas árvores. Muitas foram arrancadas pela raiz, outras mantiveram-se de pé, mas quebradas a meio. Toneladas de madeira, ramos, galhos e folhas invadiram os acessos, tapando totalmente o alcatrão. O pinheiro bravo foi a espécie mais afectada pela tempestade, mas também vi fotografias que mostravam muitos eucaliptos derrubados, alguns de troncos bem largos.
No dia seguinte não faltavam telhas levantadas nos telhados e pedaços delas pelo chão de algumas ruas, a par de vidro estilhaçado das janelas, de onde estores e persianas tinham desaparecido, além de materiais de construção que foram arrancados. Muita areia da praia veio parar às estradas próximas. Contentores de lixo, carros e caravanas de campismo voltadas de rodas ao ar, carros esmagados por árvores caídas, esplanadas de restaurantes na marginal arrancadas, empresas de transformação do peixe, no porto, sem tectos. A fábrica de papel da Navigator parou por uma semana. A luz faltou, a EDP informou " estado perturbado" ou seja, muito problemático, a água também faltou. Um número enorme de desalojados. As escolas não abriram na segunda-feira, e até o Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna, veio reunir com o presidente da Câmara Municipal e coordenador do Serviço Municipal de Protecção Civil para saber de prejuízos no concelho, medidas de protecção e socorro, etc.
Se me alonguei nesta descrição é para que os meus leitores de longe se apercebam de que devem mesmo, mesmo, prestar atenção a avisos meteorológicos quando os senhores do tempo falarem em distritos do continente sob aviso vermelho, devido à previsão de vento forte, chuva e forte agitação marítima, etc. No caso da tempestade Leslie, a partir das 21 horas de sábado e até às 03 horas de domingo, era mais sensato abancar em casa, com as velas e os fósforos à mão, e as baterias do computador carregadas, do que ir ao Plaza comer pizza e ver um filme. A protecção civil até deu dicas de como minimizar os impactos da tempestade, que eu aqui reproduzo e abuso.
2 - Cuidado com as árvores - Ora bem, toda a gente pensa que as árvores morrem de pé, em especial as pessoas que assistiram à peça de teatro do dramaturgo espanhol Alejandro Casona. Infelizmente, durante tempestades assim, as árvores morrem decepadas, prostradas no chão, inteiras ou aos bocados, às mãos do vento. Quem anda à chuva, molha-se, quem anda ao vento, arrisca-se a levar com uma árvore a morrer em cima de si. Nada de ideias loucas como ir num ápice à floresta apanhar cogumelos nem mesmo se for um desejo de grávida.
3 - Evite circular na rua, particularmente junto ao mar - Aguente. Esqueça que a rua existe ou mesmo que a sua varanda existe. Não é hora de ir ao super buscar uma grade de cerveja. Ou papel higiénico. Vá fumar para a casa de banho. A sua mulher desculpará se apagar a beata no autoclismo como costumava fazer nos wc da discoteca. É uma situação de excepção. Esqueça o passeio higiénico do canídeo. É natural até que com o ruído do vento e da chuva o canídeo fique com a bexiga e os intestinos e tudo preso. Também pode ficar com tudo solto no meio da alcatifa. É uma situação de excepção. Não culpe o canídeo. Keep calm e vá fumar.
4 - Evitar qualquer actividade relacionada com o mar - Aquele desporto radical tão popular no inverno, conhecido por observação de ondas gigantes a quebrar na zona ribeirinha o mais perto de si que conseguir, não é opção de entretenimento. Se já é desaconselhável durante um inverno regular, durante um fenómeno deste calibre é coisa proibida. Se for até perto daquele molhe ou cais, é pouco provável que vá ser impedido por alguém porque o único maluco será você. Não estacione para ver se aproveita uma onda para lavar o carro já que está por ali, porque há um filme que se chama E tudo a onda levou à espera de ser escrito e pode ser você a inspiração.
5 - Garanta que caleiras e outros sistemas de escoamento estão bem limpos - É habitual que caia uma quantidade de água colossal em muito pouco tempo quando estes fenómenos ocorrem. Toca a limpar. Prenda a casota do cão não vá ser arrastada pelas águas, as bolas, os brinquedos do cão, e outras coisas que andem à solta no jardim, não vão entupir algum esgoto depois de ter andado a limpar com afinco. Não é agradável sair de casa depois da borrasca e descobrir o carro afogado na garagem. Ah! Não se esqueça de não prender o cão, leve-o para dentro de casa.
6 - Condução defensiva - Se não teve alternativa e ainda se encontra ao volante durante as horas sinalizadas pelos senhores do tempo como de risco, devagar se vai ao longe: adopte uma condução defensiva, reduzindo a velocidade e tendo especial cuidado com a possível acumulação ramos, galhos e folhas nas estradas que irá encontrar, e a formação de lençóis de água nas vias. Se estiver perto de um local que possa ser seguro, pare, estacione e abrigue-se até a situação estabilizar. A melhor condução defensiva nesta situação é estar parado. Acredite: circular nem sempre é viver.
7 - Evite as zonas inundadas - Você não tem estofo de herói e sabe-o muito bem. E ainda por cima nunca foi nadador que prestasse. Lá por isso, não queira ficar na história como uma vítima de uma tempestade que não tinha mais nada que fazer senão cruzar-se consigo na estrada. Evite atravessar zonas inundadas: aquilo que a gente não vê, não sabe. E você não é nenhum peixe. Pode ser arrastado pela corrente, a sua viatura pode ficar presa num buraco no pavimento ou numa caixa de esgoto aberta, e até pode aparecer algum monstro aquático. Fique bem, fique seco.
8 - Esteja contactável e informado - Se está em apuros comunique a sua posição para poder ser ajudado, se não está, comunique a sua posição para ajudar quem não sabe de si a sair desse apuro. Se não pode comunicar, lamento. Não é bom sinal. A trajectória de uma tempestade furibunda é muito imprevisível, pelo que o cenário pode alterar-se a qualquer momento. É um mau dia para ser apanhado sem bateria no telemóvel. Mas há boas hipóteses das comunicações falharem e de tanto fazer ter levado três Powerbank consigo como nenhum. Esteja atento às informações da meteorologia e às indicações da Proteção Civil e Forças de Segurança. Pode-se-lhe deparar um daqueles casos em que diante de si havia duas estradas, e que tenha de escolher a menos percorrida, o que fará toda a diferença.
( Desejo a todos os meus leitores que nunca tenham de passar por nada disto. Nem carregar pilhas de revistas para o Ecoponto durante um fim-de-semana solarengo. )
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