Às vezes compro brincos na Parfois



Por vezes faço compras por impulso. Não gosto disso. Já fui assim e depois deixei de ser e comecei a ponderar e a pesar cada aquisição. O dinheiro ficou cada vez mais caro desde que assumimos o euro e eu cada vez mais ciosa das minhas opções à medida que compreendei até que ponto a sociedade de consumo nos manipula. Comecei a ter horror ao acumulo de peças, à ocupação de espaço por tralhas que rapidamente perderão o seu préstimo. O quotidiano é muito mais simples quando nos reunimos de objectos essenciais e de boa qualidade, que se ajustam às nossas necessidades e que não têm um fim de vida anunciado na sua forma, cor ou  escopo atrofiado. Acreditem que é verdade.

Com isto não quero dizer que me subtraia a certos prazeres proporcionados por bens que não suprem as tais primeiras necessidades. Por exemplo, jóias. Não conheço nenhuma mulher que não goste de jóias, mesmo que não as use. Possuo algumas peças de joalharia, a maioria oferecida por pessoas queridas. O meu luxo sempre foram as viagens e quadros de pintores de nomeada mas ainda acessíveis, e por isso raras vezes pensei em gastar dinheiro nisso. Dentro da bijuteria existem materiais que aprecio muito, em especial pedras, vidros, incluindo o marinho, e resinas, ou outros, como sementes, ou até conchas marinhas. Há designers com  ideias fantásticas que me cativam como o fizeram e fazem os mestres ourives. Tive uma fase de entusiasmo por anéis de toda a espécie, em especial com pedraria e pérolas, que de vez em quando ainda vou buscar para dar colorido aos meus dedos. Ainda que tenha deixado de frequentar as ourivesarias, até porque já tenho mais anéis do que dedos, sendo anéis e brincos os meus acessórios favoritos, nunca deixei de olhar as montras para apreciar as peças. O trabalho de ourivesaria é belíssimo e por vezes as peças mais simples conseguem ser encantadoras apenas graças ao brilho ou cores de uma pequena pedra e trabalho de mestre do metal precioso.

Pois esta semana, ao passar pela montra de uma ourivesaria que costumo habitualmente espreitar, em Leira, vi um par de brincos maravilhosos. Agora ando numa fase de brincos. Não saio de casa sem vestir o lóbulo da orelha. Se olho ao espelho e falta qualquer coisa naquele furinho, feito ainda em bebé, volto atrás como quem esqueceu um guarda-chuva e nota ao botar o pé na rua que está a chuviscar.  O preço na etiqueta era visível e era daqueles que não cabe no meu orçamento. Fiquei colada ao vidro que nem um peixe limpa-vidros a suspirar pelo par de brincos e a imaginá-lo combinado com algumas camisas fresquinhas e casacos, e em todas era um complemento que ficava a matar. Deixando os meus olhos lá pregados, forcei-me a meter os pés ao caminho sem me conseguir abstrair dos brincos que eram a minha cara, num desejo de consumo tal como não tinha memória.

Parei meia dúzia de passos a seguir porque notei que tinha chegado uma mensagem e fui à bolsa procurar o telemóvel. Fiquei depois, de pé, no passeio, voltada para a rua onde os carros passavam em vagas à ordem de abertura dos semáforos, a dedilhar o ecrã. Estava neste afã quando no espaço livre entre os dois carros, mesmo à minha frente, uma mulher se aprestou a estacionar o Mercedes mais comprido que já vi. Tirei-lhe as medidas e achei que não ia caber ali. A máquina era de um preto imaculado, e limpíssima e lustrada, brilhava quase tanto como as jóias que eu acabara de ver na montra.  O carro lembrava-me um grilo, de tão negro, e o seu motor se não cantava, parecia, enquanto ela, sem esforço, manobrava. De forma inaudita a mulher encaixou o veículo à primeira. Ela olhou-me através do vidro lateral por instantes, olhos nos olhos, como se me dissesse, Estavas a pensar que eu não era capaz, Ora toma.

Aparentava ter metade da minha idade e um olhar vagamente triste que não gostaria que ela tivesse encontrado na minha cara. Concentrei-me na minha mensagem e nem a vi ir buscar o ticket de parqueamento e voltar. Quando olhei de novo em frente, ela estava dobrada, meio corpo enfiado sobre o banco traseiro a libertar o filho dos cintos de segurança e a comandá-lo a atravessar o passeio rapidamente para ficar a coberto dos tectos do edifício, que entretanto tinha começado a chover. Vestia bem, de forma ainda clássica mas moderna, em malhas pérola, caneladas. O que mais me chamou a atenção foram os sapatos de um castanho-mel brilhante com um monograma bordado,  calçados numas meias de vidro que as calças curtas de boa fazenda ajudavam a colocar em evidência. O cabelo negro e forte, estava escovado e atado em rabo de cabelo. Das orelhas pendiam um par de brincos dourados, uma espécie de folha grande de uma planta ou mesmo fungo! Oscilavam e refletiam a pouca luz de um sol escondido agora. O miúdo de telemóvel na mão, correu sem dele tirar os olhos; a mãe veio juntar-se-lhe, logo após, aconchegou-o, estendendo o seu braço esquerdo  pelos ombros estreitos, a bolsa no outro.  Seguiram lentamente. Aonde iriam? Apostei que talvez a uma consulta médica. Talvez o menino de cabelos louros fosse ao pediatra cujo nome lera na placa na parede a uns metros dali. Ou então à ourivesaria! Oh, mas era isso, só podia ser: a mulher iria decerto à ourivesaria. Entraria e demorar-se-ia muito pouco, apenas o tempo de pagar o par de brincos que já escolhera em outra ocasião. E na volta passariam por mim, o braço dela sobre os ombros do menino, o menino com os olhos no seu brinquedo electrónico preferido, e os meus encantados brincos a balançarem-se dos lóbulos das orelhas felizes dela.

Não, não seria assim. Não podia ser. Aqueles brincos não fariam sequer pandã com o look desta mulher, pelo menos não neste dia. Eram brincos de sol, não de chuva, de olhar brilhante e alegre e não triste e compenetrado. Inspirei profundamente e guardei o telemóvel na minha mala enquanto o par se afastava de mim vagarosamente. Passaram pela ourivesaria e a mãe do menino nem sequer olhou. E o menino também não porque tinha os olhos estavam presos ao brilho do telemóvel, e, além disso, nem altura ainda tinha para conseguir ver toda a beleza que se encontrava naquela montra. Talvez a mulher já tivesse todas as jóias de que precisasse, a mais  bonita delas, aquela criança. Ou talvez fosse como eu, nada dada a compras impulsivas e hoje nenhuma ida à ourivesaria estivesse nos seus planos.  O par sumiu quando dobraram a esquina e eu esqueci-me deles. Mas não do par de brincos.

Continuei o meu caminho e uns metros à frente passei pela Parfois. A Parfois, menos conhecida pela  Às vezes, mas, sim, é isso - Às vezes ou Sometimes - abriu pela primeira vez em 1994, no Porto, na Rua de Santa Catarina. Este bem sucedido projecto de uma mulher do norte, Manuela Medeiros, deve hoje estar a aproximar-se das 1000 lojas espalhadas pelo mundo. A Parfois vende acessórios para gente que se pela por estar na vanguarda da moda. Os acessórios são a coisa mais fantástica que a moda inventou para ir catar o dinheiro que as mulheres não têm mas que inventam de qualquer forma só para os ter. Qualquer uma dirá que são indispensáveis para transformar o look mais básico e insosso numa demonstração capaz da sua personalidade: brincos, anéis, colares, pulseiras, lenços, chapéus, bolsas, óculos, relógios. Não sei como é que os homens se têm aguentado sem gravatas nem alfinetes de gravata, nem botões de punho, nem chapéus, nem bengalas. E até os anéis, tão em voga num tempo mais antigo, hoje são coisas herdadas dos bisavôs e guardadas longe da vista. Penduricalhos, e afins, são coisas de mulher que muito poucos homens da nossa civilização usam a não ser porque lhes associem valor estimativo. Bem tentam os ditadores da moda incutir-lhes que são modos de afirmação pessoal, que aumentam o potencial de atracção, ou que os sintonizam com o seu tempo. Só os mais jovens e mais artísticos é que vão na cantiga. Os outros guardam o dinheiro e vão comprar presunto fumado e umas cervejas artesanais. Ou um bom relógio, no máximo dos máximos.

Na realidade os acessórios nunca vestiram as despidas nem calçaram as descalças. Vivemos todas muito bem sem eles até ao momento em que o orifício no lóbulo da orelha começa a ser um incómodo e a pedir alívio na forma de um brinco. Para mim, o dito "orifício" devia chamar-se antes "ourifício". Não se iludam: não há liga metálica que melhor case com tal desígnio que o velhinho aurum (brilhante). Substância rara e mítica, que premeia os vencedores e sela a maioria dos votos dos casais apaixonados, o ouro simboliza o Sol e produzi-lo era o sonho de todo o alquimista. Mas todas gostamos de brilhar, se não no dia-a-dia, pelo menos à noite, ou em algumas ocasiões especiais, e, por isso, não deve haver uma mulher em Portugal que não tenha entrado já numa Parfois. Uma coisa que a Parfois fez bem foi democratizar o acessório. As lojas nos shopping parecem um luxo quando se olha de longe, mas de perto os preços não esvaziam de todo os nossos bolsos, fazendo assim a  felicidade de consumo de milhares de pessoas, aqui e pelo mundo inteiro.

Em diversos museus que cobrem os tempos pré-históricos, já todos vimos colares que foram usados pelos homens e mulheres para se enfeitarem, talvez em rituais ou ocasiões especiais, feitos de simples pedra e osso trabalhado. Na Idade dos Metais surgiram outras possibilidades de criar adornos. As jóias foram sendo cada vez mais sumptuosas e artísticas e usadas para muitos propósitos, inicialmente por uma elite: como enfeite, ou símbolo de status e riqueza,  ou para demonstrar  afeição, ou ainda como protecção contra a má sorte. Nem vale a pena puxar pela cabeça. A bijuteria deve ter surgido quando alguém quis ter uma jóia ao peito e não tinha como pagar o elevado preço; e outro alguém, com ideias, começou a fabricar réplicas para satisfazer esse desejo e ganhar com isso a sua parte. Hoje já não são apenas as pessoas com baixo poder aquisitivo que usam a bijuteria. Na realidade, os designers conseguiram criar peças que são únicas pela sua originalidade, materiais e formas e que, desta feição, competem com o valor intrínseco das jóias na preferências das mulheres que podem muito bem usar as duas.

E tanta conversa para dizer o quê? Que acabei por entrar na Parfois e comprar um par de brincos a ver se deixava de pensar nos tais, os da ourivesaria. Dizem no site online - onde até já vi alguns de que gostei mais e que a loja não tinha - que são de poliuretano (plástico!) e zinco. Não os coloquei logo e ainda bem. Quando cheguei a casa e os retirei da base plástica, as duas peças de um separaram-se. O próprio fecho também é demasiado lasso para se aguentar. Teria certamente perdido o brinco se os tivesse colocado. Fiquei irritadíssima comigo, com a minha impulsividade, que tinha tido por consequência a compra de um produto defeituoso e que em nada tinha conseguido alterar a minha fixação mental nos brincos da ourivesaria. E agora? Gastar gasolina para ir à loja trocar as pecinhas ou comprar Super-cola 3 para consertar não vale a pena: os brincos custaram menos que qualquer das hipóteses. Fui ao site da Parfois ver se os podia devolver por correio e pedir outros. Mas entretanto desisti de fazer isso pois é melhor examinar com dois pares de olhos o próximo par. Tenho um mês para voltar a passar pela loja e resolver a situação.



Tudo isto avivou na minha memória um enxovalho recebido há uns meses. Estava a almoçar no Porto, cidade onde nasceu a Parfois, quando uma conhecida minha notou os meus brincos, dizendo que eram giros. Perguntou, como não podia deixar de ser, se os tinha comprado na Parfois. Eu disse que não, que os tinha comprado na "Chinois". Ela não percebeu a piada. Começou por dizer que nunca tinha ouvido falar dessa loja, era onde, a Chinois, quis saber se tinha site online, etc.  E até pegou no telemóvel, que descansava sobre a mesa enquanto nos deliciávamos com um suculento peito de frango assado com alho francês, ali num restaurante minúsculo à Rua das Flores, para o consultar. Desatei a rir. Talvez fosse o entusiasmo vínico a inflar a minha sonora risada, e não o meu espírito trocista, mas a gargalhada saiu  demasiado opulenta para o exíguo espaço. Acalmei-me e esclareci, baixinho: Nos chineses, minha tola. Ui, o que eu fui dizer. MAS TU COMPRASTE ISSO NOS CHINOCAS? - inquiriu, poisando até os talheres no prato, como se eu tivesse infringido algum código de conduta. Comprei, claro que comprei. Tenho uns iguais que me deu a minha mãe, em ouro. Mas tenho receio de os perder. Não me digas que agora já não gostas. Ela levou o copo de Porca de Murça Tinto à boca e depois mudou de assunto. O facto é que os brincos dourados comprados "na Chinois" continuam dourados, os fechos não perderam força, nem oxidaram, nem me causaram alergia. Já este par de não sei o quê, saído das mãos dos designers da afamada Parfois, vai forçar-me a fazer nova visita a uma loja qualquer para os trocar...

Ainda não me esqueci dos brincos da ourivesaria, nem mesmo escrever sobre o assunto exorcizou o sonho de consumo. Quando voltar a passar por lá, sei que irei novamente namorá-los à janela. ♥♥♥

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