Turismo nuclear: vamos todos de viagem a Chernobyl?
Publicidade que apareceu no meu Facebook: "Traga 3 amigos e visite Chernobyl de graça." |
Em Abril próximo serão decorridos 33 anos sobre o dia em que o reactor 4 de Chernobyl explodiu e ardeu por dez dias. De vez em quando sou aliciada no Facebook por publicidade de uma empresa de excursões da Ucrânia, a Chernobylwel, que faz tours diversas a Chernobyl e à Zona de Exclusão. Pensava até que fosse a única mas existem outras, por exemplo, a Chernobyl Tour ou a Tourkiev. Lembrando-me bem de como Mikhail Gorbachev comunicou o desastre nuclear mais sério até então, e desconhecendo a existência da oferta deste "turismo nuclear", fiquei incrédula. Seria seguro ir? Mas quem é que em seu juízo perfeito poderia ter interesse em visitar um local tão carregado de medo, dor e sofrimento? E, além da radioactividade, não poderiam os edifícios colapsar a qualquer momento e cair-nos em cima?
As tours a Chernobyl oferecem uma visita por memoriais a cidades e vilas mortas, e a edifícios abandonados de Pripyat - uma piscina, um hospital, uma escola, um jardim de infância, uma delegacia de polícia e um parque de diversões, - cujas fotos abundantes na internet evidenciam a pilhagem subsequente ao desastre por ladrões sem medo que terão espalhado por toda Rússia objectos contaminados! Inicialmente dissuadidos pela presença das operações de descontaminação e patrulha do exército, com o relaxe deste ou sua saída, encontraram o caminho livre. Mas há quem afirme que o próprio exército e polícia contribuiram. As ruas estão desertas: automóveis, veículos militares e outra maquinaria usada nas limpezas, tudo foi desmantelado e enterrado ou colocado em cemitérios de sucata, que aparentam também evidência de pilhagem. A estação de radar militar secreta, Duga 3, que todos ali acreditavam ser um campo de escuteiros, e era afinal o local onde fora erigido o Duga 3 ou "Pica-pau russo", uma antena que se tornou um símbolo da guerra fria, dantes ultra-secreto, agora está à mercê do olhar do visitante. Os guias explicam ainda os meandros da propaganda comunista e seus artefactos - edifícios, sinais, slogans e técnica militar. Prometem uma experiência da atmosfera comunista única, a hipótese de dirigir uma UAZ ou Lada e fazer fotos em uniformes comunistas ou treino em tiro com AK47! Outros fazem subir drones em Pripyat e os visitantes, com equipamento especial, um visor, observam a filmagem no momento. Outras tours oferecem a visita a vilas mais afastadas e a hipótese de conhecer os "retornados", ou "samosley", o seu modesto viver. As excursões privadas podem mostrar em maior pormenor Chernobyl, incluindo a sala de controle e o bunker subterrâneo. É ainda possível alimentar peixes-gatos gigantes em piscinas radiocactivas e jantar na cantina da central. E até cursos de sobrevivência à radiação são oferecidos e e possível comprar um souvenir num quiosque.
As viagens a Chernobyl foram notícia em 2004 mas creio que se tornaram mais populares a partir de 2012, ano em que o sarcófago foi recoberto por uma nova estrutura de protecção que se espera garantir a segurança do mundo por mais 100 anos. Em 2018 essas obras de confinamento chegaram ao fim mas a limpeza total só estará concluida em 2065. Os comentários muito favoráveis dos visitantes nos sites da especialidade surpreenderam-me. Nenhum dizia que se estava a transformar num mutante e a desenvolver poderes extra! Quem os lesse diria até que tinham visitado Roma ou qualquer outra cidade impactante por sua monumentalidade ou cultura: "É emocionante estar num local tão repleto de história! Uma experiência de vida!" ou "Um ambiente de tirar o fôlego. Tenho certeza que você não vai se arrepender de ter viajado até aqui por um segundo. "ou "É impossível descrever este lugar, precisa ser sentido." ou ainda, " (...) embora seja um ótimo lugar para visitar, deve notar-se que muitas pessoas perderam suas vidas nesta tragédia e muitas outras tiveram suas vidas viradas do avesso ao serem evacuadas de Pripyat, nunca devemos esquecer o sofrimento das pessoas." Os visitantes são guiados por gente competente, que sabe entreter e informar sobre o local. Muitos viajantes dizem querer voltar! Pergunto-me é se os habitantes das cidades próximas por onde passam de mochila e em grupo gostarão deste corropio de carrinhas. O que pensarão destes turistas maioritariamente estrangeiros que estão ali para remexer aquela ferida, que, embora selada à superfície, continua e continuará a doer no coração de muitos russos?
Na altura do acidente, a radiação em Pripyat chegou aos 500 000 microsieverts. Hoje os valores rondam os 0,62 microsieverts por hora, o dobro da radiação habitual numa cidade como Londres. Mas existem zonas onde a radiação é muito forte e onde uma estadia prolongada e descuidada pode acarretar perigo. Observadas as regras e as instruções dos guias, li nos sites de viagens que a exposição a radiação numa viagem de 10 horas na Zona é equivalente à de um voo transatlântico. Um organismo saudável possui, inclusivamente, mecanismos para lidar satisfatoriamente com a radiação, isto é, dentro de certos níveis a que, aliás, estamos expostos desde o nascimento. No entanto, visitar Chernobyl não é bem a mesma coisa que ir visitar a cidade destruida de Pompeia. Há indicações para levar roupa que cubra a maior parte do corpo, calçado com solas robustas. Nem pensar em pousar qualquer mochila ou equipamento no chão, ou sentar-se aí, ou tocar em edifícios e objectos, carrega-los consigo, tocar em plantas, comer bagas! À saída da visita as pessoas passam por um scanner para detectar radioactividade. Se estiver contaminada tem de ficar em quarentena; objectos contaminados são confiscados para descontaminação. Também aconselham a adquirir um dosímetro para medir a exposição à radiação. Ir a Chernobyl sem um é o mesmo que ir ao S. João do Porto sem um martelinho! Perante tudo isto, é óbvio que prefiro ir a Viena de Áustria comer uma fatia de sachertorte. Ou então jogar dez horas de S.T.A.L.K.E.R. Shadow of Chernobyl! Na minha memória a imagem de uma floresta de pinheiros, em torno do reactor, que se tornou vermelha e depois morreu, continua viva. Para mim, ficou para sempre como o símbolo de Chernobyl. E o colapso de Chernobyl ficaria na História como símbolo da decadência da União Soviética.
"Uma experiência reveladora do mundo pós-apocalíptico" |
Existem relatos comoventes de pessoas que estão a escolher habitar na orla da zona proibida por ser a área mais barata da Ucrânia e um lugar de paz, por comparação àquele de onde vieram. Maryna Kovalenko, tem duas filhas. Vivem a 30km da Zona de Exclusão, numa casa em ruínas. Têm uma horta e criam animais para subsistência. A água vem de um poço e tem de ser fervida. A escola fica a 5km. Fugiram da zona este da Ucrânia para escapar às balas entre pró-separatistas russos e militares ucranianos. Uma vez as meninas foram apanhadas no fogo a caminho de casa, vindas da escola. Maryna ponderou os riscos da radiação: "Radiation may kill us slowly, but it doesn't shoot or bomb us," says Maryna. "It's better to live with radiation than with war". A radiação pode matar-nos lentamente, mas não atira em nós nem nos bombardeia.", diz Maryna." É melhor viver com radiação do que com a guerra. " (Texto integral, em inglês, nas sugestões de leitura.)
Dos 600 trabalhadores que estavam no local, 134 desenvolveram a doença da radioactividade na sua forma aguda. 600,000 pessoas receberam certificados como "likvidátors" ou "liquidadores", ou seja, pessoal afecto às operações de contenção e minimização de riscos. Eram, na sua maioria, militares, muitos na reserva, mas também polícias, operários, mineiros, universitários, especialistas em engenharia e física nuclear, e civis, que tiveram de prover à descontaminação do bloco do reactor, local e estradas circundantes. De entre as suas tarefas, também o abate de todos os animais, os cães e gatos que tinham ficado para trás, a descontaminação de fachadas e a remoção e substituição de solos. Também o abate de toda a "floresta vermelha" que foi enterrada. Deitar-lhe o fogo não era solução pois o fumo libertaria mais radioactividade. E ainda a construção do sarcófago. As operações foram concluidas em 1990. O total de mortes da tragédia é extremamente controverso. Mais de três décadas depois do acidente, o balanço de vítimas continua a ser alvo de polémica.
Quando a tragédia se abate sobre a humanidade, o heroismo vem subtrair-nos da nossa costumeira mediania. As histórias de valentia e abnegação de muitos homens e mulheres que acorreram a Chernobly inspiram-nos respeito e comoção até hoje. Por exemplo, os pilotos dos 80 helicópteros que sobrevoaram vezes sem conta o reactor a baixa altura, por entre calor e radiação infernais para lançarem sacos de areia e argila com chumbo e boro. Foram mais de 4.000 voos. Quando no dia seguinte voltavam aos seus helicóteros, a relva no chão, à volta, tinha-se tornado amarela. Nas limpezas de detritos, em ambiente radioativo tão inóspito onde nem as máquinas conseguiam trabalhar, avançaram os homens, sem equipamentos à prova de fogo, máscaras, luvas ou botas especiais que os protegessem da radiação, que ganharam assim o nome de bio-robots. Embora louvados pelos soviéticos e o mundo inteiro, foram praticamente ignorados a partir da queda da URSS, e os sobreviventes ainda hoje reinvindicam assistência médica e social, continuamente, não poupando críticas ao governo ucrâniano. Com o decurso do tempo, zonas que tinham o selo de "evacuadas" passaram a "zona habitável" e quando isso acontece os residentes perdem benefícios. Assim foi em Julho de 2016. Das 4.413 localidades russas afectadas pelo acidente de Chernobyl, 383 viram as suas subvenções diminuírem por cortes orçamentais ou então desaparecerem. Pacientes com doenças causadas ou agravadas por radiação, deixaram de poder pagar os seus medicamentos.
O acidente suscitou importantes discussões políticas sobre o uso da energia nuclear e políticas energéticas nacionais e evidenciou a necessidade de coordenação e cooperação internacionais quando se perspectivem perigos para o ambiente. Na sequência, a ONU desenvolveu acordos internacionais e medidas diversas para emergências nucleares. Chernobyl levou a comunidade científica a debruçar-se a fundo sobre os impactos da energia nuclear e deu base, pelo menos em teoria, para que os países que exploram (ainda) o nuclear se pudessem preparar melhor para a possibilidade de um acidente nuclear. A muitos deu um argumento para pressionar a busca e opção por fontes energéticas alternativas, menos misteriosas e com menor risco para o planeta e a espécie humana. E cimentou na minha geração o total horror e desconfiança em relação à energia nuclear, que a estreia do filme The Day After, em 2003, sobre um conflito nuclear e sorte dos sobreviventes, já havia despertado anos antes. O acidente nuclear de 2013, em Fukushima, reacendeu uma preocupação que entretanto parecia tão enterrada sob cimento e chumbo quanto o reactor4.
Compreendo que a transfiguração da paisagem natural e construida em consequência do desastre, passagem do tempo e acção dos elementos, possa exercer um certo atractivo, um pouco mórbido, é certo, e promover até um forte convite ao conhecimento de como e o que aconteceu ali, e à reflexão acerca do necessário equilíbrio entre ciência, tecnologia e a ambição humana, e do lugar que ocupamos no planeta, válida hoje e no futuro. Por isso, visitar Chernobyl poderá ser útil, para não esquecer e perpetuar lições aprendidas, sabendo que um dia, Prypiat será demolida e desaparecerá. Mesmo assim, causa-me uma certa repulsa a ideia de Chernobyl estar a ser transformada num quase parque temático onde Youtubers possam gravar videos em frente ao Luna Park, envergando uma tshirt com a roda mais sinistra do planeta Terra e comprar brincos com os símbolos da radioactividade, afinal relativizando esta, encarada como algo com que até se pode conviver e brincar. Chernobyl, não, obrigada. Prefiro ir a Viena de Áustria comer uma fatia de sachertorte. E vocês?
Sugestões de leitura:
O livro Vozes de Chernobyl pode ser adquirido online, na WOOK. Svetlana Alexievich, Nobel da Literatura em 2015, jornalista, é a autora deste livro publicado em língua russa originalmente em 1997, após uma década de investigação no local em que Svetlana ouviu mais de 500 pessoas: os habitantes das aldeias em torno de Chernobyl, os bombeiros que acudiram ao local, os soldados e os sobreviventes, os familiares e amigos daqueles que morreram. Desses depoimentos, mais de 100 estão neste livro.
O livro Manual for survival: a Chernobyl guide to the future, de Kate Brown, pode ser adquirido online, na WOOK.
Synopsis. The official death toll of the 1986 Chernobyl accident, 'the worst nuclear disaster in history', is only 54, and stories today commonly suggest that nature is thriving there. Yet award-winning historian Kate Brown uncovers a much more disturbing story, one in which radioactive isotopes caused hundreds of thousands of casualties, and the magnitude of this human and ecological catastrophe has been actively suppressed.
Based on a decade of archival and on-the-ground research, Manual for Survival is a gripping account of the consequences of nuclear radiation in the wake of Chernobyl - and the plot to cover it up. As Brown discovers, Soviet scientists, bureaucrats, and civilians documented staggering increases in cases of birth defects, child mortality, cancers and a multitude of life-altering diseases years after the disaster.
Worried that this evidence would blow the lid on the effects of massive radiation release from weapons-testing during the Cold War, scientists and diplomats from international organizations, including the UN, tried to bury or discredit it. Yet Brown also encounters many everyday heroes, often women, who fought to bring attention to the ballooning health catastrophe, and adapt to life in a post-nuclear landscape, where dangerously radioactive radioactive berries, distorted trees and birth defects still persist today.
An astonishing historical detective story, Manual for Survival makes clear the irreversible impact of nuclear energy on every living thing, not just from Chernobyl, but from eight decades of radiaoactive fallout from weapons development.
Exposição de fotografia online: Reactor4.be, by Thierry Buysse
Chernobyl: onde vivem fantasmas e floresce o turismo, por Viana Maia
The Chernobyl story by Andrew Leatherbarrowa
Chernobyl, Pripyat , RARE FOOTAGE OF 1986-1988 Part 2 - video
Chernobyl - Drone Footage Reveals an Abandoned City 2016- video drone
GHOST TOWN of Pripyat in summer 1986 - video
Half-Lives: The Chernobyl Workers Now
A central nuclear fica a 15 km da cidade de Chernobyl -onde ainda hoje vivem trabalhadores da central, - no norte da Ucrânia, a 16km da fronteira com a Bielorrússia e a 110km da capital da Ucrânia, Kiev. Na era soviética chamava-se Central Lenine. Foi construida junto ao rio Pripyat. Ao lado cresceu uma cidade, Pripyat, para alojar 50,000 trabalhadores da central, staff, familiares, etc. Era, portanto, uma cidade nova, os habitantes orgulhavam-se de haver roseiras por todo o lado, e da central reputada como das melhores até então construidas. Seria uma das mais potentes, se o desastre não tivesse inviabilizado a finalização do projecto.
Na madrugada do dia 26 de Abril de 1986, um dia quente e primaveril, uma explosão - inicialmente apontada a erro humano grosseiro, mas que depois revelou ter outras causas, por exemplo, o design do reactor - num reactor e incêndios na central nuclear, causaram uma libertação radioativa descontrolada sem precedente na história da indústria nuclear civil. Uma explosão de vapor deixou o núcleo exposto, combustível nuclear foi vaporizado para os céus, grafite radioactiva espalhou-se em redor. O impacto foi o equivalente a dez bombas de Hiroxima, pelo menos. Num raio de 100km a partir do reactor a contaminação foi muito elevada. Ao longo de uma dezena de dias as pessoas em geral foram expostas aos isótopos radioactivos. O iodo radioativo I-131 foi o principal contribuinte para afecções da tiróide, recebido principalmente através de irradiação interna dentro de algumas semanas após o acidente, enquanto que o 137Cs foi, e ainda é, porque continuaria activo por décadas, embora em baixas doses, o principal contribuinte para afecções outros órgãos e tecidos. Grandes quantidades de iodo radioativo e césio depositaram-se por perto, ou foram transportados por correntes de vento sobre a Federação Russa e Ucrânia e sobre partes da Europa. Foi a Bielorrússia que suportou os principais efeitos do maior desastre tecnológico do Século XX.Um território de 150,000 km2 onde residiam 5 milhões de pessoas foi contaminado com césio.
No dia fatídico, apesar dos habitantes sentirem um gosto estranho na boca, metálico, e de haver técnicos na rua a medir a radioactividade, as mães empurravam carros de bebé, crianças brincavam na rua, outras estavam na escola. Realizaram-se casamentos. Mas as estradas foram cortadas para que ninguém passasse e informasse o exterior. Imagens desta normalidade podem ser vistas em video (Ver abaixo): o original está num Museu da Ucrânia, notando-se o filme corroído pela radiação. Ao princípio da noite havia muita gente nas varandas a observar um estranho brilho nos ceús com origem no reactor. A notícia do desastre corria de boca em boca mas não a dimensão da sua gravidade. Os líderes políticos ainda pensavam que podiam esconder o sucedido mas os cientistas acabaram por fazê-los perceber a gravidade e a ordem de evacuação "temporária" foi dada a meio da manhã de Domingo, sem indicação do perigo real para evitar alarmismo. 1000 autocarros chegariam a Pripyat, a partir de Kiev, e mais vindos de toda a Ucrânia. A fila da evacuação chegou aos 120km. Ordeiramente, as pessoas deixaram tudo e foram distribuídas por cidades e vilas ainda próximo e algumas, após novos dados sobre a contaminação, relocalizadas dias depois. Outras, insatisfeitas e apreensivas, foram a pé, para mais longe, mulheres, crianças, sem nada mais do que uma mala de mão com alguns pertences. No total, 360.000 mil (135.000 inicialmente) pessoas terão sido evacuadas. A deslocalização foi, só por si, dramática. A isso somaram-se os impactos no ambiente e na saúde física e mental da população de vários países, na economia, muito dificilmente contabilizáveis.
Os homens da central fizeram o que podiam para conter o desastre impossível. Os bombeiros que atacaram os fogos, vindos de Pripyat e de Chernobyl, rapidamente ficaram doentes e ao serem hospitalizados em Pripyat contaminavam os médicos com a radioactividade dos seus corpos. O mesmo acontecia com os condutores de ambulâncias. Não usavam máscaras nem roupa adequada: trabalharam em mangas de camisa. Ficavam até sentirem um gosto metálico na boca, era o sabor da radiação. Os pacientes mais severamente afectados, pessoal da central e socorristas, mais tarde seriam transferidos para Moscovo, para morrer em condições horrendas, os corpos inchados e engolidos pela dor, sangue a ser expelido por todos os orifícios, a pele a cair aos bocados, que ficava preta, os orgãos internos liquefeitos, que eram expelidos em pequenos pedaços pela boca. Muitos foram assistidos por militares, já que o pessoal de enfermagem se recusava a aproximar. Foram a enterrar em urnas de zinco seladas, debaixo de lajes de cimento.100,000 pessoas foram atendidas nos cuidados de saúde nos dias seguintes à explosão. Só a 28 o mundo descobriu o sucedido: numa central nuclear na Suécia foram detectados valores elevados de radiação e julgou-se que tinha começado uma guerra ou que havia uma fuga na própria central. Depois a Finlândia e a Noruega também obtiveram registos de leituras anormais. A radiação chegou aos EUA e Canadá: Chernobyl tornara-se um problema do mundo inteiro. A 1 de Maio a população de Kiev festejou na rua o feriado ignorantes dos níveis elevadíssimos de radiação. Moscovo cedeu no silêncio apenas a 14 de Maio.
A vida em Pripyat, 26 de Abril de 1986 |
Os homens da central fizeram o que podiam para conter o desastre impossível. Os bombeiros que atacaram os fogos, vindos de Pripyat e de Chernobyl, rapidamente ficaram doentes e ao serem hospitalizados em Pripyat contaminavam os médicos com a radioactividade dos seus corpos. O mesmo acontecia com os condutores de ambulâncias. Não usavam máscaras nem roupa adequada: trabalharam em mangas de camisa. Ficavam até sentirem um gosto metálico na boca, era o sabor da radiação. Os pacientes mais severamente afectados, pessoal da central e socorristas, mais tarde seriam transferidos para Moscovo, para morrer em condições horrendas, os corpos inchados e engolidos pela dor, sangue a ser expelido por todos os orifícios, a pele a cair aos bocados, que ficava preta, os orgãos internos liquefeitos, que eram expelidos em pequenos pedaços pela boca. Muitos foram assistidos por militares, já que o pessoal de enfermagem se recusava a aproximar. Foram a enterrar em urnas de zinco seladas, debaixo de lajes de cimento.100,000 pessoas foram atendidas nos cuidados de saúde nos dias seguintes à explosão. Só a 28 o mundo descobriu o sucedido: numa central nuclear na Suécia foram detectados valores elevados de radiação e julgou-se que tinha começado uma guerra ou que havia uma fuga na própria central. Depois a Finlândia e a Noruega também obtiveram registos de leituras anormais. A radiação chegou aos EUA e Canadá: Chernobyl tornara-se um problema do mundo inteiro. A 1 de Maio a população de Kiev festejou na rua o feriado ignorantes dos níveis elevadíssimos de radiação. Moscovo cedeu no silêncio apenas a 14 de Maio.
Dos 600 trabalhadores que estavam no local, 134 desenvolveram a doença da radioactividade na sua forma aguda. 600,000 pessoas receberam certificados como "likvidátors" ou "liquidadores", ou seja, pessoal afecto às operações de contenção e minimização de riscos. Eram, na sua maioria, militares, muitos na reserva, mas também polícias, operários, mineiros, universitários, especialistas em engenharia e física nuclear, e civis, que tiveram de prover à descontaminação do bloco do reactor, local e estradas circundantes. De entre as suas tarefas, também o abate de todos os animais, os cães e gatos que tinham ficado para trás, a descontaminação de fachadas e a remoção e substituição de solos. Também o abate de toda a "floresta vermelha" que foi enterrada. Deitar-lhe o fogo não era solução pois o fumo libertaria mais radioactividade. E ainda a construção do sarcófago. As operações foram concluidas em 1990. O total de mortes da tragédia é extremamente controverso. Mais de três décadas depois do acidente, o balanço de vítimas continua a ser alvo de polémica.
Quando a tragédia se abate sobre a humanidade, o heroismo vem subtrair-nos da nossa costumeira mediania. As histórias de valentia e abnegação de muitos homens e mulheres que acorreram a Chernobly inspiram-nos respeito e comoção até hoje. Por exemplo, os pilotos dos 80 helicópteros que sobrevoaram vezes sem conta o reactor a baixa altura, por entre calor e radiação infernais para lançarem sacos de areia e argila com chumbo e boro. Foram mais de 4.000 voos. Quando no dia seguinte voltavam aos seus helicóteros, a relva no chão, à volta, tinha-se tornado amarela. Nas limpezas de detritos, em ambiente radioativo tão inóspito onde nem as máquinas conseguiam trabalhar, avançaram os homens, sem equipamentos à prova de fogo, máscaras, luvas ou botas especiais que os protegessem da radiação, que ganharam assim o nome de bio-robots. Embora louvados pelos soviéticos e o mundo inteiro, foram praticamente ignorados a partir da queda da URSS, e os sobreviventes ainda hoje reinvindicam assistência médica e social, continuamente, não poupando críticas ao governo ucrâniano. Com o decurso do tempo, zonas que tinham o selo de "evacuadas" passaram a "zona habitável" e quando isso acontece os residentes perdem benefícios. Assim foi em Julho de 2016. Das 4.413 localidades russas afectadas pelo acidente de Chernobyl, 383 viram as suas subvenções diminuírem por cortes orçamentais ou então desaparecerem. Pacientes com doenças causadas ou agravadas por radiação, deixaram de poder pagar os seus medicamentos.
Quando o governo da Ucrânia autorizou a actividade turística em Chernobyl, em 2011, além da evidente fonte de receita que ali se esperava vir a gerar, o objectivo foi também manter vivo o interesse do mundo por Chernobyl já que para a manutenção da segurança do reactor era necessário dinheiro que o governo ucrâniano não possuia. A presença de turistas contribuía também para a desmistificação do perigo da radiação e do nuclear que nem a passagem do tempo amenizou na cabeça de muitos, e, possivelmente, são estes os que estão certos. Saberemos efectivamente o suficiente sobre o impacto da radioactividade sobre o ambiente e o corpo humano? O público em geral, a população que viveu o desastre, os seus descendentes, não estão preparados para acreditar ainda nos dados mais tranquiilizadores da ciência, exceptuando os temerários turistas de países mais longínquos, que não param de agendar e recomendar uma viagem a Chernobyl. A área fortemente contaminada tenderá, ao longo do tempo, a ser menor, pois a radiação decai. Mas li que só dentro de 20,000 anos é que Pripyat poderá ser novamente habitável. Já o interior do reactor, com a sua sinistra e letal "Pata de elefante", massa composta de "corium", uma mistura de combustível nuclear radioativo, metal derretido oriundo de equipamentos e de outros elementos associados ao combustível, manter-se-á radiocativo por mais 100,000 anos. Só se estivesse desesperada é que iria viver para as proximidades de um tal lugar. Infelizmente, muitos, estão.
O imprescindível contador Geiger |
Compreendo que a transfiguração da paisagem natural e construida em consequência do desastre, passagem do tempo e acção dos elementos, possa exercer um certo atractivo, um pouco mórbido, é certo, e promover até um forte convite ao conhecimento de como e o que aconteceu ali, e à reflexão acerca do necessário equilíbrio entre ciência, tecnologia e a ambição humana, e do lugar que ocupamos no planeta, válida hoje e no futuro. Por isso, visitar Chernobyl poderá ser útil, para não esquecer e perpetuar lições aprendidas, sabendo que um dia, Prypiat será demolida e desaparecerá. Mesmo assim, causa-me uma certa repulsa a ideia de Chernobyl estar a ser transformada num quase parque temático onde Youtubers possam gravar videos em frente ao Luna Park, envergando uma tshirt com a roda mais sinistra do planeta Terra e comprar brincos com os símbolos da radioactividade, afinal relativizando esta, encarada como algo com que até se pode conviver e brincar. Chernobyl, não, obrigada. Prefiro ir a Viena de Áustria comer uma fatia de sachertorte. E vocês?
Sugestões de leitura:
O livro Vozes de Chernobyl pode ser adquirido online, na WOOK. Svetlana Alexievich, Nobel da Literatura em 2015, jornalista, é a autora deste livro publicado em língua russa originalmente em 1997, após uma década de investigação no local em que Svetlana ouviu mais de 500 pessoas: os habitantes das aldeias em torno de Chernobyl, os bombeiros que acudiram ao local, os soldados e os sobreviventes, os familiares e amigos daqueles que morreram. Desses depoimentos, mais de 100 estão neste livro.
O livro Manual for survival: a Chernobyl guide to the future, de Kate Brown, pode ser adquirido online, na WOOK.
Synopsis. The official death toll of the 1986 Chernobyl accident, 'the worst nuclear disaster in history', is only 54, and stories today commonly suggest that nature is thriving there. Yet award-winning historian Kate Brown uncovers a much more disturbing story, one in which radioactive isotopes caused hundreds of thousands of casualties, and the magnitude of this human and ecological catastrophe has been actively suppressed.
Based on a decade of archival and on-the-ground research, Manual for Survival is a gripping account of the consequences of nuclear radiation in the wake of Chernobyl - and the plot to cover it up. As Brown discovers, Soviet scientists, bureaucrats, and civilians documented staggering increases in cases of birth defects, child mortality, cancers and a multitude of life-altering diseases years after the disaster.
Worried that this evidence would blow the lid on the effects of massive radiation release from weapons-testing during the Cold War, scientists and diplomats from international organizations, including the UN, tried to bury or discredit it. Yet Brown also encounters many everyday heroes, often women, who fought to bring attention to the ballooning health catastrophe, and adapt to life in a post-nuclear landscape, where dangerously radioactive radioactive berries, distorted trees and birth defects still persist today.
An astonishing historical detective story, Manual for Survival makes clear the irreversible impact of nuclear energy on every living thing, not just from Chernobyl, but from eight decades of radiaoactive fallout from weapons development.
Exposição de fotografia online: Reactor4.be, by Thierry Buysse
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The Chernobyl story by Andrew Leatherbarrowa
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Half-Lives: The Chernobyl Workers Now
Amazing un-seen photos from the Chernobyl disaster (Page 5) - fotografias
The people who moved to Chernobyl, by Zhanna Bezpiatchuk
Chernobyl, 32 years later: one man's life lived deep in the exclusion zone, by Waine O' Connor
Chernobyl: the true scale of the accident, by WHO (World Health Organization)
The people who moved to Chernobyl, by Zhanna Bezpiatchuk
Chernobyl, 32 years later: one man's life lived deep in the exclusion zone, by Waine O' Connor
Chernobyl: the true scale of the accident, by WHO (World Health Organization)
Comentários
Muitos parabéns pela forma clara e interessante como abordaste este tema. Fiquei presa a ele do início ao fim.
Quando o desastre aconteceu, eu nem sequer tinha nascido. Acho que a primeira vez em que ouvi falar dele era já adolescente e a forma como foi abordado não foi em tom de gravidade. Foi meramente informativo, sem grandes pormenores e sem esta sensibilização que o teu texto oferece (acho que é por esta falta de sensibilização que as pessoas começaram a visitar o sítio).
Tal como tu tenho pouco interesse neste tipo de viagem. Tenho todo o interesse e vontade em visitar um campo de concentração, como por exemplo Auschwitz, mas não conseguiria ir a Chernorbyl. A série impressionou-me imenso. Tenho receios devido à radiação. Mas acima de tudo, seria horrível visitar uma cidade fantasma de onde as pessoas foram obrigadas a sair, deixando tudo para trás. Acreditando sempre que iriam voltar. Ora, se essas pessoas nunca poderão voltar a sua casa, que direito temos nós de o fazer?
Obrigada por todas as referências que deixaste no fim. O livro já conhecia :). As restantes irei ler/ver com toda a atenção.
Obrigada por este fantástico texto e pelo detalhe que lhe ofereceste.