A blogosfera morreu, está em coma ou sobrevive?



De vez em quando um iluminado lembra-se de dizer que vem aí o fim do mundo. O ano passado, o americano David Meade, que se afirma  " cristão numerólogo", (?) especializou-se nesses anúncios.  Ora dizia que ia acontecer, ora dizia que afinal o fim do mundo estava atrasado, que só daí a uns meses é que chegaria. O tempo passou e ainda cá estamos todos, menos aqueles para quem o mundo, efectivamente, acabou.

De igual forma, há muitos anos, também, de vez em quando, alguém se lembrava de dizer que a blogosfera tinha acabado. Mas ela continuava lá, nesse e nos dias seguintes. Ultimamente já ninguém faz esse tipo de anúncio o que pode levar a questionar se a blogosfera morreu, se está em coma ou se está viva. A primeira vez que me recordo de tal anúncio deve ter sido em 2007 ou 2008, a propósito de um encontro de bloggers portugueses: era um dos temas a abordar. Por essa altura eu mantinha o blogue Palavras-Cruzadas e outros blogues, e já tinha enterrado uns quantos, inclusivé o primeiro, baptizado Furor scribendi, o que significa mania de escrever, talvez por ter achado o título demasiado rebuscado. Guardei alguns dos textos: são as primeiras entradas do Palavras-Cruzadas onde encontro a menção "retirado de blogue extinto", ou qualquer coisa assim.

Lia-se, então, em 2008, na Wired: "Escrever um blog hoje não é a ideia brilhante que foi há quatro anos. A blogosfera, outrora um oásis refrescante de auto-expressão despretensiosa e pensamento inteligente, foi inundada por um tsunami de disparates pagos. Jornalistas baratos e campanhas de marketing clandestinas abafam agora as vozes autênticas dos amadores artesãos das palavras. É quase impossível ser notado, excepto por dissidentes. E para quê incomodar-se? O tempo que leva para criar uma prosa de blogue perspicaz e espirituosa é melhor empregue para expressar-se no Flickr, no Facebook ou no Twitter."

A agonia da blogosfera estava a dar a volta à cabeça de muita gente,  à internet e ao globo terrestre: nos EUA, por exemplo, e também em Portugal, muitos escreveram a refletir sobre a fatídica sorte da blogosfera. A extinção de blogues sonantes anunciada com dia e hora marcada, ou o facto de bloggers, que numa primeira fase pareciam ocupar uma posição de desafio em relação a outros comunicadores dos media, terem cedido ao mainstream, dando o salto para portais da internet, TV e jornais,  isso e o desaparecimento de um sentimento de comunidade, de união, que eu própria viria também a detectar, mas mais tarde, seriam alguns dos sinais de morte, a par da profissionalização dos bloggers. A história da internet está cheia de mortes e estados comatosos e ressuscitações. Por exemplo, é consensual que a internet veio matar a escrita de cartas. Quase de um momento para o outro todos começámos a escrever e a enviar emails que nem loucos. Circulavam textos e powerpoints sobre tudo. Quem é que seria excêntrico a ponto de continuar a comprar envelopes, a redigir endereços e a lamber selos de correio quando podia enviar palavras, sons e imagens instantaneamente?
Cameron's world
A internet entrou devagar por Portugal adentro. No início nem éramos tantos assim a conseguir ter acesso ao www. Os primeiros sites eram obras intermináveis: quase sempre havia uma legenda ou um boneco "Em construção." Demoravam a carregar e algumas das fotografias ficavam sempre por abrir. A experiência visual podia ser equivalente a uma viagem interestelar ou a uma tripe psicadélica. Para terem uma ideia do delírio visual dessa era, espreitem o Cameron's World. O Cameron's World é uma colagem virtual de textos e imagens recolhidos e montados por Cameron Askin, imagens essas que podiam ser encontradas nas páginas GeoCities, um serviço de hospedagem na web que possibilitava que as pessoas construíssem as suas próprias home pages, entretanto arquivadas (1994–2009). O serviço dos EUA foi desativado em Outubro de 2009 quando registava mais de 38 milhões de páginas. Hoje interagimos principalmente com conteúdo mais ou menos refinado e acabado. O Cameron’s World, "é uma homenagem aos dias perdidos de auto-expressão não refinada na Internet." Espreitem também o Web Art Museum que mostra as tendências do web design entre 1991 e 2006 para ver como eram os motores de busca ou os banners ou os sites feitos em Flash.

No início da blogosfera sentíamo-nos unidos numa espécie de celebração da democracia que era poder partilhar com uma infinidade de pessoas de todo o mundo toda a espécie de ideias sem barreiras aparentes. Até aí apenas alguns de nós, nos quais me incluía, teríamos podido experimentar este poder, e de uma forma bastante limitada, o poder se expor as nossas ideias aos outros publicamente, e de obter até uma resposta. O que fazíamos era usar, talvez, um jornal local ou regional, ou escrever na secção da Carta do Leitor, por exemplo. O advento dos blogues deu a toda a gente, pelo menos hipoteticamente, um poder nunca antes experimentado. Agora todos podiam ter uma página na web sem sequer saber código ou mesmo usar o Frontpage, o editor de HTML criado pela Microsoft para fazer páginas na web.

A blogosfera rapidamente demonstrou ser um espaço com incontáveis possibilidades. Era algo criativo para uns,  para outros confessional,  um diário pessoal, para outros era até um meio subversivo. Os blogues permitiam a interactividade dos leitores de forma imediata, através dos comentários, o que não sucedia nos sites, com a sua estrutura estática, também impeditiva da rápida actualização. Além disso, o hipertexto, os links, permitiam aos leitores viajar de página em página, escolhendo o seu percurso. Cada um fazia daquilo o que queria, elegia um tema de afeição, ou não, e aprimorava-se a personalizar o aspecto da sua casinha na internet até atingir o nojo do design, cores de fazer tonturas, cintilações de causar epilepsias. Logo começaram a aparecer em blogues esteticamente comedidos lições de como emagrecer esse excesso decorativo, embora sem grande efeito prático. Os blogues acumulavam diversos tipos de letra,  selos de concursos e iniciativas em que a blogosfera era pródiga, fotos e galerias de fotos, contadores de visitas, guestbooks,  caixas de mensagem embutidas, vídeo, quando foi possível, e muito lixo visual que cegava. Os directórios de blogues e outras plataformas de agregação, que hoje já quase se extinguiram,  que os reuniam por tema, facilitando a sua divulgação, eram extremamente populares. Estabeleci laços que ainda perduram com bloggers dos EUA, da India, do Canadá, de França, do Brasil, da Austrália e, claro, de Portugal.

Foi espantoso poder assistir e, mais, fazer parte desta revolução. Sim, foi uma revolução. Para quem possa pensar que estou a exagerar, atente nestes dados:

"A blogosfera, como é conhecido o mundo dos blogs, conta com quase 100 milhões de blogs, segundo o Technorati , serviço de buscas e indexação especializado nos diários virtuais da blogosfera. Em abril de 2007, segundo a empresa, eram criados 175 mil blogs por dia e cerca de 1,6 milhão de posts eram publicados diariamente, ou seja, o equivalente a 18 atualizações por segundo. Os números realmente impressionam. Para chegar a um milhão de usuários, a telefonia fixa demorou 74 anos; o rádio, 38 anos; os computadores, 16 anos; os celulares, 5 anos; a Internet, 4 anos; o Skype, 22 meses. Quanto aos blogs, apenas para termos uma comparação com outras tecnologias lançadas ao longo da história, em maio de 2006 eram 40,5 milhões; em abril de 2007, o número chegava a 72 milhões. Em menos de um ano, a blogosfera praticamente dobrou de tamanho."

(Silva, Fernando Moreno da. Blogosfera: um estudo dos blogueiros a partir dos blogs mais acessados do país. Estudos Semióticos. [on-line] Disponível em: h http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es i. Editores Responsáveis: Francisco E. S. Merçon e Mariana Luz P. de Barros. Volume 6, Número 1, São Paulo, junho de 2010, p. 54–64. Acesso em “dia/mês/ano”. Data de recebimento do artigo: 16/11/2009 Data de sua aprovação: 01/04/2010)

Mas nem tudo era bonança no mar da blogosfera. De repente a informação deixara de estar na mão de especialistas e a preocupação com a fonte e a credibilidade de tantos conteúdos publicados em blogues gerou tempestades entre  inquietados educadores e, em especial, orgãos informativos, os jornais, que viram nos blogues competição directa,  note-se como ainda estava bem longe a popularização das fake news, que com a utilização massiva das redes sociais, se tornou uma evidência durante a campanha de eleição de Donald Trump, em 2016.

A par de conteúdo bem estruturado, por qualquer pessoa, na sua área profissional, por exemplo, emergiu muita deturpação, sem fundamento e com muita futilidade sem filtros, que incomodava alguns. Os blogues teriam vindo dar a voz ao idiota da aldeia, diriam até. Só que Umberto Ecco, ainda não tinha escrito isso acerca da internet. Teríamos de esperar até 2015, para que Eco, crítico acerca do papel das novas tecnologias na disseminação da informação, afirmasse que  "O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade", aconselhando os jornais a filtrar a informação obtida em sites da internet, já que ninguém era capaz de dizer se seriam confiáveis ou não. Os mais cépticos continuavam  a ver os blogues como páginas pessoais de gentinha narcisista ou preguiçosa, que copiava aqui e colava ali, para entretém juvenil. Para estes a blogosfera era apenas muita parra e pouca uva: um blogue não era um jornal e uma postagem não era uma notícia. Mas, de facto, apesar das críticas sobre a sua credibilidade, os blogues afirmaram-se como fonte de informação, porque reconhecido espaço de liberdade, e para muitas pessoas passaram a ser A fonte de notícias. Em Portugal não me recordo de jornais se terem pronunciado ostensivamente contra a afronta dos blogues. Mas em 2008, no Brasil, o Jornal Estado de São Paulo, publicou uma campanha onde ridicularizava os bloggers para desacreditar a sua capacidade de produção de conteúdo fiável. Leia a propósito o que escreveu Carlos Merigo e veja a campanha:




Os blogues tiveram, entretanto de competir com que se chamava o microblogging, o Twitter começou timidamente, mas os seus 140 caracteres acabaram por convencer os usuários; um pouco diferente, a meio caminho entre o Blogger e o Twitter, (criado em 2006) o formato Tumblr, (em 2007) mais focado na imagem, também cativou uma quota de internetários que preferiam as imagens às palavras. E, sobretudo, o Facebook, que aparecera em 2004.

Actualmente os blogues continuam a existir e a serem criados mas talvez não ao ritmo de Abril de 2007. Afastada da blogosfera, também por bastante tempo, embora sem nunca me ter desligado completamente, sinto que quer o blogger, quer o leitor, possuem hoje um tipo de consciência completamente diferente da que nos animou a começar. Mesmo sem grande fundamento, diz-me a minha intuição que os blogues perderam espaço para as redes digitais e plataformas mais assentes na imagem como o Youtube ou mesmo o Instagram. Quando procuro por blogues novos para ler encontro uma enorme maioria deles onde a mancha gráfica é 80 % imagem. Os novos afirmam a primazia da imagem. Ainda conseguimos encontrar alguns dentro do espírito pioneiro, e até austero, de antigamente, mas são, sobretudo, os sobreviventes desse tempo. E surgiram até plataformas que recuperam o despojamento inicial da sua criação como a Medium, onde é a escrita que ainda importa acima de tudo. Mas a tendência hoje é outra: a sensação que dá é a de que a maioria das pessoas desistiram de ler e de escrever (extensamente) na internet. Dois tipos de blogue beneficiam largamente das possibilidades digitais de criação, edição e publicação de imagens entretanto desenvolvidas: os blogues de viagens e os das bloggers ligadas à moda e ao lifestyle, que as empresas voltadas para o público feminino passaram a eleger como centrais para a publicidade e divulgação dos seus produtos.  Por outro lado também me apercebi que muitos bloggers levam o conteúdo do seu blogue para outros canais. Não se limitam a partilhar um link no Facebook ou no Twitter. O conteúdo escrito é adaptado a vídeo e publicado no Youtube ou tratado em imagem e divulgado no Instagram.

Alguns dos blogues de maior êxito fazem hoje parte de sites de empresas, de jornais, de instituições. Rara é a empresa que não aposta num blogue como estratégia de marca, de divulgação e contacto com a sua clientela. Mas alguns até se confundem com os sites das próprias empresas! Por outro lado, é curioso constar que após tantas querelas, hoje, um jornal online pode até parecer-se com um blogue e um blogue bem pode parecer um jornal online. Os blogues são muito mais sosfisticados e trabalhados, escritos e produzidos até por equipas de profissionais de áreas respectivas, do marketing, e da imagem.  E são esses que aparecem no topo das buscas do Google. 

O Facebook, por comparação, nunca teve, para mim, semelhante impacto nem nunca me trouxe a gratificação que sinto em relação aos blogues que criei e de que fiz parte. A não ser pela facilidade acrescida no manejo das suas ferramentas virtuais, de comunicação e partilha, a rede social nunca teve, para mim, o significado de novidade e revolução que os blogues tiveram. O Facebook bem que se pode gabar de ter conseguido agregar o número record de usuários que agregou, mas também gerou mais polémicas - e a ver vamos o que ainda virá por aí - e problemas do que aqueles com os bloggers alguma vez tiveram de lidar: ser amigo do Google era a nossa dor de cabeça, e o spam e os anónimos, a nossa mínima preocupação. Na rede temos de aturar a censura arbitrária das nossas postagens, a publicidade invasiva crescente, descobrimos a utilização dos nossos dados pessoais para fins que não acordamos, não entendemos o funcionamento do algorítmo, etc, nunca chegamos a sentir o Facebook como nosso.

Mas, provocou ou não o Facebook a agonia e a morte de muitos blogues? Sim ou não? O tráfico para os sites do Blogger e da Wordpress decresceram a olhos vistos enquanto o do Facebook não parava de aumentar. Há quem defenda que o Facebook não só matou os blogues como a própria internet já que ninguém mais navega nela: observem, no metro ou no comoboio, o que as pessoas dedilham nos telemóveis e lá verão, sob os seus dedos, sobretudo, um feed azul e branco. O Facebook tornou o acto de publicação e contacto tão simples como um clique: quem resiste à lei do menor esforço?  Mas nem tudo foi mau: os bloggers começaram a aproveitar o Facebook para dar visibilidade aos seus conteúdos.

Andamos sempre à procura de um culpado, mas os culpados somos nós: nós é que deixámos de escrever cartas, de comprar jornais em papel, de escrever nos blogues. O Google também foi acusado de matar os jornais por lhes estar a sugar a publicidade para a internet. Os jornais ainda não conseguiram fazer anúncios dirigidos aos seus leitores no papel e então instalaram-se na internet. Não morreram: adaptaram-se. Também os blogues se hão-de adaptar, mesmo que o acto de escrever num blogue sempre vá exigir um pouco mais de esforço do que picar o ponto no Facebook. 

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