Conan Osiris, o rapaz de quem se fala e bué se escreve
O Festival da Canção, uma cena musical que estava moribunda, ou mesmo morta e meio zombie, parece ter caído novamente nas graças dos telespectadores de todas as idades. O culpado da retoma foi Salvador Sobral, que em 2017 venceu o Festival Eurovisão da Canção, trazendo pela primeira vez o troféu da Eurovisão para Portugal. Estabelecido o precedente, Portugal passou a olhar para o Festival com rejuvenescido olhar e atenta audição, ansiando por repetir a façanha. O ano passado conseguimos a proeza de sermos os primeiros a contar do fim. Também não é para todos. E este ano, ainda a procissão de freaks vai no adro, já a fogueira dos inquisidores arde forte na praça da internet. Estes autênticos autos de fé do Festival, convocados que estão sempre, um ou mais artistas, à penitência pública, são agora um ritual. Este ano, para já, é Conan Osiris que lidera.
Quando foram anunciados as canções concorrentes, reconheci na listagem os nomes de Matay, do tema do Dengaz, onde a sua voz era mais que perfeita, Conan Osiris, de quem tinha escutado na íntegra o disco Adoro Bolos, e Calema, grupo em quem por vezes tropeçava nas FMs do acaso. O resto dos nomes nada me diziam. Mesmo antes de escutar as canções antecipei logo uma grande polémica em torno de Conan Osiris, ainda por cima um nome desconhecido da maior parte do público. Parecia-me que Osíris não encaixaria no Festival da Canção de forma alguma, tal como, o ano passado, JP Simões, irrepreensível, estaria igualmente a milhas do seu elemento. Quando ouvi Adoro Bolos, apenas não estranhei de chofre o som porque nele se encontram ecos da vocalização de António Variações e porque, habitualmente, ando pelo Youtube à procura das sonoridades do Médio Oriente e África, que aprecio bastante. Mas, contra Osiris, logo o facto de nunca ter sido uma fã de António Variações, que vi aparecer como um fenómeno, e desaparecer, precocemente, na cena musical portuguesa. Por vezes há coisas que me escapam e o carisma e talento de Variações foram uma delas. Também me escapou que Salvador Sobral tivesse o je ne sais quoi que o faria alcançar tão esmagadora vitória. E, não, não é verdade que Portugal nunca tivesse, antes de Salvador, apresentado canções competentes, como tantos disseram. Até a minha mãe gostava do António Variações e ela não ia em modas. Alguma coisa o António teria, um je ne sais quoi. Agora há quem chame a Conan Osiris o novo Variações. Existem alguns pontos de contacto, sim. Mas nem tantos. Será Osíris um fenómeno que se eclipsará? Ou será Conan, o rapaz do futuro? A avaliar pelo incêndio que leio por aí, muitos já o teriam sacrificado ao Deus do Dó Maior, a avaliar como exclamam, depois de ouvir Telemóveis, "Tenham dó". No entanto, na mitologia, Osíris é morto pelo irmão, que ambiciona o seu trono, e depois renasce no além e torna-se juiz dos mortos que alcançam esse mundo. Cuidadinho, portanto, que pode ser um tiro no pé.
Os gostos não se discutem, diz-se. Mas depois que o Facebook montou a tenda na internet, os gostos/likes discutem-se e medem-se. Na realidade não há nada mais discutível que o gosto. Há um livro engraçado que se dedica a tentar explicar a forma como nosso gosto se forma, chama-se You may also like, de Tom Vanderbilt. Segundo o autor, não é fácil saber em rigor porque gostamos do que gostamos. O processo não é assim tão objectivo como seria de crer, nem facilmente destrinçável. As nossas preferências estão informadas por influências, algumas operando a nível inconsciente, outras contextuais e sociais, o que torna pouco fiável até mesmo a opinião de um perito sobre o que é realmente bom. Os nossos gostos não são assim tão nossos, somos conduzidos neles. Nem inteiramente transparentes. Imutáveis já sabíamos que não são, e nem sempre explicáveis através do que escolhemos. O autor aponta que por vezes empresas como a Amazon ou a Netflix, elaboram algoritmos que sabem mais acerca do nosso gosto do que nós mesmos! Sobre o gostar do que é novo, parece que estamos programados para aceitar a novidade, sim, desde que ela tenha um ponto de contacto com o que já conhecemos. O que é familiar é seguro, e essa foi uma regra de sobrevivência da espécie humana, quem sabe de outras também, que contaminou todas as nossas escolhas. Por outro lado, desde Leon Festinger que conhecemos a teoria da “dissonância cognitiva”, que nos ensina que uma pessoa se esforça para manter a coerência entre as suas cognições (convicções e opiniões). Quando tem uma crença sobre algo e age de froma diferente do que acredita, ocorre uma situação de dissonância. As pessoas partilham esta tendência de alinhamento das suas crenças e experiências, gerando-se um conflito interno quando não o fazem. Será, pois, mais difícil aceitar que se gosta de algo que a maioria detesta.
Conan Osiris é Tiago Miranda. Nasceu há 30 anos, no Cacém, e depois mudou-se para Lisboa. Perdeu o pai para as drogas aos 8 anos, foi criado pela mãe, pela avó, pela tia e pelo avô Nelinho. Teve uma adolescência caótica e refere os amigos como a sua tábua de salvação, até hoje são os mesmos em quem confia. Aprendeu sozinho a fazer música, em casa, no computador, utilizando o Fruity Loops, um programa de música electrónica; agora grava no dictafone do iPhone as inspirações que o momento lhe dita. Primeiro detestava a sua voz, depois habituou-se. Estudou Design Gráfico em Castelo Branco, mas parece que teria preferido Belas Artes.
Com esta onda de simultâneo entusiasmo e choque em torno da personagem, de repente a internet está cheia de assunto e acabei por ouvir, esta noite, a reboque da insónia e, à luz do telemóvel, umas entrevistas do rapaz. O Conan é, sem dúvida, um rapaz criativo e engenhoso. E parece inteligente e sensível. Diz que faz o que faz porque sempre sentiu uma necessidade de se expressar musicalmente, sempre teve música dentro da cabeça, uma "cena de meta data, uma beca transcendental", como refere na entrevista a Rita Ferro Rodrigues. Acreditem que gostei de o ouvir. Conta que é viciado em riso, - como eu o compreendo, - que precisa de viver rodeado de uma vipe positiva e construtiva. Ah! O Conan anda a fazer uma colecção de peluches. Umas linhas da entrevista à Vogue também revelam coisas curiosas como: "Para mim os sonhos, é sonhar à noite. Eu vivo só o dia à dia, hoje posso morrer. E nisso eu não tenho querer. Pedi muitas vezes para morrer quando tinha problemas, se tu pedes uma coisa dessas, e se isso chegar a ti – tens de te aguentar. Eu agora não tenho saldo contabilístico para pedir mais nada. Tenho de trabalhar, só isso. Ou :"Eu ligo à métrica e as palavras para mim chegam a agir como uma percussão."
bate forte, bate bem, mais forte que a sorte/
Tu sabes que a saudade anda aos beijos com a morte
O uso regular de palavras abreviadas e com a grafia alterada que se usa nas comunicações virtuais - na internet e no telemóvel - é também uma forma de manifestação da vitalidade e plasticidade de uma língua, mas esta espécie de estenografia para despachar a escrita mais velozmente, não devia saltar do telemóvel para o papel. Bem sabemos que alguns alunos até já escrevem nos testes com linguagem de telemóvel, quem sabe alimentando até uma vontade secreta a alguns professores de partir os telemóveis dos pupilos! "Eu vou partir o telemóvel..."
(Post-Scriptum! Entretanto ouvi mais uma entrevista onde o Conan já é mais poupado em "bués" e "yahs", e "tipos", ou mesmo "tás a ver"...e uma TEDtalk em Braga onde "yahs" nem vê-los! )
(Post-Scriptum! Entretanto ouvi mais uma entrevista onde o Conan já é mais poupado em "bués" e "yahs", e "tipos", ou mesmo "tás a ver"...e uma TEDtalk em Braga onde "yahs" nem vê-los! )
Conan Osiris - Telemóveis
Eu parti o telemóvel
A tentar ligar para o céu
Pra saber se eu mato a saudade
Ou quem morre sou eu
Quem mata quem
Quem mata quem
Mata?
Quem mata quem?
Nem eu sei
Quando eu souber eu não ligo a mais ninguém
Se a vida ligar
Se a vida mandar mensagem
Se ela não parar
E tu não tiveres coragem de atender
Tu já sabes o que é que vai acontecer
Eu vou descer à minha escada
Vou estragar o telemóvel
O telele
Eu vou partir o telemóvel
O teu e o meu
E eu vou estragar o telemóvel
Quero viver e escangalhar o telemóvel
E se eu partir o telemóvel?
Eu só parto aquilo que é meu
Tou pra ver se a saudade morre
Vai na volta quem morre sou eu
Quem mata quem mata?
Eu nem sei
A chibaria nunca viu nascer ninguém
Eu partia telemóveis
Mas eu nunca mais parto o meu
Eu sei que a saudade tá morta
Quem mandou a flecha, fui eu
Quem mandou a flecha, fui eu
Fui eu
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