"Já é hora das mulheres pararem de se fazer de vítimas"



Inscrevi-me num workshop sobre Igualdade de Género, uma área onde em tempos desenvolvi actividade, e tinha acabado de ver um vídeo (de 2017) que denunciava, ilustrava, mediante testemunhos, a persistência de desigualdades de género a nível salarial, no acesso ao trabalho, melhor dizendo, a pouca expressividade feminina em posições de gestão, na forma como se entendem os papéis de homens e mulheres no cuidado de crianças e tarefas domésticas, e ainda a predominância de vítimas do sexo feminino em termos de violência doméstica, quando topei com um comentário no Facebook, no meio de muitos, que me chamou a atenção. Era uma opinião a propósito da notícia:” O Conselho de Ministros aprovou nesta quinta-feira uma proposta de lei que determina o uso da expressão “direitos humanos” em detrimento de “direitos do Homem”, argumentando que a decisão é "um passo no combate à desigualdade entre homens e mulheres, reconhecendo o progresso dos direitos fundamentais nos últimos 70 anos”. A proposta será agora apresentada à Assembleia da República.” Segundo o seu autor, discutir igualdade de sexos nesta sociedade é uma anedota, devíamos lutar por essa igualdade onde ela realmente faz falta, em vez de o fazer numa sociedade já equilibrada e equalitária.”

“Sónia, os salários são iguais, os contratos são iguais, os beneficios são iguais, o que difere é a disponibilidade. Enquanto grande parte das mulheres evita fins de semana por causa da família, grande parte dos homens prefere fazer os fins de semana para ganhar mais e assim sustentar a familia.
Não será hora de pararem de se fazer de vitimas e começarem a ver que em qualquer empresa, nunca será feita a distribuição de 40 vagas por 20 homens e 20 mulheres, as pessoas são escolhidas por mérito e disponibilidade.
Agora pense como o "patrão/patroa", prefere um funcionário que impõe N limites à sua disponibilidade enquanto profissional, ou um funcionário que está lá sempre que necessário? Isto falando de escritório.
Agora em fábricas.. Preferia um operário que só pode/quer fazer manhãs, ou um que está disposto a qualquer horário?
Para finalizar, porque será que há mais secretárias que secretários?
Aí a igualdade não interessa.
Tal como não interessa igualdade na construção civil, onde as mulheres normalmente são técnicas ou engenheiras de segurança no local de trabalho, ao invés de fazerem trabalho pesado.
Discutir igualdade de sexos nesta sociedade é uma anedota. Experimente lutar por essa igualdade onde ela realmente faz falta, em vez de o fazer numa sociedade já equilibrada e equalitária.”
Era longa a lista de reacções negativas à notícia. A ideia de que devemos mudar a linguagem que usamos para ajudar a esbater o modelo patriarcal que fez do homem a medida do ser humano, a norma ou o ponto de referencia, excluindo, reforçando estereótipos e preconceitos de género, tornando "invisíveis" as mulheres, e ainda indivíduos de género não-binário, que não se identificam nem como homens nem como mulheres, incomoda muita gente. A mim incomoda alguma coisa, não nego. Em 2017, recordo o escândalo provocado por um manual escolar escrito em linguagem inclusiva, em França. A Academia da Língua Francesa reagiu com um comunicado: “Diante desta aberração inclusiva, a língua francesa  encontra-se, a partir de agora, em perigo mortal. A nossa nação é responsável perante as gerações futuras”.

O propósito da utilização de linguagem inclusiva desencadeia respostas sempre alarmistas. Ideia simples em teoria, na prática causa-me alguma perplexidade em alguns contextos embora, por exemplo, me pareça correcto que num formulário se utilize uma barra em O/A cliente. Noutros casos a preocupação parece-me algo caricata, em especial porque exagerada. Por exemplo, leio que é de evitar o emprego de parênteses - ex. "o(a) candidato(a)",- pois estes indicam a introdução no texto de um elemento secundário, o que, neste caso, seria contrário ao objectivo de respeitar a igualdade de género. E existem outras fórmulas, quase próximas de linguagem de telemóvel, por exemplo, em vez de "amigos”" ou "amigas", deveríamos usar as formas "amigxs", "amig@s" ou "amigues", que não consigo aceitar. Meus amigxs, podem até chamar-me machista! mas eu não vou usar isso. "Amigues"?! Amigues, amigues, feminismos à parte. A língua não é estática mas também não é sopinha de letras instantânea. Eis mais confusão a somar a já existentes interpretações da língua, por exemplo, a daqueles que não usam "hás-de", antes "Hades", o deus dos mortos, que preferem "derivado a" em vez de "devido", que confundem o adjectivo "bom" com o advérbio "bem" quando me perguntam se estou bem. Ou, a daqueles que, como eu, não querem saber do Novo Acordo Ortográfico e persistem na velha grafia. Não, a língua não vai morrer, a gente é que, certamente, irá morrer de riso a ler esses text@s.

Usar uma linguagem sensível à questão do género poderá ser uma forma de rejeitar percepções antiquadas sobre homens, mulheres, pessoas com deficiência e outros grupos de pessoas na sociedade que se sentem desconsiderados pelo uso de uma linguagem discriminatória. Terá mais relevância numas áreas do que outras: por exemplo, se estou aqui a escrever sobre igualdade de género  ou não discriminação, haverá um contra-senso entre o que estou a dizer e o que estou a fazer, se não adoptar a prática. Se estiver a fazer uma análise de um filme de aventuras, poderá não ser relevante.

Não concordo com tudo e com todos/as sobre estas matérias do Género de forma automática. Mas não estarei nunca nem com quem ridiculariza o assunto, nem com quem defende pontos extremos cegamente. A troca de ideias a respeito é importante e não se compadece nem com fantochadas nem com histerias. Retomando o comentário, existem dados que não deverão ser novidade para quem preste alguma atenção às notícias, e em especial, nos dia 8 de cada mês de Março, Dia da Mulher, data em que somos, não raramente, confrontadas/os com a realidade dos números e forçadas/os a desfazer o equívoco em que vivíamos, quem sabe porque observando o nosso apertado círculo de conhecidos/as e amigos/as onde nos parecia que tudo ia bem. É claro que o comentador não está a considerar a hipótese de haver homens que até talvez pudessem ficar em casa a tomar conta da família, como fazem as mulheres, se essa alternativa fosse possível, ou encarada como coisa natural e não como uma excepção futurística. De facto, as mulheres não têm disponibilidade porque não há homens que façam o que elas asseguram em casa: seriam mal vistos. Numa sociedade paritária, qualquer dos sexos poderia escolher trabalhar ou ficar em casa a cuidar da família. Ou fazer meio-tempo. Não digo que não existam mulheres que não prefiram o trabalho em casa, e estará certo, o que digo é que  homens há que também podiam ter essa vontade mas nem o patrão nem a lei nem a sociedade ainda tem elasticidade que o permita. Por outro lado, o patrão que quer uma mulher ou um homem sempre disponível devia era meter robots a fazer o trabalho. O patrão quer lucro a todo o custo, os observadores destacam a baixa natalidade. Em que ficamos?

O ano passado, um dos títulos que recordo, por achá-lo quase inacreditável, foi que dados do Eurostat revelaram que Portugal foi o país da União Europeia em que o fosso salarial entre homens e mulheres mais cresceu entre 2011 e 2016 (4,6%). (Ora, como é que isto é possível? Quem paga menos às mulheres do que aos homens para trabalho igual? Não entendo como é que isto possa suceder.) Também a convocação da Greve Internacional de Mulheres, convocada para este dia, me ficou na memória, em virtude da baixa expressividade alcançada em Portugal, se comparada com a vizinha Espanha: muitas mulheres espanholas fizeram greve ao trabalho no escritório ou fábrica, mas também em casa onde, tal como por cá, são maioritariamente responsáveis por cuidar dos idosos e crianças. Porque não houve mais adesão? Esta greve teve por objectivo demonstrar a importância e impacto no dia-a-dia destas tarefas e responsabilidades a cargo praticamente exclusivo das mulheres. A ela se somaram protestos de exigência do fim da desigualdade salarial, da violência de género e de possibilidade de melhor conciliar o trabalho e a família, que vi reflectidos nos testemunhos do video. Em relação a este último, deixou de ser tão nítida a separação entre quem cuida e quem assegura a subsistência familiar. Mas verifica-se que, a mulher, ao ter conquistado o seu lugar fora de casa, acaba em alguns casos por sair penalizada em termos de ócio, saúde física e psicológica por não se verificar uma equitativa partilha de tarefas no âmbito da rotina familiar.

Vale a pena recordar a greve que aconteceu na Islândia, em 24 de Outubro de 1975, transcrevo: “No dia 24 de Outubro de 1975, 90% das mulheres islandesas recusaram-se a trabalhar e também a cozinhar, limpar, arrumar e cuidar dos filhos para exigir salários iguais aos dos homens. Cinco anos depois, era eleita a primeira mulher presidente de uma país e a primeira a ser eleita democraticamente no mundo. Muitas fábricas, bancos, lojas, escolas e creches fecharam por falta de pessoal e muitos homens viram-se, pela primeira vez, responsáveis pelas necessidades básicas dos filhos. Nesse dia, as salsichas em lata esgotaram dos supermercados e foram o almoço e jantar de muitas crianças. Os pais levaram os filhos para o trabalho. "Ouviamos o barulho de crianças a brincar enquanto os radialistas liam o noticiário na rádio", recorda Vigdis Finnbogadottir, a mulher que foi eleita presidente da Islândia em 1980.” (Fonte)

Foi esta greve que inspirou a de Março passado e a sua data permite tomar consciência de que estas reivindicações vêm de longe – e até de mais longe - e que as mudanças ocorrem de forma muito lenta. Na minha opinião isso também se fica a dever a uma não linearidade do processo, que pode registar avanços e recuos, em virtude de factores diversos, económicos, políticos, etc, ou seja, o valor da igualdade nunca está permanentemente realizado e alcançado, tal como o da liberdade, e é por isso que devemos manter uma postura vigilante, sendo que não basta que o XXI governo constitucional reconheça a igualdade e a não discriminação como condições para realizar a prossecução dos direitos humanos de todos/as, ou que se assinem convenções, compromissos políticos, etc, para que no plano concreto as mudanças se sucedam e consolidem. Em Portugal, por exemplo, a legislação interna ainda não acompanha em pleno o prescrito pela Convenção de Istambul, de 2014.

Por outro lado, o importante acesso à justiça para fazer valer direitos ainda esbarra no facto das pessoas não usufruírem na plenitude as prerrogativas legais que existem ao seu dispor, seja por insuficiência económica, diminuído grau de instrução ou, simplesmente, puro desconhecimento, ou mesmo medo. Ainda anteontem o bastonário dos advogados considerou haver uma justiça para ricos e outra para pobres por falta de custas e taxas judiciais "adequadas ao país real". Esta realidade tem barbas, não no sentido que é machista, mas porque é bem antiga e conhecida. Afecta homens e mulheres, mas afectará quem mais precise, e a verdade é esta em Portugal: as mulheres ganham menos, sofrem maior desemprego, há entre elas maior taxa de pobreza.

Por outro lado, também existem evidências de uma “justiça no masculino” no espaço mediático, que podem ser desincentivo ao recurso a essa via. Fiz uma busca rápida no Google e escolhi esta: em 2017 o Tribunal Europeu veio discordar de uma sentença que reduzia a sexualidade feminina à procriação, ignorando o seu papel na realização pessoal. O Tribunal condenou Portugal, considerando que ainda prevalecem preconceitos ligados ao género no sistema judicial português. É verdade. Argumentos como “não quer cozinhar”, ou “ela sai muito à rua” servem para atenuar a pena a atribuir. E estas situações acontecem mesmo que o colectivo de juízes seja composto por mulheres. (Fonte)

Mais um dado: em 2016, mais de 2 mulheres por dia apresentaram queixa por crime de natureza sexual à polícia. 57% das violações foram perpetradas por homens, familiares ou conhecidos das vítimas. É muito? É pouco? Serão estes os números reais, ou apenas os possíveis, num quadro onde os medos pesam: medo de perder o emprego, medo de ser chamada mentirosa, medo de lhe ser atribuída culpa, medo de reviver a experiência, medo de enfrentar o agressor, os amigos dele, os colegas, os chefes, a polícia, a justiça; medo e vergonha de julgamentos morais e incompreensões, medo, medo. Que medos terão tolhido Ana Zanatti por 10 anos? O último testemunho, de Ana Zanatti, incide sobre o drama da violência doméstica. Aproveito para referir que a violência doméstica não incide apenas sobre mulheres, mas também sobre crianças, idosos, homens e pessoas LGBTI. O caso dos homens é muito desvalorizado, incompreendido e até ridicularizado, e é possível que alguns, exactamente vítimas do preconceito machista, nunca tenham a coragem de denunciar a sua situação. Violência doméstica não é apenas física, ou sexual, muita é emocional. São bastantes as possibilidades de controlar uma pessoa de quem se está tão próximo. No caso específico das mulheres, de qualquer idade, classe social, etnia, etc, é particularmente difícil expor a terceiros o sucedido, muitas tolerando comportamentos por anos – 10 anos, diz a Ana Zanatti, no video - antes de terem a coragem para enfrentar a situação, muitas vezes procurando vias não judiciais, que as poupem à exposição. É uma luta solitária e desgastante. Muitas mulheres não têm sequer consciência de que aquilo que estão a sofrer é crime: podem ser intimidadas, controladas economicamente ou psicologicamente, resignam-se em nome de muitas justificações, até ao limite, e muitas acabam, infelizmente, por ser mortas: 24 condenações de homens por homicídio, é o número referido no video para o período temporal de um ano.

E assim é, que, perante estes dados, que muitos desconhecem e outros devem entender como delírios feministas ou meras fake news, vem o nosso comentador do Facebook entender que já é hora de as mulheres pararem de se fazer de vítimas! OK, chefe.



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