A moda do politicamente correcto


"A semântica pós-moderna politicamente correcta
(ou Como é belo o socialismo em Portugal)

Para uma certa esquerda norte-americana dos anos 60 ficava mal chamar negros aos negros e índios aos índios. Passaram a "afro-americanos" e "nativos americanos". Assim começou a moda do politicamente correcto. Em Portugal a revolução semântica iniciou-se há alguns anos, pela promoção das "criadas de servir" a "empregadas domésticas" (actualmente auxiliares de apoio doméstico) e dos "empregados" (de comércio e serviços) a "colaboradores". Lentamente estabeleceu-se o novo léxico das profissões consideradas menores; os carteiros passaram a técnicos de distribuição postal, os caixeiros viajantes a técnicos de vendas, as meninas dos correios a técnicas de exploração postal, os jardineiros a técnicos de manutenção de espaços verdes, os varredores a técnicos de higienização urbana, os estivadores a técnicos de manipulação e deslocação de cargas e descargas, etc. Aboliram-se os contínuos. Passaram a auxilares administrativos. Que, no caso particular das escolas e hospitais, se chamam auxiliares de acção escolar e de acção médica. Os técnicos de apoio geral (na administração postal). A revolução linguística invadiu o nosso quotidiano. O nível zero corresponde ao rés-do-chão e a cave ao menos um. O ruído chama-se poluição sonora e os lixos, resíduos urbanos. As cabines telefónicas, os bancos de jardim, os marcos do correio e os postes de iluminação, apesar de fixos, são "mobiliário urbano". Nos autocarros deixámos de picar bilhetes. Validamos títulos de transporte, ou seja, obliteramos. Nesta altura a companhia Carris inventou um novo significado para o verbo "obliterar" e o novíssimo substantivo "obliterador", no caso a máquina que pica os bilhetes. Proibido fumar é, na semântica da aviação comercial, "voo azul"... também deixou de haver regiões atrasadas. O Alentejo é uma zona de desenvolvimento sustentado e o Casal Ventoso, uma área urbana sensível aos grupos populacionais vulneráveis a condutas alternativas. Na economia deixou de haver falências. Há empresas com insustentabilidade financeira. Os prejuízos são crescimentos negativos.... Acabaram-se os despedimentos. Há ajustamentos de efectivos com racionalização e optimização de recursos humanos. Obviamente também deixou de haver desempregados. Existem cidadãos à procura de emprego, que a partir da faixa etária dos 45 entram em pré-reforma antecipada. E pobre é um indivíduo de recursos económicos sensíveis... E há que atribuir novos significantes às realidades particularmente desagradáveis. Uma prisão é um centro de detenção (ou de reinserção social, no caso dos jovens). Um asilo de velhinhos é uma unidade geriátrica... estrutura familiar monoparental quer dizer mãe solteira... Há já alguns anos que deixou de haver doentes. Existem utentes... os serviços de urgência passam a chamar-se... "emergências" Ricardo França Jardim. (Publicado no Público, 19.12.99)

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