Natal em Ousilhão: máscaras, vinho e pão!
Caretos de Ousilhão Máscaras e Gaiteiros da Associação Cultural, Recreativa e Desportiva de Ousilhão |
E, de forma abrupta, os católicos que num dia foram convidados a adorar o Menino Jesus placidamente deitado nas palhinhas sob o olhar enlevado de todos quantos o rodeavam, são, 24 horas depois, a 26 de Dezembro, convocados a celebrar o Dia de Santo Estevão. Da natividade e do presépio passa-se para o martírio. Estampas e pintura religiosa abundante não são agora tão amáveis no tratamento deste episódio que até parece um grande spoiler, estrategicamente colocado para estragar a alegria de todos os que celebram o nascimento de Cristo: "Não esqueceis, Ele morre na Páscoa".
Pintura de Giorgio Vasari |
Pintura de Rembrandt |
Em Portugal, a devoção a Santo Estevão é antiga e não faltam festas em sua honra, e outras marcas culturais a ele associadas, muitas igrejas com o seu nome, ermidas, freguesias, ruas, miradouros, etc, que a cada passo no-lo recordam. Quem tenha algum interesse pela cultura popular e pelas tradições, já talvez tenha ouvido falar de Ousilhão, uma freguesia do concelho de Vinhais, Alto Trás-os-Montes, onde o Natal se celebra de forma um pouco diferente do que é comum pois coincide com a festa em honra de Santo Estêvão ou Festa dos Reinados, nos dias 25 e 26 de Dezembro, cuja designação mais comum é a Festa dos Rapazes ou Festa das Máscaras. De origem pagã, este culto primeiramente associado ao solstício de inverno, foi adaptado e integrado pelo Cristianismo. É uma tradição com origem em antiquíssimos rituais de passagem da adolescência para a vida adulta. Apenas membros do sexo masculino até aos 16 anos podiam inicialmente participar, e havia provas destinadas a atestar a maturidade, que hoje já não se repetem. Os tempos também ditaram o fim do monopólio masculino e, hoje,retiradas as máscaras, já surgem faces de raparigas.
Cartaz de 2013 |
Imagino que em tempos antigos, quando Ousilhão - e a região - não tinha ainda sofrido o impacto da desertificação do interior rural, de que todos falam mas de que ninguém quer realmente saber, e ainda se podia viver da agricultura, com algum conforto, fosse enorme o impacto desta festa, com muitos rapazes jovens a participar, relações de vizinhança fortes e muitas casas para visitar. Quando o labor nos campos se aquietava, a comunidade celebrava, junta, dali saindo reforçados os laços de união e o futuro de boas colheitas, que ficaria comprometido sem obediência ritual. Mas nos anos 60, quando começou o êxodo do país rural, talvez Ousilhão tenha perdido a juventude e por isso é com espanto que constato que semelhante tradição tenha conseguido sobreviver. No entanto, ao ver alguns vídeos no Youtube, quis-me parecer que muitas pessoas regressam ali nesta altura festiva com o desejo firme de contribuir para a continuidade da festa. Imagino ainda que, alguns, desabituados já dos velhos costumes, se demitam de participar. Por outro lado, penso que a festa se reveste até de interesse turístico, mas considero que permanecer mais ou menos iludida pela distância de Bragança no mapa, e demarcando-se como festividade bem local e quase familiar, a possa ajudar a permanecer mais pura e imune à comercialização própria da turistificação, que tantas vezes acaba por falsificar as experiências e acabar com a sua genuína feição. Talvez o inóspito da região, terras altas, de montanha, planaltos e prados a que os locais chamam lameiros, onde, no inverno as lareiras se mantêm acesas em contínuo, convidando à confraternização abrigada, desincentive a viagem a este lugar remoto, de paisagem e ares tão limpos quanto raros. Seria uma pena que os caretos um dia fossem reduzidos a espectáculo, a uma exótica performance, por um turismo incapaz de fazer o esforço de apreender o seu real significado. Os fatos garridos e as máscaras são apenas a face mais visível de uma tradição com sentidos e raízes, parece, no tempo dos Romanos, e com profundo sentido comunitário.Confesso que gostaria de passar um Natal em Ousilhão, de acordar a ouvir o chocalhar e o som da gaita de foles, mas, ao mesmo tempo, vejo a Festa dos Rapazes como, sobretudo, uma vivência local, e embora não duvide da hospitalidade da gente de Ousilhão, talvez me sentisse uma intrusa! Francisco Manuel Alves, o Abade de Baçal, pároco, etnólogo, investigador e homem da cultura, foi um dos que primeiramente registou a essência das festas, contribuindo para despoletar o seu interesse junto de terceiros.
No site da Junta de Freguesia explica-se tudo sobre a festa e aconselho a leitura. Mas faço aqui um pequeno resumo dos singulares acontecimentos. Uma da figuras da festa de Ousilhão é o rei, que hoje é desprovido de poder, um rei simbólico, mas antigamente o mordomo absoluto, e tem dois vassalos. Veste fato e gravata, usa uma coroa feita de cartolina verde, com enfeites a ouro. Traz um ceptro de madeira na mão direita, com uma fita de seda branca, e uma laranja espetada na ponta. Os vassais vestem com mais modéstia e usam varas. Além destes, existem os moços, os mordomos, enfeitados com chapéus adornados com fitas longas, coloridas, castanholas, que animam os cortejos, e lenços pelos ombros. São eles os rapazes que dançam e cantam à roda da mesa nos vários lares de Ousilhão, ao som da gaita-de-foles e ritmos do bombo e uma caixa. Também fazem o peditório durante as rondas. As figuras mais conhecidas da maioria de nós, mesmo que não saibamos apontar Ousilhão no mapa, são os caretos - que em Ousilhão se chamam "máscaros", e de quem se espera comportamento endiabrado. Usam as máscaras esculpidas em madeira e fatos de casaco e calça feitos em colcha de lã com franjas coloridas, de cor vermelha, verde, azul ou amarela, com capuz, também franjado, e cinto de chocalhos ruidosos às costas.
No dia 25 de Dezembro é dia de peditório para o menino Jesus, que começa no largo da igreja, o mesmo local onde vai terminar horas mais tarde após a volta a todo o povoado. É a chamada Ronda das Boas Festas, que leva estas personagens de visita às casas, onde são recebidos e entram, para dançar ao redor da mesa posta, com pão e vinho, produtos de fumeiro, aguardente, figos, e outras coisas doces da época, que são depois oferecidas em agradecimento, além de esmola para o Menino Jesus ou para a festa. Primeiro entram os moços, depois os máscaros, que fazem diabruras, até mesmo pequenos roubos. À noite realiza-se a galhofa, dantes uma luta para medir forças entre os rapazes num curral, hoje é um baile onde se canta e dança até poder. No dia 26, tudo se repete, mas o dia é dedicado a Santo Estêvão. Neste dia tem lugar a Ronda das Alvoradas, começa cedo, e o dinheiro recolhido é para Santo Estêvão. Os versos que se cantam são assim:
Alvoradas, alvoradas!
Pela manhã muito cedo.
Vamos dar as alvoradas
Ao milagroso Santo Estêvão.
Alevantem-se os senhores
Desses escanos dourados
Dar esmola ao Santo Estêvão
Que esse vos dará o pago.
Ao início da tarde é celebrada uma missa em honra de Santo Estêvão. Os mascarados não podem participar nesta celebração já que são a encarnação do mal, mas rei e vassalos são recebidos à porta da igreja pelo pároco da freguesia, abençoados, e assistem junto ao altar-mor, ladeados pelos moços. O rei veio em cortejo desde a sua morada, liderado pelos músicos, com os vassalos, em carro de bois, acompanhado de muitas pessoas, e ao seu redor, fazendo loucas, os máscaros. Os cânticos religiosos são substituídos pelos sons da festa e o pão é benzido em cestos. Após a celebração, o andor de Santo Estevão é carregado pelos moços para fora e dá uma volta à igreja, em cortejo, seguido pelos fiéis.
No final da missa tem lugar uma refeição colectiva, ao ar livre, que é a mesa do Santo Estêvão, onde não pode faltar pão e vinho, doces e até produtos hortícolas, ovos e outros. Os máscaros, que tinham ordem de ficar sossegados durante a missa, regressam. A mesa é presidida pelos elementos que participaram e pelos novos, que vão assumir a responsabilidade da festa, o presidente da junta de freguesia e o padre. Os moços distribuem o vinho e o pão que o padre benzeu durante a missa a todos, inclusivamente a forasteiros. O padre também benze a mesa e faz uma oração em memória dos mortos, e é ele que retira a coroa da cabeça do rei velho e a coloca depois na do novo rei, e que entrega as varas aos novos vassalos. A mesa será leiloada e arrematada. Depois dos comes e bebes, da dança e saudações, tem lugar novo cortejo, o rei é levado em carro de bois até à sua morada, enquanto arde uma ou várias fogueiras e o fumo se eleva no ar. À noite tem lugar mais uma galhofa e, entre muita animação, assim termina a festa.
Lista de sugestões:
Sobre a freguesia de Ousilhão, site da União de freguesias de Vinhais, Bragança
Muitas fotografias das máscaras no site Sketches of Iberia
Sobre a freguesia de Ousilhão, site da União de freguesias de Vinhais, Bragança
Muitas fotografias das máscaras no site Sketches of Iberia
Um breve relato fotográfico da festa em Ousilhão, no blogue Ferrado de cabrões
Um video filmado por estrangeiros, que elogiam a hospitalidade e cordialidade que encontraram. Eram os únicos estrangeiros de visita a Ousilhão, além de repórteres, nacionais e estrangeiros( Espanha, Japão) na ocasião, em 2017. A música é de um grupo galego.
Quem foi o Abade de Baçal, que deu a conhecer as festas de Ousilhão
Caretos de Ousilhão, video - Máscaras e Gaiteiros da Associação Cultural, Recreativa e Desportiva de Ousilhão
Quem foi o Abade de Baçal, que deu a conhecer as festas de Ousilhão
Caretos de Ousilhão, video - Máscaras e Gaiteiros da Associação Cultural, Recreativa e Desportiva de Ousilhão
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