Guerra aos contos de fadas, disse ela
Num conto de fadas tradicional uma personagem vai debater-se com dificuldades e ganhar a cruzada: o final feliz que sempre acompanha o “era uma vez” é, quem sabe, a razão de ser da sua longa preferência e popularidade junto das crianças. A acção desenrola-se no plano da fantasia embora consigamos identificar ali exemplos bem concretos de moral e os eternos conflitos entre o bem e o mal. Não é novidade para ninguém a tese de que nestes contos a marca da supremacia do masculino sobre o feminino é visível nos papéis que são ali distribuidos às personagens femininas e nas tarefas que elas ali desenvolvem. A evidência é que os contos de fada são obras literárias - adaptados, posteriormente, a filmes animados - que foram produzidas num tempo próprio, como, aliás, todas, e por adultos, logo, estão informados por esse contexto histórico-social, por uma ideologia e uma certa moral, a cristã, porque era a dominante em França, por exemplo, ao tempo de Perrault.
Charles Perrault (1628-1703) não é autor dos contos, ele adpatou-os para serem lidos na corte de Luís XIV (1638-1715). Depois os Irmãos Grimm também colecionaram contos e publicaram-nos. Tratava-se de folclore de tradição oral, histórias habitualmente contadas pelos camponeses e outros trabalhadores oriundos da classe menos favorecida de uma sociedade de classes, que não tinham acesso a outra literatura mais erudita, reservada para os nobres. Existiam em França, mas também em todos os países. Alguns eram violentos, tinham por objectivo transmitir determinados valores e normas sociais de forma convincente, e, por isso, eram até impróprios para crianças, tendo sido adaptados pelos colecionadores. O conto Bela Adormecida é, na sua origem, menos encantado e mais aterrorizador e chocante do que muitos imaginam. O responsável pela sua recolha foi Giambattiste Basile. De acordo com essa versão, a jovem adormecida é violada pelo rei e é mãe de dois gémeos, sendo que um a acorda ao remover um pedacito de linho do seu dedo, enquanto o chupa. Perrault e Grimm suavizaram em muito esta história que se tornaria uma das mais queridas entre as crianças. Não será isso que hoje também se pretende quando se critica o conteúdo dos contos de fadas? Infelizmente há quem esteja a exigir que esses livros sejam banidos, por exemplo, das escolas, em vez de se servirem das histórias para promover um maior diálgo sobre aquilo que consideram ser errado. Ou então desencantam ideias do arco da velha, como, por exemplo, afirmar que o conto A Bela e o Monstro, promove a violência doméstica porque o Monstro retém a Bela no seu castelo...
A ascensão da burguesia e a afirmação do modo de produção capitalista, por um lado, mais a moral sexual que adoptaram, que via na célula da família burguesa o espaço privilegiado para viver a sexualidade e a sociabilidade, a clara educação por sexos, é, igualamente, um dado adquirido. As crianças foram educadas segundo normas e valores orientados pelo seu sexo. Mas a sociedade não é algo estático, alterou-se, e os novos tempos trouxeram a valorização da igualdade entre mulheres e homens. Surgiu então uma necessidade de desenvolver ou educar para valores como a igualdade e a solidariedade, a tolerância e a liberdade, o respeito pelos outros e pela diferença.
No início da década de 70, anglo-saxónicas feministas começaram a usar a palavra "gender" para destacar que as diferenças e desigualdades entre mulheres e homens eram social e culturalmente construídas e não biologicamente determinadas pelo sexo: não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres, disse Beauvoir. O Segundo Sexo, título do seu livro, remete para o papel secundário a que a sociedade patriarcal teria remetido a mulher.Talvez tenha começado aí a caça às mensagens perniciosas dos contos de fadas para a formação das crianças que hoje fazem títulos em sites de notícias com frequência e suscitam ondas de comentários exaltados. A sociedade do patriarcado, um sistema que já produzia influência na Mesopotâmia, onde se fizeram leis que subordinavam a mulher ao homem, (Wikipedia), em que o poder é principalmente exercido por homens adultos, foi e é injusto e igualmente opressivo para mulheres e homens, e igualmente colocado em prática quer por uns quer por outros. Este sistema terá moldado a condição da mulher para que ela se conformasse com o seu papel de mãe e dona-de-casa, subordinada ao homem que tudo providenciava.
Distingue-se entre sexo e género para colocar em evidência a personalidade e comportamento que são ditados pela interiorização de normas, crenças, opiniões que depois se vão repercutir na forma de agir e comunicar de uma pessoa. O feminino e o masculino não são meramente ditados pelo biológico em exclusividade, como se defendeu em tempos, mas pela vivência em sociedade, pelas aprendizagens, pelos exemplos observados, pelos discursos de poder, etc. É nesta ordem de entendimento que se afirma que as crianças ao serem expostas às narrativas dos contos de fadas seriam contaminadas pela lógica da discriminação feminina neles patente, cerceadas na sua liberdade, podendo interiorizá-la e repercuti-la em discursos e comportamentos futuros.
Os contos situam-se no plano do imaginário, usam uma linguagem simbólica, mas representam ainda qualquer coisa de real. Os seus criadores verteram neles algo seu contemporâneo e a criança de hoje vai apropriar-se desse conteúdos e projectar ali a realidade que conhece, mas também absorver dali mensagens. Ao contactar com os contos e os livros começam a formar-se os leitores do futuro. Se não bastasse isso para defender a sua pertinência, a simplicidade da narrativa dos contos parece ser muito útil para o desenvolvimento da criança, apresenta-lhes sentimentos como a inveja, a rivalidade, o amor, que elas começam a descobrir, ou receios e medos, medo de ser abandonada pelos pais, de animais ferozes, do escuro, etc, e ajuda-as a debater-se com eles num plano seguro, e a sentir, à sua maneira, que pode vencê-los. Bruno Bettlheim, autor do livro A Psicanálise dos Contos de Fadas, foi um dos que defendeu a qualidade terapêutica deste tipo de história: os contos, com a sua estrutura simples, de poucas personagens, e um binarismo evidente em quase tudo – palácio ou cabana , anões ou gigantes, pobres e ricos, bem e mal - familiar e mágica, teriam em si um potencial para a resolução de conflitos internos da criança.
Os contos de fadas estão hoje debaixo de fogo. De acordo com as leituras das estudiosas do género, no conto a A Bela Adormecida, por exemplo, são observados papéis e valores atribuidos de forma binária a cada um dos seus intervenientes: a personagem feminina, passivamente, aguarda para ser despertada para a vida social, e mesmo sexual, pela masculina, o príncipe, que detém a faceta de herói, de agente salvador, de bravura, qualidades que tipicamente caracterizam o ideal masculino; o ideal de felicidade feminina é aqui encontrar um marido perfeito e casar como se disso dependesse a felicidade futura da mulher. Além disso, a Bela Adormecida tem uma beleza invejável, sendo que é esse o atributo que devia caracterizar a mulher perfeita, etc.
O que se quer evitar ao propor a desconstrução deste modelo é que as crianças venham a perpetuar este quadro ao interiorizarem, através da leitua, ideias sobre o que é certo e errado, bom ou mau, e oferecer outras perspectivas, evitando que ela pense que ou se é bela e se consegue ser feliz, ou se é feia e isso é péssimo, ou que se é dócil então não se pode ser valente, ou que se é um homem de coragem então não se pode ser terno, ou que uma mulher é notoriamente frágil e um homem, forte, sendo que ser de forma diferente diminuirá cada um deles. Muitas directrizes são emanadas actualmente pelas mais diversas instituições para que para pais, educadores, professores atentem nos modelos tradicionais veiculados pelos contos que todos lemos na infância e os problematizem e desconstruam para que a criança possa crescer sem interiorizar esses modelos, estereótipos e ideias de inferiorização da mulher. Surgem cada vez mais na literatura infantil histórias que refletem esta tendência da modernidade e propôem alternativas. Por exemplo, The Paper Bag Princess, é uma obra de Robert Munsch, que retrata as aventuras de princesa moderna e onde os papéis tradicionais foram revistos:
"A princesa Elizabeth planeia casar-se com o príncipe Ronald, que é praticamente perfeito. No entanto, chega um dragão que destrói seu castelo, sequestra Ronald e queima todas as suas roupas: a sua única opção é um saco de papel. Elizabeth segue o dragão e Ronald, procurando resgatar seu noivo. Desafia o dragão a queimar florestas com fogo e a voar pelo mundo. O dragão completa as tarefas, mas depois de voar pelo mundo uma segunda vez fica cansado e adormece. Elizabeth resgata Ronald, que é ingrato e lhe diz para ela voltar quando se parecer mais com uma princesa. Elizabeth rejeita-o porque ele não vale nada e vai viver a vida à sua maneira. "(Wikipedia)Não creio que problematizar e tomar em consideração estas questões vá causar algum desmando ao mundo, pode mesmo enriquecer a leitura das histórias; mas continuo renitente em aceitar algumas das afirmações que se fazem acerca do impacto destes contos na identidade infantil e totalmente contra quem os quer banir. Observo que em algumas situações esta preocupação está a conduzir a afirmações muito descuidadas que acabam por ter o efeito contrário de afastarem a nossa atenção de um núcleo problematizante que até faz sentido pensar. Miguel Torga tem um poema onde se lê: “Brinca no mundo da imaginação/Que nenhum outro mundo contradiz! /Brinca instintivamente/Como um bicho!” Não poderá o mundo da imaginação e da fantasia dos contos, em alguma parte ainda que desactualizado da nossa visão actual das relações entre homens e mulheres, não chegar a contradizer, efectivamente, a nova realidade, seja porque se referem a um tempo irreal do Era uma vez... e espaços fantásticos, e modelos simplesmente datados, como sucede em tanta da literatura dos adultos, seja, até, porque o olhar, conhecimento, e experiência de leitura de uma criança não é a nossa? Ou estarão os pais e as mães que sejam omissos em relação a estes cuidados a comprometer em definitivo a educação para a igualdade de tratamento das suas crianças? Afinal a vida é, hoje, ostensivamente diferente das lógicas binárias dos contos, e isso é perceptível para cada vez mais crianças, e muito mais complicada do que é ali representado. Todos sabemos que a literatura e a sua época andam de mãos dadas e isto é algo que deve desde logo ser explicado às crianças. Além do mais as crianças também não vão ser exclusivamente preparadas para a vida apenas pela sua leitura, podendo até ser que ela funcione como pura evasão, divertimento, sem foco pedagógico. Por isso, seja qual for o partido que se tome quanto a esta questão, que haja bom senso na escolha das batalhas ou ainda se acaba por perder a guerra.
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