Dinâmicas de grupo: apresenta-te usando esta pedra
Alguns dos conhecimentos assim obtidos eram decisivos, deveras importantes para o meu exercício profissional. Mas em outras tantas ocasiões só aceitava ser encafuada entre quatro paredes com uma dezena de estranhos porque precisáva de um qualquer papel para meter num certo processo que serviria para instruir um certo dossier de uma certa candidatura, ou, por exemplo, para poder dar formação a um certo público, ou trabalhar em certo programa.
Em virtude de ter frequentado bastante formação tive de passar por muitas dinâmicas de grupo e estratégias de quebra-gelo, que nem sempre me caíam bem. Pura perda de tempo, de resultados questionáveis, não as via de outra maneira. A prova chegava no intervalo, quando todos se dispersavam pelos cafés em redor, o que era a salavção. O inferno era quando só havia um miserável café aberto, fruto do horário pós-laboral da formação. O espaço, por vezes exíguo, transformava-se numa toca de acoitados, cada um entregue ao seu telemóvel, ao seu café, ao seu cigarro, cada um sorvido em meditações ou perdido em devaneios imperscrutáveis.
O contraste do grupo temporariamente libertado da sua clausura de minutos antes era bastante. Os seres aparentemente comunicativos que habitavam a sala de formação transformavam-se em penedos solitários, banhados pela luz dos fluorescentes mas apagados em fumos de cigarro. Era assim: quando chegava o intervalo, o ensemble tresmalhava, tocava cada um para o seu lado, e ainda os telemóveis não eram o que são hoje: trocavam-se mensagens com os namorados, os maridos, perguntava-se se tinham jantado, ficava-se a saber que os restos ficariam no micro-ondas. Por mensagem seguiam também desabafos sobre a seca que tinha sido aquela primeira hora e o quanto ainda era preciso aguentar, do frio que estava na sala ou da chatice que era o formador. Após estes minutos iniciais, praticava-se o jogo da cobrinha no Nokia com a entrega de quem queria ser campeão.Também havia quem colocasse o telemóvel sobre a mesa do café ou o balcão e o encarasse com olhos de ventosa. Uma tal fixação desincentiva qualquer aproximação por parte dos colegas, por se pensar que talvez aguardassem ainda por uma outra chamada, quem sabe do Presidente ou do Papa, uma ansiadamente importante.
Era então fenomenal a constatação de que aquelas primeiras horinhas de formação, sempre queimadas em dinâmicas de grupo que segundo os especialistas em comportamento humano deviam servir para criar laços entre os participantes tinham fracassado. Eu alegrava-me com isso porque parecia ser a única a odiar aqueles jogos. Via assim legitimada a minha aversão e confimada a minha tese. Perda de tempo. Estas pessoas, ali reunidas mercê do acaso e da circunstância, que a formadora queria transformar numa dezena de pernas de centopeia, capazes de se moverem de forma compassada e síncrona com recurso a um joguito e meio, não resultava: éramos quem éramos, nada mudara. Esta estratégia, que seria talvez posta em prática para garantir os melhores resultados da formação, facilitando o trabalho do formador e o dos formandos, o seu relacionamento, fora da sala não produzia resultados. Mas, e dentro? Era aí que importava, não no tempo de descompressão, no minúsculo café. Bem, dentro da sala o que se vivia era apenas uma educada apatia interrompida por participações solicitadas, um mínimo para não comprometer a face, ou a avaliação, ou as duas. A trabalhada faceta da camaradagem nem nunca chegava a ser testada: a maoria das formações eram breves, como foco no método expositivo. Nunca desenvolvíamos trabalhos de grupo! Mas quando podíamos agir em grupo, confraternizar, no intervalo, fazíamos de tudo para o evitar, o que me levava a pensar que ainda bem que não nos eram pedidas empresas colectivas...
A pandemia veio popularizar o uso da internet e o que dantes era uma excepção tornou-se quase sempre uma possibilidade, a não ser naqueles casos em que o conhecimento não se presta mesmo à modalidade da formação a distância. Não sei se ainda se fazem dinâmicas de grupo nas formações presenciais. Talvez haja alguma vantagem nisso em certos casos: não questiono a utilidade no caso de formações longas, e/ou em que é pedida cooperação entre os formandos na realização de tarefas, ou em que os indivíduos que compõem o grupo sejam muito, muito diversos.
Quando comecei a escrever este texto o que eu queria era contar um episódio sucedido numa dessas formações, quando uma formadora resolveu dinamizar as apresentações no seio do grupo usando um seixo da praia que tirou do bolso com ar de quem estava a inventar a roda, ou de um mágico que nos vai deixar a todos estasiados com o truque! Por aquela altura já tinha visto muitas magias: ele era papelinhos, ele era pedras, ele era balões. Apresente-se assim, apresente-se assado: imagine que é uma janela, imagine que é um animal e apresente-se. Use um objecto que esteja dentro da sua bolsa e fale-nos de si. Diga quem é ao seu colega do lado e é ele quem vai apresentá-la... A verdade é que nunca tive grande problema em alinhar no jogo. Era até mais difícil conseguirem calar-me do que fazer-me falar.
Mas formação a formação esses esquemas tornavam-se repetitivos e sem piada. Retire um papel desta caixa e apresente-se a partir da palavra que lá encontrar escrita. Mesa. Gato. Janela. Nuvem. Bola. Eram sempre palavras escolhidas a dedo, o mais banais, o mais sem graça possível. Não me lembro já de nenhuma, mas nunca lá encontrei a palavra merda. Teria vindo a calhar, para dizer o que eu pensava sobre aquelas apresentações criativas que vinham sempre à dúzia roubar-nos duas horas da nossa já ténue felicidade! E logo eu, que me considerava uma pessoa criativa, bem mais do que hoje, tempo em que cada criação me sai do esqueleto com o esforço de quem tem prisão de ventre há uma semana, não havia forma de ver utilidade naquelas voltinhas tão "criativas". Tudo quanto era desperdício de tempo me deixava impaciente e, no meu entender, aqueles exercícios que nos ocupavam no primeiro dia - que era quase sempre à noite - das formações eram tempo perdido.
Finda a missão, que muitas vezes nem sequer era longa, cada um voltava para a sua casa, a sua instituição, ninguém mais contactava com ninguém. Uma vez, só para contrariar, uma rapariga bem dinâmica e inteligente, que me dava boleia para Coimbra, ágil a valer na condução, pé pesado no acelerador, ligou-me passados meses, que já não sei dizer se muitos, talvez no ano seguinte, e eu já não me lembrava dela. Eu que até tinha retribuido as boleias com uma caixa de lápis coloridos para o miúdo porque isso sucedeu pelo Natal, fui apanhada de surpresa. Que diabo! Laços haviam sido estabelecidos. Podia lá ser? Não me lembrava. Quanto mais ela insistia menos eu conseguia localizá-la no rol dos conhecidos. Ela não me perdoou e nunca mais me telefonou. Mas eu também nunca mais lhe quis telefonar, envergonhada. Hoje, se passar por ela na rua, serei incapaz de a reconhecer, mas creio que se chamava Susana.
Numa dessas formações, fui encontrar a Fátima, que era pessoa da minha convivência, pois nestas andanças nem sempre éramos um grupo de completos estranhos. A Fátima, muito calada, até tímida, pessoa de quem ninguém sabia grande coisa, ali estava. Anos passados, viria a revelar-se uma outra Fátima, uma excelente profissional, comunicativa: outra pessoa. Mas ali, entre as tais quatro paredes da sala de formação, o esqueleto do quadro branco montado a um canto, mais uma mesa e o retroprojector, hoje memória jurássica dos equipamentos educativos, e o grupo dos doze formandos, quando recebeu a pedra da colega do lado, a Fátima ficou apenas com uma expressão de horror mudo no rosto enquanto a girava nos dedos. Estávamos de pé, reunidos num círculo, fora do resguardo das nossas mesas, como se fôssemos fazer algum rito de magia negra ou aprender a dançar folclore. De frente para ela, cheguei até a pensar que aquilo fosse dar em choro copioso. A Fátima inspirava, olhava e girava o seixo branco entre os dedos, e, ao mesmo tempo, lanaçava-nos olhares inquisitivos. A boca estava cerrada, cerradíssima. Não mexia os lábios, nada. Via-se que não estava confortável e nós desconfortáveis estávamos, solidários com o seu desconforto ao perceber tanta crispação. Por fim lá começaram as palavras a nascer. Eu...eu...eu, começou ela por dizer, hesitante e entre pausas, que nos pareciam longas e a ela talvez curtas, ...eu....eu ...eu sou reboluda como esta pedra. A sala quase veio abaixo em risos, até a formadora foi com a cabeça aos joelhos. A Fátima passou rapidamente a pedra ao vizinho, como se ela lhe queimasse os dedos, e nunca mais se ouviu dizer uma palavra durante o resto da formação.
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