Pronto-a-vestir e moda do absurdo

O meu corpo entrou num estado complicado onde o pronto-a-vestir é apenas uma ideia vaga que precisa quase sempre de ser costurada para que me sirva. Quando tiro uma peça do cabide e a levo para o provador, já vou a contar que o espelho me devolva a dúvida de serem um tamanho acima ou um tamanho abaixo, as ideais. Todavia, se as experimento também, nem um nem outro me fazem sentir bem vestida. Por milímetros há algo que sobra ou falta. A cava demasiado descida, a cintura acima da linha, uma pinça fora do lugar, a gola a bailar à roda do pescoço. Acabo por me bastar com o menos mau desse jogo de possibilidades e nunca sinto essa peça como realmente minha.

Lembro-me então do tempo em que a minha mãe costurava as roupas que eu vestia e em que tudo era ajustado ao meu corpo de uma forma única e precisa. E do sr. Nascimento, um alfaiate a quem ela um dia reconheceu talento suficiente para a substituir, pedindo que me fizesse um blazer quando já lhe faltava a paciência para costurar para a filha. Na data combinada compareci no atelier preparada para ser medida ao jeito do sinal da cruz uma e outra vez. Em vez disso o exímio alfaiate, já então de cabelos cinza, agarrou a peça de pano e estendeu-a sobre o meu ombro e peito quase como se fosse uma echarpe. Com um giz fez umas marcas e creio ter ainda apontado duas notas num papel. Daí a uma semana teria de voltar para a prova, disse. Apertei-lhe a mão e ele levou-me à porta, perplexa, sem perceber como é que este homem conseguiria moldar uns metros de terylene ao meu corpo sem números mais exactos.

Quando regressei ao atelier o casaco já se podia chamar assim. Estava em prova. Entre alinhavos, costuras abertas e entretelas, até já uma manga se vestia. E mais uma vez ele fez pequenos acertos a golpe de olho e pouco mais. Fui encontrar o casaco, um par de semanas depois, já pronto a vestir, na casa dos meus pais, no meu regresso de uma audiência em Coimbra, entregue por mão própria: morávamos na mesma rua e ele fizera questão.
O sr. Nascimento vive hoje na memória de quem o conheceu. No meu guarda-fatos, o blazer em pied-de-poule azul e branco, essa herança de um momento que a mim pareceu mais próximo da arte da prestidigitação do que da confecção de roupa, rende discreta homenagem ao seu saber entre casacos HM, camisas e jeans. Há uns meses foi à lavandaria para limpar a seco. Tinha umas máculas que denunciavam o não uso. Desabotoado e olhado por dentro, quase se revela um double-face tal a perfeição dos acabamentos, os invisíveis pontos de mão, o forro cuidadosamente embutido, a qualidade do tafetá. Está agora protegido por uma capa plástica para memória futura de um tempo a que o meu corpo não irá mais regressar. Porque o corpo mudou e porque hoje não posso pagar o justo preço a um mágico para me confeccionar a roupa assim. Quando eu vestia este casaco e me olhava ao espelho, nada a mais, nada a menos me era devolvido. Era como se naquele instante vestisse o mundo comigo e me sentisse adaptada em segundos a tudo o que de mim fosse exigido.

A minha mãe e o sr. Nascimento não me faziam carregar aos ombros a sua griffe, a sua visão de que um casaco devia ser algo maior, o seu protesto pela poluição marinha ou o seu júbilo pelo conceito do poliamor traduzido em formas e texturas. Eles armavam o meu corpo desamparado contra o frio, compensavam as minhas formas ou a sua ausência, usavam de sabedoria e experiência acumulada para me vestir bem. Este casaco feito por medida não era um qualquer prolongamento vaidoso dum criador ou produto de uma ânsia de expressão: era um prolongamento de mim. E ainda que não fosse isso, havia sempre de ser mais estimado que hoje uma qualquer peça comprada por exclusão de partes, de um qualquer cabide de loja, confeccionada noutro continente para vestir bem a alguém que não a mim.

A criatividade destes artistas era sempre colocada ao serviço da resolução de um problema prático, assim como a Natureza tratou de bem moldar a plumagem de um pinguim ao seu corpo para que sobrevivesse. A mãe Natureza seguiu a regra KISS: keep it simple, stupid, que só sobrevive o mais bem adaptado. Excluíu os artifícios, focou-se no essencial. Perante o frio, o animal ou foge dele, ou o tolera, ou hiberna. A camada de gordura acumulada logo abaixo da pele do pinguim é uma espécie de isolador térmico que faz diminuir a perda de calor para o ambiente externo. Quando o pinguim fica muito tempo sem se alimentar é também fonte de energia. Entre as penas e o corpo, uma fina camada de ar também isola termicamente. As suas penas, menores e em maior quantidade do que em outras aves, são finamente justapostas. Um óleo produzido por uma glândula garante a impermeabilização das penas e a água é repelida. O pinguim pode assim suportar longos nevões que o corpo não arrefece com facilidade. A mãe Natureza não usou senão de bom senso, saber e economia para alcançar com o pinguim este resultado tão excepcional: a diferença entre o animal viver ou morrer. Mas no caso do ser humano a Natureza preguiçou. Até a gordura castanha que todos os mamíferos têm para os proteger do frio desaparece quando deixamos de ser bebés. Podemos engordar tudo o que quisermos e o que não quisermos também, mas essa gordura então ganha já não poderá ajudar-nos a aquecer. Perdemos os pelos e ficamos despidos. Estamos então condenados a consumir metros de tecidos naturais ou sintéticos pela vida fora para que possamos manter o calor do corpo ou abafar o pudor ou exercer a função X. E como se isso não fosse suficiente desafio inventamos a moda para ela nos inventar necessidades. Como é que algo tão simples foi transformado em algo tão tortuoso e absurdo é só a prova de que os seres humanos vivem para complicar.

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