Quem sai da estação de S. Bento, em pleno centro do Porto, olha à direita e encara com a barroca igreja de Stº António dos Congregados. Foi assim que a descobri há muitos anos. O fantástico azul e branco da sua fachada, capaz de resgatar qualquer um aos dias mais cinzentos, está hoje coberto por uma tela esverdeada. Compreende-se mas não se perdoa que se explore a vantagem publicitária enquanto se restaura a esplêndida fachada de azulejos. Rebusco na memória por essa imagem para que me salve deste Junho invernoso enquanto subo a caminho dos Aliados. Alcanço-a. A porta fecha-se atrás de mim e é o silêncio. Em criança as igrejas eram-me ingratas. Entrava arrastada pela mão materna, chorosa. Era outra dimensão. As paredes sem fim, os tectos sempre tão longínquos, as estátuas emprateleiradas em transes diversos, os relevos lavrados a ouro, os bancos austeros alinhados, o cheiro a círios; tudo aquilo me era horroroso, quase medonho. O medo dissipou-se um dia mas a fé nunca preencheu esse ou qualquer vazio em mim. Entro como apreciadora do artístico destes lugares e nunca como crente. Observo então na penumbra um espaço de liberdade onde cada um venera o seu deus: eu a arte, o homem devoto, ajoelhado, talvez Stº António, a turista brasileira de S. Paulo, quem sabe, um deus pessoal. Estavamos em frente a um dos retábulos laterais em talha dourada, quase rocaille, ela de canhão apontado a Nª Senhora das Dores e eu de telemóvel em punho, as duas prontas a disparar, quando ela exclama. “Ah, mas é impossível. A gente tem de levar na memória ou no coração. A máquina não tem alma que chegue para isto.” Acabámos a conversa já na rua, onde a chuva entretanto parecia ter amainado. Encaminhei-a para o gótico Convento de São Francisco, “é a descer até ao rio, e depois à sua direita.” Mostrei-lhe as fotos no Google para a convencer mas logo vi na gratidão ser gesto desnecessário. Pressenti então que partilhavamos a mesma fé. Na noite anterior, numa tertúlia, um escritor assemelhara turistas a vorazes ladrões de património, como se a cada clique das suas máquinas as pedras fossem lentamente sendo delapidadas e as cidades desconstruidas até ao nada na sua identidade pelas multidões que marcham sobre elas. Compreendia mas não perdoava que se explorasse tal vantagem tecnológica hoje tornada tão democrática. Na realidade nem todos somos apressados ladrões armados de Kodaks e smartphones. Assim foi que nesta tarde de chuva pude ir à minha memória em busca da familiar imagem da fachada azul e branca, e assim foi que vi esta turista baixar a Cannon e sentar-se no banco para se dar tempo de olhar. Alguns de nós ainda não esqueceram que uma lente não sabe amar: são os que continuam a fazer clique com o coração. Talvez sejamos mais numerosos do que se imagina: eu tenho esperança que sim. (Dedicado à simpática turista de S. Paulo, Brasil, cujo nome não fiquei a saber...)
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