Jesus também tinha dois pais: o cartaz do Bloco de Esquerda
O pão nosso de cada dia nos dai hoje, assim rezam os crentes. A polémica nossa de cada dia, nos dai hoje, bem podem dizer os adeptos das redes sociais. Um dia é o ABC racista da Ducla Soares, no outro o cartaz blasfemo do Bloco de Esquerda, especialmente criado para as redes, dizem eles. E assim vamos. Uma ramboia pegada que seria até gira se tivesse alguma utilidade. Só que a maior parte das vezes não tem. Quer uma pessoa divertir-se, partilhar fotografias de gatinhos fofos e citações sobre o amor e a gratidão e lá fica presa no comentário do António que acha muito bem, muito libertador, e no da Joana que acha muito mal, muito zombeteiro. E de repente já está também a elaborar a sua tese, que sim, que não, umas vezes de forma elegante, outras à bruta, é conforme o clima. Uma vez passada tempestade viral é como se nada tivesse acontecido. Em suma, imaginem o tsunami. Vem, passa, arrasa e o mundo fica reduzido a nada. É tão só e apenas isso. Nem se pode falar de bonança.
Há muito, muito tempo, eras tu uma criança, era eu outra criança - como na canção do José Cid - o Hérman José fez um sketch humorístico sobre a Última Ceia e de repente o país parou de circular. Antes das recentes eleições presidenciais o vídeo deste histórico episódio censor circulou nas redes porque o Professor Marcelo, naquela época presidente do PSD, era um dos escandalizados com o facto do serviço público de TV andar a brincar com coisas sérias, capazes de serem ofensivas dos valores da maioria dos Portugueses e da intocável instituição que é a Igreja Católica. Naquele tempo, eram os jornais, a televisão, a rádio e a mesa do café. Aí nascia e aí morria o burburinho maior e o tu-cá-tu-lá era mais contido. Hoje as pessoas já não se sentam à mesa do café, sentam-se à frente do computador - ou emplastram o smartphone à frente do nariz - e vai de meter ordem a eito na gentalha que, perdoai-lhes, que não sabe o que diz, e de dar a benção a quem partilha do seu ponto de vista, benção AKA Like ou Gosto. É quase nunca um mar de gente serena, cordata, capaz de trocar opiniões e de se enriquecer mutuamente pelo diálogo. Os fiéis mais fervorosos das redes sociais parecem querer levar tudo e todos à frente. Munem-se de insultos, argumentos sem nexo, emoticons, enfim, é um fenómeno tipo vagalhão da Nazaré, mas sem o glamour dessa força da Natureza. Mesmo assim, uma parte do Zé Povo continua a viver o dia como se tudo fosse perfeito e o humor não se tivesse atravessado no caminho da religião outra vez, benza-os deus.
Ontem foi o cartaz do Bloco de Esquerda o causador do reboliço. Algum Zé Povo, a Igreja, alguns políticos e outros opinadores de serviço estão agora a dizer aquilo que o Professor Marcelo disse há 20 anos atrás. Ou seja, o tempo passa, há coisas que mudam, outras há que permanecem, coisas como a religião e o futebol. Ou mesmo a política. Coisas que incendeiam as massas. É como quando nos aproximamos das bombas de gasolina para abastecer: Cuidado! Não fazer lume. Não se pense que isto é um tique nacional do país de Fátima, - John Cleese teve problemas com A vida de Brian, e nos EUA, pastores que anteriormente ao original BE usaram a frase " Jesus had two parents and he turned out ok" em outdoors também foram alvo de contestação. Portanto, na aproximação a estes assuntos dizem os prevenidos que devemos usar de cuidadinho. Outros mais descontraídos costumam apenas dizer que quem anda à chuva molha-se. E os mais visionários dizem que se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir. (George Orwell); ou que não concordando com nenhuma palavra do que é dito, ainda assim se defenderá até morrer o direito dela ser dita.(Voltaire)
Creio numa só Liberdade, pois, É nestes momentos de ebulição que o bom e velho princípio da liberdade de expressão é logo recitado na ponta da língua como o Credo em tempos o foi. Este direito é um dos pilares da Democracia, uma conquista civilizacional que nos assegura que possamos expor as nossas ideias livremente e ter acesso a opiniões de sentido contrário. É ele que permite que nos conduzamos como um vagalhão da Nazaré nas redes sociais e ao Bloco de Esquerda usar a imagem de Jesus Cristo para fazer humor. Para uns não devemos colocar reticências à liberdade de expressão, não a devemos defender para logo a seguir dizer que no caso da religião devemos ter muito cuidado com o que dizemos. Porque onde começa e onde acabará um tal menu de reticências? Vamos então para a chuva, molhemo-nos e vivamos com as consequências. Mas se ao darmos expressão a essa liberdade nos tornarmos tão autoritários e inflexíveis que não consigamos medir o alcance danoso dos nossos actos à nossa volta, não será isso sinal de irresponsabilidade e egoísmo? Atender apenas ao meu interesse particular não fará erodir o sentido original dessa liberdade?
A primeira coisa que me ocorreu quando vi o cartaz do Bloco de Esquerda foi a falta de imaginação do mesmo pois já conhecia a "piada". Admitiria a "reciclagem" se a ideia fosse excelente. Só que não é. Por diversas razões. O Bloco de Esquerda, que é tudo menos inocente, sabia de antemão que a imagem iria gerar polémica desnecessária sobretudo junto dos crentes. (Eu não sou crente e não acho que a escolha tenha sido feliz.) Ora, o Bloco não está no negócio do espectáculo mas política é, infelizmente, cada vez mais. um reality show. O que eu quero dizer é que no presente caso das adopções, já de si mesmo polémico, o recurso a um humor fracturante que vem dividir o que já é divisão era, portanto, escusado. Parece, afinal, que o riso nem sempre é o melhor remédio. Em que pé fica a responsabilidade do Bloco na representação de certos grupos e da sua luta pelo reconhecimento da igualdade de direitos? De que forma esta provocação humorística os beneficiou? A estratégia parece uma coisa de garotada sem juízo, própria da geração que se fez nas redes sociais e que vive para contar o número de comentários e Likes nas suas postagens e assim medir o seu sucesso, tantas vezes obtido através de conteúdos mais notórios do que assisados.
Além disso, o debate que se instalou nas redes foi todo em torno da religião e da liberdade de expressão e seus limites, não em torno do fim da discriminação da lei da adopção. Creio até que muita gente nem chegou a ler as letras mais pequenas do cartaz. E o clima que se instalou de celebração não teve nada. Ninguém vai celebrar o desconhecido. A celebração do desconhecido tem nome: é religião. E se há coisa que não devíamos fazer era misturar a religião e os direitos humanos. Uma campanha neste domínio pede situações reais e pessoas de carne e osso e não entidades sobrenaturais sobre as quais não há - nem pode haver - qualquer consenso entre a população. A ideia de recorrer ao conceito mais rebuscado que existe de " família diferente" para fazer uma campanha que celebra a aprovação no Parlamento da lei da adopção por casais do mesmo sexo é rebuscada, assumam, é má comunicação, ponto. Entendo que queiram transmitir que desde sempre existiram famílias diferentes. Mas, além da ramboia nas redes, que benefício foi gerado para a causa da igualdade de direitos? Estamos mais receptivos? Mais solidários? Mais elucidados sobre a nova realidade que aí vem? Só mostrando a realidade dessas adopções a funcionar é que as pessoas vão compreender se são válidas ou não. Mesmo que nunca aceitem essa nova realidade, é preciso que percebam que há coisas que estão a mudar, que o tecido familiar e afectivo do tempo presente é diferente do de gerações passadas e que pode ser também a normalidade, uma normalidade diferente daquilo a que a maioria está acostumada, por muito que isso lhes custe.
Quem anda à chuva molha-se. Parte da recente respeitabilidade do Bloco de Esquerda no jogo político é capaz de ter ido na enxurrada dos últimos dias. O que lhe vale é que nesta coisa das redes é tudo como Heráclito dizia, tudo flui e nada permanece. Amanhã já teremos nova polémica, no mínimo, cairá neve em Portugal e os ânimos arrefecerão.
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