Cinema :Perdido em Marte e O renascido

Drama de fazer revolver as entranhas? Comédia com um toque dramático? O que prefere? Estão nos cinemas duas histórias de sobrevivência e aventura que não deixarão ninguém levantar-se do lugar para ir comprar pipocas. Por motivos diferentes. Refiro-me a The revenant (O renascido) e The martian (Perdido em Marte). Ambos os filmes adaptam livros, o primeiro da autoria de Michael Punk, adaptado com ampla liberdade, e o segundo escrito por Andy Weir. Enquanto Hugh Glass - o explorador americano do séc. XIX interpretado por Leonardo DiCaprio - existiu, Mark Watney – o astronauta da NASA a cargo de Matt Damon - é pura ficção.

Diverti-me imenso a ver Perdido em Marte. É um filme de entretenimento, é a pipoca dourada dos popcorn movies do ano transacto, tudo nele foi estudado ao pormenor para deixar o espectador satisfeito. É um filme pró-ciência, pró-humanidade, pró-NASA, pró-cinema. É o filme mais cor-de-rosa de Ridley Scott! Do início ao fim sofre de um optimismo contagiante e de uma capacidade de esperança a toda a prova. É um filme explicadinho onde nem nós nem as personagens têm margem para se perder em divagações existenciais ou hesitações. Não sei se o livro fornece maior detalhe sobre as personagens mas aqui não há campo para grande exploração psicológica,  o tempo urge e o foco é na acção de resgate, nada mais. Mas a história é habilmente bem contada. De problema em problema, de solução em solução, ela pula e avança, surpreendendo com sentido de humor e, pontualmente, alguma gravidade. No final é o grande abraço e o aplauso do mundo, a vitória do trabalho de equipa dentro e fora do filme.

Em sentido inverso, O renascido  vai certamente indispôr quem tenha estômago fraco. O meu não se revolta com facilidade mas ainda estremeceu, aguentando-se apenas mercê dos treinos regulares - num pequeno filme de 2014 intitulado Backcountry ,um volumoso urso também fazia estragos. Pois é, o filme de Iñárritu é um filme brutal - e é raro eu usar este adjectivo -, cru. A história é básica, uma de sobrevivência e vingança, o que não quer dizer que faltem justificações para assistir mais não seja pelo espectáculo visual, este é, sem dúvida, um dos mais belos filmes do ano. E é oportunidade para ver mais um brilhante desempenho de DiCaprio, - talvez seja desta que lhe dão o Óscar. Ou talvez não. Que o mereceu antes, sem dúvida; que gostei mais de o ver em O lobo de Wall Street, sim. As duas interpretações não podiam ser mais díspares - aqui ele quase não fala, o corpo e olhos dizem tudo. Tom Hardy, também ele a vestir a pele de um outro sobrevivente, Fitzpatrick, é igualmente bom como um homem ganancioso e destemperado de sentimentos. Apesar de conhecer a lenda, a resistência quase sobrehumana de Glass pareceu-me por vezes exagerada. As personagens são lineares, quando não sustentam uns certos estereótipos culturais. Quando a fita termina a questão que fica connosco é a de Fitzpatrick: valeu a pena? A tagline do filme, - Blood lost. Life found,- devia ter um ponto de interrogação.

A história marciana também não é profunda: basicamente O náufrago encontra Apollo 13 - um filme de que gosto imenso - e temos Perdido em Marte. Mas em vez de foi Tom Hanks, foi Matt Damon o (bem) escolhido, ele até parece estar a especializar-se em papéis de astronauta - em Interstellar também andava a explorar terreno ingrato num qualquer calhau do universo enfiado num super-fato.

Eis-nos então a braços com dois náufragos, ou seja, filmes de um homem só, ou quase, um no espaço, inadvertidamente deixado para trás pelos seus companheiros após uma tempestade de areia, outro nas entranhas do selvagem continente americano, deliberadamente deixado para morrer numa cova depois de ter sido atacado por um urso. Cada um esboçará o seu plano de sobrevivência, o primeiro apoiando-se no conhecimento científico para solucionar problemas, o segundo na experiência de vida. Cada um encontra forças à sua maneira para superar o medo, a solidão e a incerteza da situação em que se encontra: se o astronauta parece possuir baterias inesgotáveis de puro apetite pela vida, já Hugh Glass sustenta um inato instinto de sobrevivência que parece apenas possível porque forjado na Natureza e na adversidade. Mas se ao vencer cada sol (dia em Marte) o marciano nunca deixa de exibir uma certa fragilidade, já o explorador-guia torna-se mais e mais empedernido, alimentado pelo desejo de vingança para ultrapassar cada noite.

Perdido em Marte e O renascido são ambos demonstrações de grande competência técnica, mas o filme de Alejandro González Iñárritu abre incomparavelmente melhor numa sequência estonteante e inesquecível em termos de direcção, acção e cinematografia. A cinematografia é a grande estrela deste filme e Emmanuel Lubezki foi o mago de serviço. Li que foi todo filmado -  aproveitando apenas a luz natural, - no Canadá e na Argentina, não apenas nos EUA, mas ali devemos constatar toda a beleza e grandiosidade do oeste americano, a sua dureza sem piedade, a sua esmagadora vastidão de uns 50 tons de cinza, neve, gelo, pedra, que Glass atravessou, ferido, ao longo de uma inacreditável viagem de 300km. (Note-se que o terreno original era pradaria e não este, de montanha! É a tal liberdade de adaptação que incomoda muitos.) Horas depois do filme ter terminado eu ainda ouvia a água a correr dentro da minha cabeça. Lembrei-me de Aguirre. Mas também o Marte imaginário, de montanhas e desfiladeiros a competir com o Grand Canyon ou com as planícies avermelhadas do México, de cores ferrugentas e quentes, se revela uma paisagem quase desejávelmente habitável, permitindo a nossa imersão em imagens maravilhosas e inesquecíveis, uma parte do encanto que o cinema nos pode reservar. Talvez seja a primeira vez que Marte foi humanizado no cinema. Da última vez que apareceu nas salas escuras, chamava-se Barsoom e John Carter andava por lá aos saltos, a fugir da horda dos Tharks, guerreiros verdes, com seis braços e três metros de altura!

Apontamentos:

Nove tecnologias que a NASA já desenvolve e que aparecem no filme Perdido em Marte (Inglês)

A viagem a Marte: missões análogas em curso pela NASA (Inglês)
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A man in the wilderness  - filme de 1971 baseado na vida de Hugh Glass

Hugh Glass: The Truth Behind the Revenant Legend (Inglês)

'Revenant' filmed it, but he 'lived' bear attack - and wrote about it in 1954 (Inglês)





Hugh Glass: The Truth Behind the Revenant Legend

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