O cinema sai do armário
No fim-de-semana passado o fundo de uma das minhas estantes descolou-se, as prateleiras soltaram-se e quando cheguei a casa tinha parte dos livros no chão. É uma estante barata onde guardo poesia, BD, livros infantis, livros sobre arte e sobre como pintar, desenhar, e guias de viagem. Três prateleiras e um armário na base. Passei o sábado a retirar todos os livros, a tirar o pó de cada um, a pregar o fundo e prateleiras e a restabelecer a ordem. No armário inferior da estante encontrei muitas revistas de cinema de que eu já nem me recordava. Há muitos anos que deixei de comprar revistas. Fiquei surpreendida por estarem em tão boas condições, algumas têm mais de 30 anos. Mas o que mais em intrigou foi uma pequena agenda FORUM, de capa vermelha, do ano de 1995. Sem dúvida que foi na década de 90 que eu vi mais cinema. Se já não me lembrava das revista muito menos desta insignificante agenda. Entre leituras dos livros caídos, das revistas e dos pequenos textos desta agenda, a tarde passou rápido, eu lia meia hora disto e daquilo, arrumava cinco minutos, varria um cotão, voltava a ler um poema, uma história infantil! Afinal o que contém esta agenda? Um registo muito simplificado dos filmes que vi entre Outubro de 1995 e Março de 1996. São duzentos filmes, é muita fita! Eu via o filme, atribuía-lhe uma classificação de 1 a 5 e escrevia uma breve sinopse! Escrever nesta agenda terá sido o equivalente de usar o Twitter para dar a minha opinião sobre uma fita em 140 caracteres. (Embora não andasse a mostrar a minha agenda ao mundo!) O que me surpreende ao reler os pequenos textos é o meu poder de síntese, algo que evidentemente tenho vindo a perder ao longo dos anos. De cada vez que agora escrevo sobre um filme encho um caderno, não uma agenda! Exagero, pois, mas duas folhas A4 no mínimo lá tem de ser! Ao acaso, aqui vão três das sinopses. Folheando os títulos encontrei cinema de todo o género e nacionalidades, animação também. De alguns dos filmes já nem tenho memória, outros ainda tenho presentes.
A caixa - Manoel de Oliveira, 1993, Portugal. Atribuí 4 na minha escala de 1 a 5. Com Luis Miguel Cintra, toda a acção decorre num beco de um bairro lisboeta e gira em torno da personagem de um cego que tem uma caixa de esmolas e dos seus vizinhos, conhecidos e ainda de outras figuras acidentais. Muito bem conseguido em termos estéticos, com excelentes interpretações por parte de todos os actores, é, possivelmente, o mais acessível de todos os filmes do cineasta. Um retracto social e humano perfeitos.
Die buchse der Pandora - Georg Wilhelm Pabst, 1928, Alemanha. Atribuí 4. Com Louise Brooks, é a trajectória de Lulu, uma mulher fascinante que se serve dos homens para atingir os seus desejos e caprichos, acabando os seus dias às mãos de um psicopata. Filme extraordinário, com grande densidade dramática e personagens bem desenvolvidas. Bom argumento e interpretações, excelente realização. Uma surpresa.
The midnight cowboy - John Schlesinger, 1969, EUA. Atribuí 5 pontos em 5. Com John Voight, é o drama de um jovem provinciano que chega a Nova Iorque na esperança de ganhar a vida facilmente como prostituto. Todavia nada correrá como previra. Excelente realização, óptima montagem. Um filme sobre o lado negro da vida nas grandes cidades, a luta pela sobrevivência no seu limite.
Antes da Première existiram outras revistas de cinema em Portugal, eu encontrei algumas, - e devem até existir mais - que adquiri por curiosidade: A grande ilusão, Revista de cinema, e 7ª Arte, Revista técnica de cinema. Observem aquele exemplar com o carimbo da aprovação por parte da censura. Além das revistas, no armário ainda guardo alguns livros sobre a 7ª arte, centenas de postais, catálogos diversos, incluindo do Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz e do Fantasporto, posters, enfim, uma memória em papel dos anos em que vi e li sobre cinema com maior regularidade. O cheiro a papel transportou-me até ao passado, às salas de cinema que já não existem, em Braga, na Figueira, em Coimbra. Vivemos o momento da inodora internet, é esse o armário onde se armazena e obtenho quase toda a informação sobre o cinema que vejo ou não vejo, e até de muitos filmes que não posso ir ver ao cinema. Mudam-se os tempos e os modos, mas a grande ilusão permanece no meu quotidiano, com idêntico fascínio.
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