Ficção científica: Elysium ou District 9?
Gosto bastante de ficção científica e de uma forma geral procuro ver os filmes do género que vão estreando. Não costumo ler obras de ficção científica. O termo ficção científica remete, basicamente, para um plano imaginário, para fantasia e para ciência. Ou seja, o género alimenta-se deste equilíbrio, histórias imaginadas mas com inspiração científica. Não sei bem qual a medida de ciência mas sem ela poderemos ter fantasia, não ficção científica. Como não gostei muito de Elysium vou empatar um bocado - aliás, já estou a empatar! É sempre mais fácil escrever quando se gosta de um filme!
Pois bem. Quando é que terá começado esta cena da ficção científica? Antes do que eu imaginava. Disse-me o Google que Carl Sagan e Asimov opinam que Somnium, (sono, em latim) uma novela escrita por Kepler, astrónomo, matemático e astrólogo alemão, o autor das Leis de Kepler, é a primeira obra de ficção científica! Nela se conta que um estudante de nome Duracotus foi transportado para a Lua por forças ocultas. Eu pensava que a moda tinha sido lançada por Julio Verne e H.G. Wells, um pouco mais tarde, somente no séc. XIX, o que apenas demonstra o quanto sou ignorante na matéria! Julio Verne, como sabemos, escreveu sobre viagens à volta da terra, viagens no fundo do mar e no espaço, antecipando inúmeros prodígios tecnológicos. Wells trouxe a vida alienígena até à terra, inventou as viagens no tempo e o homem invisível. Uma mulher, Mary Shelley, criou o conhecido Frankenstein no século XIX, um romance gótico, um conflito humanista entre criador e criatura! Mary foi longe mesmo sem ter de inventar viagens para nos mostrar um mundo novo: escreveu sobre um cientista que queria recriar a vida em laboratório. Em 1912, Edgar Rice Burroughs, que ficaria conhecido como o criador de Tarzan, escreveu sobre John Carter, um herói da Guerra Civil Americana que acorda em Marte, acabando por se envolver nas guerras marcianas. O filme John Carter de Marte , muito aguardado, estreou este ano e foi considerado um fiasco. Eu vi e não achei mau de todo. Talvez porque não esperava nada de bom.
E o termo sci-fi foi inventado por quem? Por Forrest J. Ackerman (1916-2008), um agente que representou mais de 200 escritores de ficção científica. Ele próprio também escrevia. Mas ficou sobretudo célebre como fã e colecionador de tudo quanto se relacionasse com o género, um autêntico homem das tralhas. Ele foi grandemente responsável pela percepção da ficção científica como algo mais sério quer a nível da literatura quer do cinema.
Na época pré-internet nada se tornava viral a menos que fosse um vírus mesmo. Por isso, para que algo se tornasse popular, era preciso trabalhar no duro! Uma revista norte-americana contribuiu grandemente para a divulgação do género entre os leitores. Trata-se de Amazing Stories, lançada em 1926. A revista Amazing Stories ainda existe mas registou interrupções na sua actividade. Está prestes a inaugurar uma nova fase. The Hugo Awards são prémios entregues anualmente aos melhores trabalhos de escrita no âmbito da fantasia ou ficção científica e o seu nome é uma homenagem a Hugo Gernsback, o fundador da revista pioneira.
Uma outra revista, a Astounding Science Fiction, manteve a sua actividade em contínuo desde 1939 até ao presente. Mais um número está prestes a ser lançado. As revistas alimentaram um clube de fãs do género que por sua vez gerou mais escritores. Muito lentamente as histórias de ficção científica deixaram de ser consideradas peças de leitura fácil ou então sensacionalistas e começaram a ganhar o contorno de literatura. Para isso também contribuiu o facto de terem emergido talentos como Isaac Asimov, Robert A. Heinlein, Theodore Sturgeon, A. E. Van Gogt, Arthur Clarke ou Frederik Pohl.
O Google deu-me a descobrir ainda a Simetria - A Simetria é uma associação de leitores, fãs e autores de Ficção Científica e Fantástico, fundada em 1997, em Portugal. Li alguns artigos do seu blogue, espreitem o seu manifesto onde se lê, entre outras coisas que "Ser simplesmente apreciador de ficção científica em Portugal é não ter sequer hipótese de formar uma opinião informada, é não ter direito ao mau-gosto porque não lhe são dadas quaisquer alternativas de escolha. Aqueles que não têm remédio, optam pelos filmes e pelas séries, e serão eternamente pobres na escolha que fizeram." Ooops! O que pensarão eles de Collider, anunciado com pompa como "o primeiro filme português de ficção científica?" Então e Os emissários de Khalom? Então e Os abismos da meia noite? Nos anos 80 António Macedo era presença no Festival Fantasporto. Já se esqueceram dele?!
Mas deixemos os livros e as revistas na prateleira. No cinema foram George Meliès e Fritz Lang, com os seus Le Voyage Dans la Lune (1902) e Metropolis, (1927) pequenos tesouros que qualquer cinéfilo adora, quem inaugurou o género. Em 2011 uma cópia a cores do filme de Meliès foi apresentada com pompa depois de ter sido descoberta e restaurada ao longo de vários anos. A banda francesa Air compôs uma banda sonora para o filme histórico.
Vamos agora também viajar no tempo, entrando em 1927, data em qu estreou Metrópolis, e saindo nos anos 60. Nesse intervalo muita ficção científica chegou aos cinemas. Mas foi em 1968 Stanely Kubrick criou uma obra-prima da ficção científica: 2001, Odisseia no espaço. O argumento é da autoria de Arthur C. Clark. Tal como Kubrick também Neill Blomkamp, o director de Elysium, quer usar a ficção científica para fazer crítica social.
Há quatro anos atrás District 9 , a estreia de Blomkamp como realizador, foi uma surpresa, uma boa surpresa. District 9 é visualmente inventivo. Com foco no apartheid, esta parábola social mesclada com um toque de terror, como muitos filmes de ficção científica dos anos 40-50, consegue manter um tom realista para o que contribuem as entrevistas, o estilo "em documentário" de algumas passagens, as "notícias", a par do modo mais convencional do cinema de ficção. Os efeitos especiais são bons sem serem intrusivos. Quando as cenas de acção acontecem elas não chegam para trair nem as personagens - empáticas, bem caracterizadas, até mesmo os "Prawns"- nem a história a que assistimos. Pergunto-me porque é que Blomkamp em vez de nos ter apresentado Max deCosta, - um operário de uma linha de robots, interpretado por Matt Damon, que tem cinco dias de vida para se salvar e salvar o mundo, - não trouxe antes Wikus van der Merwe de volta?! Sabemos que ele está vivo, não é? Vive na favela sul africana, por esta altura já deve ter muitos amigos entre os Prawns e aguarda o regresso dos dois que voaram até à nave mãe! O mundo agradeceria muito uma sequela!
Existem pontos de contacto entre os dois filmes. Penso que todos os que viram District 9 se lembraram da área degradada de Joanesburgo ao seguirem Max. Não há muita diferença entre a favela militarizada, o campo de refugiados onde os extraterrestres de District 9 viviam exilados, uma vintena de anos depois de terem chegado ao planeta Terra, e a Los Angeles onde Max habita, uma parcela do inferno em que se transformou uma Terra doente, super-povoada, exaurida de recursos, insegura e policiada por robots.
Havia em District 9 uma clara analogia com o apartheid, uma tensão crescente entre opressores e oprimidos. Em Elysium volta a dicotomia opressor - oprimido. Opressores são agora os detentores da riqueza e do poder, uma minoria de privilegiados que puderam literalmente comprar um lugar no céu. Os oprimidos são os que nada têm, os que ficaram para trás, sem serem mais reconhecidos como cidadãos de pleno direito. Os primeiros isolaram-se numa colónia espacial de nome Elysium, como em Campos Elísios, na mitologia, o céu, o paraíso. Elysium é uma roda prateada, um pouco como a roda de um hamster, em permanente rotação! Aí vivem despreocupados e protegidos dos males que assolam a Terra, a guerra, a fome, a doença, indiferentes ao destino da população que habita a superfície terrestre. Os que tentam alcançar Elysium em busca de salvação para as suas doenças são tratados como clandestinos, abatidos, ou então capturados e deportados. A fria e loira Secretária de Segurança da estação espacial, a implacável, para não dizer psicopata, Delacourt, interpretada por Jodie Foster, assim garante. Não lhe falta sequer falta um cão de fila, um mercenário que vive junto dos desgraçados e que é, olha quem, Sharlto Copley, o protagonista de District 9, mas aqui cheio de testosterona!
Sai Copley, entra Damon, Hollywood manda. Damon, mais que empenhado, mas, desde o princípio do filme, um sofredor! A personagem de Max DeCosta não resulta em mais do que um mártir. Acumula desgraça em cima de desgraça, até final. Em District 9 Wikus também sofre, física e emocionalmente, enquanto evolui de dedicado agente do Governo a proscrito. Mas não é um mártir nem um herói. O filme não precisava de um herói. Mas Elysium precisa e Max não chega lá. Para mim é uma das fraquezas de Elysium: a ausência de um herói assumido. Não chega cravarem-lhe um exo-esqueleto às costas para lhe dar força extra. Não chega saber que está em contra-relógio e que do que fizer depende, não apenas e já somente o seu futuro, como também o futuro de toda a população na terra. Não chega combater Kruger, vencê-lo e depois morrer para que os outros vivam. Elysium é assim um filme de acção, com as suas lutas bem encenadas, um vilão vociferante e incansável...mas sem um herói.
Também a historieta de amor era mais que dispensável, não aquece nem arrefece nenhum coração da forma como é sub - explorada. Em suma é como o filme: não aquece nem arrefece nenhum coração quando devia haver um claro retorno emocional para o espectador. Ou estaria eu drogada no momento?! Não me parece, nem sequer comprei pipocas! Para um filme que carrega uma tal mensagem de humanidade falta-lhe algo que nos agarre pelo coração e não pelos olhos. Porque visualmente é tudo perfeito, quer o caos da Los Angeles em ruínas, quer a vida tranquila que corre por entre jardins verdejantes e interiores de luxo do cintilante anel, como se os seus habitantes fossem todos estrelas de Hollywood. Até poderão aparecer Óscares nas categorias técnicas.
Claramente gostei mais de District 9. O que não quer dizer que Elysium não valha o preço de um bilhete de cinema. Como blockbuster de Verão tem mais conteúdo que a maioria e não desaponta quando se procura entretenimento. Mais do que isso...talvez não. Ou alimentei expectativas demasiado elevadas. Ou, simplesmente, não se pode ter tudo. Blomkamp criou um híbrido quando se vendeu a Hollywood! Conclusão: é melhor ter menos dinheiro - District 9 - do que ter muito dinheiro - Elysium. É melhor ter um amigo desconhecido do grande público e pagar-lhe alguns rands - Copley - do que ter duas big stars - Foster e Damon - e pagar-lhes muitos dólares! Não se pode ter um filme de acção para fazer dinheiro na bilheteira, durante o verão, ao mesmo tempo que um manifesto sobre a desigualdade social, sobre os podres do capitalismo, mesmo quando o movimento Occupy está na berra. Não se pode fazer um blockbuster destes sem forjar um herói. Ou simplesmente havia uma forma melhor de contar esta história e Blomkamp não soube como. E agora? Sequela de District 9?
Comentários
Temos muitas e grandes obras de autores clássicos e mais atuais que questionam o mundo em que vivemos e que contribuem não apenas para a ficção científica como um todo, mas por analisar as mazelas do ser humano usando alegorias como raças alienígenas, robôs e conflitos espaciais.
Acredito que só pude conhecer a ficção científica como se deve a partir do momento em que comecei a ler estes autores. Sugiro que faça o mesmo, pois FC no cinema tem sido pouco expressivo.