Queen Elizabeth, o filme e as pipocas amargas




Uma pessoa vai ao cinema, compra o bilhete, senta-se na cadeirita e enquanto espera o filme interroga-se porque deixou de ir ao cinema. Lembra-se do tempo em que ver três filmes por semana NO CINEMA era uma façanha vulgar. Lembra-se do tempo em que uma semana de sessões de cinema de manhã à noite se esperava todo o ano, se marcavam férias para essa altura para não perder o Festival.Lembra-se dessa paciência infinita para descobrir autores desconhecidos, para destrinçar linguagens menos lineares, olhares menos comuns. E de repente nada. Um grande vazio de imagens foi-se instalando, as referências cinematográficas que se citam são antigas, os filmes recentes mais queridos têm anos. As revistas estão cheias de actores e actrizes cujos nomes já não se domina de A a Z. Agora ir ao cinema é quase como ir a um casamento, sendo eu uma pessoa de poucos amigos e amigos pouco casadoiros, é quase um ou dois por ano. É uma triste constatação para uma ex-cineclubista.

Foi o quê que me afastou dessa militância cinéfila? Dantes nem sequer morava perto de uma sala de cinema e ia, e ia a pé, com sol ou chuva,ia.Ia até a uma cidade diferente se fosse o caso! Agora moro perto de meia dúzia de salas e quase nunca vou ao cinema. Porque terei traído o meu amor pela sétima arte? Com quem? Com os livros? Com a Internet? Não, acho que foi com a vida de todos os dias.Vida que antes eu mesma já traíra com a minha indiferença. Mas indiferença fruto de quê exactamente? Do cansaço, do desinteresse, do enfado, do rush-rush diário?!!Não há uma razão clara para os meus passos não encontrarem o caminho para as salas de cinema porque sempre que o faço desejo voltar logo no dia seguinte e ver um ou dois filmes seguidos!Mas dois filmes que sejam estimulantes, não duas fitórias quaisquer. Se agora até me posso queixar de um bilhete ser um luxo há três anos atrás não escreveria da mesma forma e já se contavam pelos dedos das mãos os filmes que via por ano NO CINEMA.Por isso não vou usar o argumento mata-tudo: o preço.

Ora quando uma pessoa vai a um casamento espera que tudo seja perfeito mesmo que pense que existem grandes probabilidades do enlace não durar mais do que uma saison!E quando se vai ao cinema é a mesma coisa: espera-se que seja uma boa experiência mesmo que no final a conclusão seja que o filme era do pior e não dure dele recordação na nossa memória além portas da sala. E então o que sucede?Uma pessoa chega à bilheteira e logo aí podem começar as contrariedades se, no meu caso,não houver um lugar na última fila. É que estas salas são uns caixotes pequenos! A tela está em cima de nós! Eu sinto-me à janela do filme e não a ver o filme! E porque se tratava do Elizabeth, ou a minha cabeça ainda rolava pelo chão, qual Mary Stuart, se o executor se distraísse e desse um pouco mais de balanço à lâmina, ou ainda me estoiravam os canhões do Drake em cima!Tive sorte e lá me deram um lugar bem encostado à parede do fundo e um extra:um jornal, que fixe!E o moço da bilheteira era simpático o que hoje é de louvar: a excelência do atendimento anda muito estranhamente confundida com alheamento ao cliente.Pelo menos nas lojas de roupa é assim e quanto mais cara a roupa melhor a antipatia! (As meninas lembram-me sempre daquelas mulheres que tocavam guitarra no video do Robert Palmer, estão a ver?!!)

Coisas à borliú a gente gosta sempre. Bom, nem sempre. No cinema também temos companhia à borliú.(Ou será que o preço do bilhete inclui a companhia?)A companhia no cinema é importante. Não sei se já foram ver um mesmo filme cómico ao cinema duas vezes.Dois públicos diferentes podem transformar a experiência de forma radical. A reacção do público, positiva, favorece o filme e a nossa experiência do momento. Ora, o contrário também sucede. Mesmo que o filme seja uma reconstituição histórica, um drama,um policial ou cinema de aventuras.

No meu caso, hoje, começou tudo logo mal, mas eu assumo que sou peculiar: tenho um sentido de humor um pouco fora da norma e não parava de rir com os trailers de filmes infantis que vão estrear. Do meu lado esquerdo e do meu lado direito a minha companhia bocejava.Sentia-me uma anormaleca entalada entre os dois homes, eu a conter risinhos miúdos, eles nem ai nem ui, os dois muito adultos e reservados. Mas o pior estava para vir. Até ao intervalo o meu vizinho à esquerda empanturrou-se de pipocas que esgravatava fru-fru-fru na caixinha de papel e sorveu líquidos ruidosamente para ajudar a engolir o milho florido; o meu vizinho da direita bichanava todas as legendas em voz baixa, tipo oração, e ainda acrescentava alguns comentários de sua lavra ao desenrolar da acção. A sério, ele LEU TUDO, MAS TUDO MESMO com os lábios. No intervalo também se foi abastecer de líquidos- pudera, devia ter a boca seca!- e de pipocas. Não sei se continuou a oração depois disso mas como é feio falar com a boca cheia talvez tenha parado.Eu mudei-me para o lugar no extremo da fila e pensei que agora é que era, ia ter direito à exeriência cinematográfica perfeita, dentro do possível.Puro engano: dali ouvia o som do filme que passava na outra sala gémea e enquanto me tentava alhear disso passou-me vagamente pela ideia a antiga sala do Casino, com as suas cadeiras macias e verdes da cor do vestido da Elizabeth. Uma pessoa vai ao cinema, compra o bilhete, senta-se na cadeirita e enquanto vê o filme interroga-se porque deixou de ir ao cinema.

Comentários

Capitão-Mor disse…
Um belo texto de cinéfila!