Cinema: o labirinto do fauno, de Guillermo del Toro


O que fazer quando se está na ressaca de uma maleita qualquer, possivelmente apenas uma constipação vulgar, o corpo dói, a cabeça estala, a energia falta? Toma-se um par de comprimidos, vai-se para o cinema e deixa-se de sentir o corpo! O cinema sempre funcionou para mim como o perfeito escape. Tão bom como a praia e sem carácter sazonal. É uma das melhores formas que conheço de me sentir entregar de corpo, mente e alma a outros mundos, e libertar-me, seja de preocupações, seja de frustrações, seja da pura e enfadonha realidade. Qual ioga, qual thai shi! Sempre o fiz e deu resultado- encontrei o meu método pessoal de relaxamento. Na faculdade, em cima de provas de frequência, de nervos em franja, o Avenida, o Girassolum, o Tivoli,o Gil Vicente, corri-os a todos. Nos picos de trabalho eram as sagradas sextas-à-noite dos vídeos em dose dupla a abrirem o fim-de-semana! Nas discussões acaloradas e sem fruto no meu círculo de relacionamentos, a melhor forma de retemperar os sentidos e predispor a mente para pensar a frio. Nas crises de criatividade quando o inferno é quase sempre uma folha em branco, o interruptor quase infalível para desligar o curto circuito e ligar a corrente das ideias. Tudo isto me dá o cinema e mais tudo aquilo que todos lhe reconhecemos: a maravilha de saber que alguém trabalha para nos contar uma história, afinal o eco duma voz amiga que a nossa infância encerrou como um tesouro e que pela vida fora ansiamos ainda descobrir e trazer à luz, nas salas escuras perto de nós. É por isso que vou ao cinema: porque gosto que me contem histórias. Nada como uma boa história para nos sentirmos devolvidos àquele lugar mágico da nossa infância onde nos desvendavam mundos que as imagens dos livros apenas ilustravam e que as palavras, que ainda não sabíamos ler, aprisionavam buscando quem as libertasse.

Hoje a experiência foi O Labirinto do Fauno e já sei que devem haver mais blogues do que consigo nomear a contar e a recontar a história da pequena Ofélia e da sua infeliz mãe, do seu padrasto cruel e das milícias resistentes, da brava Mercedes, das fadazinhas esvoaçantes, de Pan, o Fauno, do sapo nojento que vivia sob a árvore e da criatura pálida que verdadeiramente comia criancinhas ao pequeno-almoço, da mandrágora-bebé... Por isso eu não vou escrever nem uma linha sobre o assunto filme que já sabemos ser mexicano mas pouco, oscarizado naquilo que mais superficialmente o distingue- a direcção artística, a caracterização, a fotografia - mas não no que mais intrinsecamente o tornará inesquecível: um bom argumento e uma mão de mestre que conduziu a imaginação e a fez funcionar através de uma equação quase perfeita entre fantasia e realidade. É o drama dos filmes de género: quando é que o cinema fantástico há-de deixar de ser considerado o parente pobre da família? Penso que os adultos da Academia se envergonham de admitir que gostam de contos de fadas muito além do que a infância sanciona como normal. Por um lado nomeiam, por outro não atribuem os prémios. Consola-te com a nomeação e toma lá os carecas dourados do costume. Ah, e para o ano vê se apareces por cá com um filme de gente grande, és bom mas não podemos assumir que gostámos mesmo disto, íamos ser tomados por velhotes senis, perdão, por velhotes infantis. Pois eu não tenho vergonha de assumir que gosto de histórias assim. Um senão único: têm que ser mesmo boas e isso nem sempre acontece.

Vim do cinema muito mais constipada e com uma vontade louca de fazer uma viagem ao interior da cabeça do Guillermo del Toro. Mas não vendem bilhetes para isso. Talvez no futuro essa possibilidade se torne um negócio rentável. O homem é um louco querido, tão louco e tão querido como Tim Burton, ou até mais: eis dois adultos que não têm medo de se perder no labirinto da imaginação para se reencontrarem com a sua real natureza. E olhem o que daí resulta. Pensem no que resultaria para nós também se fôssemos mais capazes de um olhar infantil sobre a realidade. Talvez nos reservássemos uma surpresa. Mas não, os adultos dividem asperamente o mundo em dois tal como quem talha uma melancia: de um lado encerram a fantasia, o mundo das crianças, do outro vivem a realidade, o mundo dos adultos. O filme ensina-nos. É um filme para adultos para ver com olhos de criança, olhos capazes de viajar entre o real e o imaginário, que elas sentem e vivem como um só, aproveitando e rejeitando, o melhor e o pior de cada um. Devíamo-nos perder no labirinto de vez em quando. Ou estarei a ser muito infantil?

Comentários

Capitão-Mor disse…
Acredito que este seja um dos grandes filmes para este ano. Até parece que tem uns toquezinhos do Tim Burton...
Burlesconi disse…
Não faria mal nenhum, não senhora...
spring disse…
este filme ainda não vimos mas ficámos encantados pela escrita, dizem por aí que o filme invade a memória do "Espírito da Colmeia" do Victor Erice?
paula e rui lima