Na ressaca das eleições e da "volta à direita"


Há mais de uma semana, estava no passeio em frente à passadeira à espera que o sinal me desse luz verde para atravessar, quando um carro engalanado com bandeiras parou junto a mim. Do altifalante, chegava Gloria, de Laura Branigan, uma canção dos anos 80, sobre alguém que é chamado a acreditar em si próprio, lutas interiores, stress, e superação pessoal, mais ou menos isso. Enquanto a canção me fazia recuar no tempo, no passeio em frente pessoas saudavam o condutor do veículo, outras gritavam Chegaaaaa! e outras ensaiavam uns movimentos de dança. A canção tomou conta da minha cabeça, andei a cantarolá-la até ser noite, sentindo certa alegria nostálgica, acompanhada por um pressentimento de que certos fantasmas do passado se fariam em breve muito presentes.

Usualmente não escrevo sobre política, talvez achando que não preciso, mas a verdade é que talvez o devesse fazer. Muitas vezes uso a escrita para me ajudar a pensar melhor e nem sequer a torno pública. Há dezenas de rascunhos no blogue. Também não sigo com rigor absoluto o que acontece na cena política e por isso deixo o assunto para quem sabe. Quando escrevo sou quase sempre confrontada com as minhas certezas e limites. Faz muita falta, a muita gente, sobretudo à classe política, deixarem de lado as suas certezas contundentes uma vez por outra. O invisual, que vai tateando a realidade à medida que avança, faz um reconhecimento do caminho para chegar ao seu destino, e assim adequa o seu passo a novos obstáculos que encontre, alcançando o seu propósito com êxito. Ele respeita cada obstáculo, nunca vi nenhum a dar pontapés num obstáculo que lhe tolhesse a progressão. Os partidos políticos nem de olhos abertos fazem isso. Definida uma agenda, fazem-se à estrada mas, muitas vezes, numa cegueira completa, ignoram os problemas, quando não passam por cima deles ou os derrubam, demitem-se de qualquer mudança que o seu trajecto lhes pudesse exigir. Esta falta de plasticidade, que também podia dizer diálogo, condena-os, e às suas políticas, ao insucesso, e possibilita que fantasmas retornem para assombrar a democracia.

Talvez ingenuamente, durante anos, julguei que Chegas não triunfariam nas nossas urnas. A herança de Salazar asseguraria um voto sempre digno de Abril. Mas passaram 50 anos e muita da nossa memória já é apenas ficção nas nossas pesadas cabeças. O tempo não perdoa, nem os desafios do quotidiano. Será que o sentimento antifascista se consumiu? Não, mas o descontentamento instalou-se. E cedo demais. Há quem, equivocado, suspire pelo passado, mas mais do que censurar é preciso interpretar. A revolução de Abril não se consolidou amplamente, Portugal é ainda um parente pobre da Europa. E instalou-se também uma grande apatia política quase sempre traduzida em abstenções enormes a cada eleição. O desencanto com tanta promessa por cumprir, tanto sonho, é evidente. Ora, se até na Alemanha, a direita radical cresce, parece não haver vacina histórica contra populismos radicais. Uma vez encontrado o terreno fértil, eles eclodem como uma doença viral, por isso, nada de espantos.

Era para mim motivo de orgulho ver que nos distanciávamos das tendências europeias, Itália, Áustria, Hungria e Polónia, eleição após eleição, mas preocupante ver como estavam representados no Parlamento Europeu. Então, ontem o Chega passa do 1, qualquer coisa dos votos de 2019 , - depois de ter subido mais um pouco nas Presidenciais de 2021, - para um número mais redondo, sobe de um deputado para 48. O descontentamento com a classe política já existe há muito tempo mas até aqui os votantes ou não iam votar ou votavam em branco, ou votavam nulo. Não escolhiam partidos radicais para protestarem contra a corrupção e um sistema político com tamanho desplante, apesar de tudo, democrático. E então, ontem, foi muita a decepção quando a TV anuncia as projeções: o Chega transformado na terceira força política mais expressiva. Hoje, na ressaca eleitoral, com calma, vejo que a tal assombração do passado pode até ser o choque que fazia falta para abanar a árvore da política e largar alguma podridão.

Era evidente que, tal como na canção da Glória, a mensagem do Chega tinha atingido de forma estridente, irracional e entusiasta os ouvidos de uma parcela da população. O Chega tornara-se sinónimo de esperança para quem se cansou da alternância PS-PSD. Uns usaram-no como protesto. Outros entregaram-lhe a sua confiança. Como é um partido que ainda nada fez, não tem nada que se lhe apontar, nem bem nem mal. Não se envolveu em escândalos, não é corrupto. Dizem também os devotos que é uma bênção do Senhor neste lodaçal político à beira mar. Como alguém escreveu no Facebook, Ventura é o enviado divino que vai restaurar a nação lusa à sua grandeza. (A frase continha muitos erros ortográficos.)

Lembrei-me das pessoas que tinha visto do outro lado da avenida. Eram jovens. Um longo desinvestimento na educação pode explicar parte do sucesso do Chega de norte a sul. O pensamento crítico está em crise. A ignorância tem o seu culto. O individualismo, crescente. Mas no mapa eleitoral o Algarve é todo azul. O Chega triunfou em Faro de forma esmagadora sobre o PS que governava. Como se explica? O que sabemos sobre Faro? O que sabemos da luta diária de quem vive no Algarve? Quais os problemas da população? Há desemprego? Como é o acesso à saúde? E a escolarização? Há muita imigração incómoda? Há descontentamento com a governação local? Como é viver em Faro? Só lá vamos de férias, tal como os políticos. Foi um voto de protesto pela forma como os sucessivos governos têm tratado o Algarve? Terá o Chega estudado o território nacional e identificado no Algarve um potencial eleitorado mais favorável às suas ideias, agindo ali de forma especialmente metódica?

Quando Trump andava em campanha e nos deleitávamos online com o humor cáustico e desbragado em torno da sua figura, confiando que não seria eleito, o que sabíamos da realidade daqueles que o elegeram ? Claro que também zombei e chamei idiotas aos que votaram para tornar a América grande outra vez. Mas quando vi uma reportagem sobre quem eram essas pessoas, ou algumas delas, note-se, nem todas eram dignas de compreensão, comecei a moderar o meu discurso: idiota era eu, porque era ignorante. Idiotas foram, antes de mais, todos os que lhes prometeram muito, e pouco ou nada cumpriram, ano após ano, ao mesmo tempo que priorizavam o seu umbigo de interesses, dividindo ainda mais a população entre favorecidos e desfavorecidos. Esses americanos, vulneráveis a vários níveis, sem grandes qualificações profissionais, com baixa escolaridade, não tinham, na sua região, quaisquer perspectivas de vida. A sua desilusão era tão grande, a sua perspectiva de futuro tão negra, que eles beijariam o chão de quem quer que fosse lhes apontasse um caminho novo. Todos tinham falhado, a nível local, ou acima. Eles não se sentiam representados. E isto aconteceu: alguém lhes disse o que queriam ouvir, falando a sua linguagem, sem floreados. Ali estava alguém em quem podiam confiar e ao mesmo tempo vingar a elite que nada tinha feito por eles, por mais absurdo que tudo isto nos parecesse, a nós, cientes daquela fanfarronice, visto de longe.

Em Portugal, um cenário equivalente pode assumir outro recorte social, económico, demográfico, etc, mas o sentimento de desencanto de quem não se vê representado pelo partido X ou Y, anos a fio, poderá ser semelhante. E se dantes votavam à esquerda, no PS ou no partido comunista, actualmente, desistiram. Eles já não oferecem soluções. O último, com a sua intransigência e subserviência ao passado, incapaz de acompanhar a mudança de mentalidades e as questões mais actuais, deixou de ser atraente. Ao PS, deu-se-lhe a faca e o queijo para a mão e o que é que fizeram? Desbarataram a oportunidade! Estrago irremediável? Não, mas agora é preciso fazer muito melhor se os quiserem reconquistar. Os votantes repartiram-se por outros partidos, e também pelo Chega, que soube usar uma linguagem mais moderna, bramir certas questões críticas para nós mas que soam como música ao ouvido daqueles, servindo-se muito das redes sociais para alcançar o seu alvo, e invocando promessas que não passam de cenários de papel que em nada resolverão o ressentimento.

Vemos então, que passados 50 anos sobre o 25 de Abril, a história que nos tornou fortemente antifascistas já não chega para manter os votantes longe deste tipo de partido radical e populista. Os tempos são outros. Mas se ontem estava alarmada, hoje vejo uma oportunidade de viragem. Seria um desperdício e um perigo que a Esquerda, mas não só, não aproveitasse esta lição para pensar seriamente no futuro. Talvez a nossa classe política precisasse de ver para crer. Pois aí está a evidência dos problemas menosprezados por décadas. A ascensão de partidos populistas não se combate nas urnas, combate-se no dia a dia. Infelizmente, os portugueses continuam à espera de ver os seus problemas resolvidos e o cenário dos próximos meses aponta para instabilidade governativa. Merecíamos melhor, porra.

Abril, sempre!

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