DEUS, PÁTRIA, FAMÍLIA E TRAFULHICE

DEUS, PÁTRIA, FAMÍLIA E TRAFULHICE
"Não são só os casos que semanalmente se conhecem dos dirigentes do Chega. Os bastidores do partido, agora trazidos à luz do dia pelo livro “Por dentro do Chega”, revelam práticas nada coerentes com o discurso de André Ventura e muitos parágrafos para a justiça ler com atenção. O livro do multipremiado jornalista Miguel Carvalho, editado pela Objectiva, chegou às bancas este mês e resume em 751 páginas o conteúdo de milhares de documentos e entrevistas com atuais e ex-dirigentes. Alguns contam tudo.
Delfim Machado, Notícias Magazine, 21/09/2025
Dos financiamentos escondidos às gravações telefónicas secretas para entalar rivais internos, esta investigação mostra como André Ventura patrocinou exércitos de perfis falsos e purgas internas para criar um Chega unipessoal que sustenta as ambições desmedidas, as vidas abastadas e as madrugadas de copos dos seus mais reputados dirigentes. Pelo meio há guerras religiosas, filiações de imigrantes brasileiros em massa e a tentativa de corrupção de um ministro de Cabo Verde.
André Ventura e a mulher, Dina, mais um punhado de dirigentes de topo do Chega, numa lancha rápida de Lagos até à cidade marroquina de Tânger, que seria a ponte até ao exílio na Costa do Marfim. O objetivo era Ventura fugir à prisão e contornar, na clandestinidade, a já sentenciada ilegalização do partido em plena pandemia. É com esta insanidade coletiva que começa o livro “Por Dentro do Chega”.
A fuga para Tânger nunca chegou a acontecer, mas o plano existiu e André e Dina chegaram mesmo a refugiar-se “borradinhos de medo” na quinta de luxo de Arlindo Fernandes em Lagos, segundo contou este empresário admirador de Salazar. Arlindo Fernandes subiu a pulso no Chega, mas, como muitos, desencantou-se quando viu um partido podre. Agora é candidato da coligação PSD-CDS à Junta de Odiáxere, em Lagos. Na base do plano de fuga de Ventura para Tânger estavam informações que só o líder recebera, de suposta mão amiga, dando conta de uma investigação para o prender. Nunca houve notícia de ter mesmo existido.
O Chega foi fundado em 2019 para “limpar Portugal” e adotou, em 2021, no Congresso de Viseu, o lema de Salazar “Deus, Pátria e Família”, ao qual acrescentou “Trabalho”. A fuga para Tânger é exemplo de como os primeiros três anos seriam encharcados de boatos que eram gasolina para a guerra civil interna. Os telemóveis eram a principal arma e Ventura acabou com a rédea solta. Decretou que quem dissesse mal dele ou do partido, em público ou privado, seria suspenso.
Expulsões e suspensões eram seletivas
Num partido que guerreava nas redes sociais através de dezenas de milhares de perfis falsos que espalhavam desinformação de alvos internos e externos – como alguns dos autores confessam na publicação -, a lei da rolha só multiplicou as denúncias. De repente, episódios de faca e alguidar caíam aos molhos no Conselho de Jurisdição Nacional (CJN), que os analisava de forma seletiva e aproveitava para “limpar” o partido. Neste tribunal, “suspendiam-se pessoas para não participarem nas eleições internas” e havia processos “que nunca tiveram seguimento porque sua excelência não quis”, recorda, no livro, Carlos Monteiro, que era um dos três membros do CJN.
Para agilizar as expulsões sem contraditório, Ventura criou a Comissão de Ética liderada pelo deputado Rui Paulo Sousa que suspendeu ou expulsou mais de 100 militantes, quase todos opositores internos. “Havia decisões tomadas antes de as analisarmos”, revela Carlos Monteiro. Ao fim de dois anos, o Tribunal Constitucional declarou a Comissão de Ética ilegal. Mas o objetivo de esfarrapar a oposição interna já estava alcançado.
Miguel Carvalho não tem “qualquer dúvida” que esse será o trato a dar às oposições se Ventura chegar ao poder. “No Congresso de Coimbra, uma das declarações que ele faz, naquela estratégia de namoro/arrufo com o PSD, é que queria ter quatro pastas e uma delas era o Ministério da Administração Interna. Um partido com estas práticas que tome conta do MAI, ainda que seja só essa pasta, é absolutamente assustador. Nós estaríamos perante a concretização de um Ministério do ‘Big Brother’”, admite, em entrevista à ‘Notícias Magazine’.
O jornalista de 54 anos, do Porto, investiga as origens do Chega desde que se tornou ideia na cabeça de um grupo onde estavam os então amigos André Ventura e Nuno Afonso, militantes números um e dois, respetivamente. Do grupo de mais de dez que entregaram as listas da fundação do partido, apenas sobram três e Nuno Afonso não é um deles.
O antigo melhor amigo de Ventura desfiliou-se no início de 2023 quando os seus apoiantes já se tinham desencantado com o rumo do Chega. Muitos foram suspensos ou expulsos por
comentários nas redes sociais ou foram gravados a dizer mal do chefe. Nuno Afonso, conta-se no livro, foi alvo de um plano urdido pelos principais dirigentes que consistia em “pô-lo a papaguear ao telefone, grava-lo à socapa e entregar o produto à Direção do partido”. Houve dezenas de alvos como ele, um ‘Big Brother’. “Do que tive conhecimento, em 2020 e 2021 as gravações eram abundantes”, refere Miguel Carvalho à ‘NM’.
Vários militantes afirmam que enviavam conteúdos de gravações à Direção e a André Ventura. Miguel Carvalho não contesta que o líder soubesse: “O grau de autoridade e de domínio que o André Ventura tem no partido, desde as coisas mais importantes às coisas mais mesquinhas como dar ordens para mudar a areia do gato, indicam que é muito difícil que estas práticas não tivessem o conhecimento dele”.
Donativos anónimos de 300 mil euros
O Chega de 2025 tem 60 deputados e recebe cinco milhões de euros por ano em subvenções. Porém, em 2018, o partido vivia das contas pessoais dos fundadores que pagaram, com dificuldade, um euro por cada uma das assinaturas recolhidas por miúdos. Sem verificação, muitas acabaram por se revelar falsas.
À medida que o partido cresceu, aumentaram os donativos e dos poucos euros passaram-se para as centenas de milhares. Só entre a primavera de 2020 e o final de janeiro de 2022, o Chega recebeu mais de 300 mil euros em donativos feitos através de uma plataforma que é legal, mas cujo método não permitiu a identificação dos financiadores. Ventura alega que é a empresa e os bancos que têm de dar os nomes, estes dizem que o partido é que os tem de dar à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.
Quanto aos doadores conhecidos, estão lá alguns dos maiores empresários do país, fundos imobiliários e mecenas de várias estirpes. Um deles é César do Paço. O ex-cônsul de Portugal e Cabo Verde nos Estados Unidos deu, oficialmente, um donativo de dez mil euros. No entanto, segundo denunciou José Lourenço, o ex-presidente da distrital do Porto do Chega e antigo homem de negócios de César do Paço, havia donativos fora do circuito regular.
José Lourenço morreu em maio deste ano, mas deu a última entrevista a Miguel Carvalho. Nela conta que César do Paço, com quem Lourenço estava a travar uma luta judicial antes de morrer, oferecia bens aos bombeiros e convidava os membros do Chega para os entregarem. Também pagou alojamentos, jantares e “havia uns envelopes de dinheiro”. César do Paço nega.
Pelo caminho, Lourenço confirma que comprou um Mercedes a mando do cônsul para entregar ao então ministro dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde, Luís Filipe Tavares. O carro seria a moeda de troca pela nomeação de César como cônsul honorário de Cabo Verde na Florida, Estados Unidos. O caso foi arquivado em Cabo Verde e está em investigação em Portugal.
Muitos dos que se envolveram no Chega, financiadores ou não, desencantaram-se com o partido. Mais de metade dos vereadores eleitos deixaram de se rever na estratégia. Entre os vários entrevistados há sempre um aspeto comum: o Chega pratica dentro de portas aquilo que promete combater fora delas.
Um vasto rol de “casos e casinhos”
Aos vários “casos e casinhos” já conhecidos, Miguel Carvalho junta-lhe outros como o da fatura que Pedro Pinto deixou por pagar nos Bombeiros Voluntários de Beja, a da pensão de alimentos que Rui Paulo Sousa prometeu pagar quando fosse eleito deputado, a das dívidas que Diogo Pacheco de Amorim tinha quando entrou no Parlamento. Vários dos 60 atuais deputados do Chega estavam na lista negra do Fisco poucos dias antes de serem eleitos e outros refizeram a vida com a entrada para o partido.
Entre os mais próximos de Ventura não faltam cadastros iguais aos bandidos que o líder garante combater, sem que os expulse, como promete. Hélio Filipe, que é militante do Chega, guarda-costas de André Ventura e namorado de Rita Matias, foi condenado a dois anos de pena suspensa por espancar e roubar um homem. No mesmo processo, não foi provada a acusação de sequestro e extorsão. Na semana passada, foi o segurança pessoal de Ventura na incursão pela manifestação de imigrantes.
Enquanto controlou as despesas do cartão de crédito do partido, Nuno Afonso contabilizou abastadas refeições para Ventura e os seus mais próximos, com digestivos “à la carte” e estadias em hotéis, além de um carro topo de gama para uso do presidente. As noites de copos em casas de meninas eram conhecidas. Na sede, as noitadas eram umas atrás das outras. “Era um cenário típico de final de noite num bar de terceira categoria”, descreveu Nuno Afonso, também ele autor de um livro sobre os bastidores do Chega (“Ontem éramos o futuro”, 2025).
Ventura, o agregador do descontentamento.
À “Notícias Magazine”, Miguel Carvalho distingue o eleitor do Chega dos seus dirigentes, pois o partido cresceu à custa de quem se desacreditou ou se sente abandonado pelo sistema político-social e pelos serviços públicos básicos como os CTT, a escola ou o centro de saúde: “Se houver um político que não se cinja às redes sociais e for por esse país fora, de porta a porta, fazer um esforço descomunal, para ouvir e tentar perceber, e que seja absolutamente fiel à palavra dada, aí o Chega não terá grandes hipóteses, nem com redes sociais”.
Até lá, Ventura será o que as massas quiserem que ele seja, como demonstra Miguel Carvalho. Qual camaleão que sempre aparece para salvar as almas do caos das circunstâncias, algumas de fabrico próprio. Ele é, se for preciso, o seminarista mais promissor que deixou de ser padre porque encontrou o amor; o dedicado académico progressista, preocupado com os direitos humanos, que se distingue na sala de aula para agradar aos professores; o mais zeloso inspetor do Fisco e combatente dos paraísos fiscais que mais tarde lhe vão pagar a campanha; o humanitário cronista de jornal que apela a que se acolha “o maior número possível de migrantes” (2015); o enraivecido megafone dos benfiquistas em horário nobre na CMTV; o messias dos crentes, católicos ou evangélicos; o farol dos desencontrados."
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