Fallout: o fim do mundo é um produto

 




À primeira vista eu não me interessaria por adaptações de jogos de vídeo para cinema ou televisão. Os jogos nunca me cativaram e nunca adivinharia que neles haveria uma história que realmente valesse a pena conhecer. Experimentei-os ainda na sua pré-história e abandonei. Mais tarde vi o meu sobrinho jogar avidamente. Comecei a prestar atenção ao assunto. Super Mario. Resident Evil. Final Fantasy. God of War. Skyrim. Angry Birds. Grand Theft Auto...A variedade é imensa. É possível que se tivesse investido na pesquisa talvez tivesse encontrado algum que me agradasse! A popularidade deste tipo de entretenimento é, em si mesma, um fenómeno que agarra adolescentes e adultos com idêntico magnetismo. Jogos criam universos e regras onde os jogadores mergulham de cabeça e se esquecem do mundo. Acarretam perigos quando se perde o controlo sobre o tempo que se lhes dedica. O vício de jogar pode interferir de forma negativa na vida do jovem ou do adulto. Mas este texto não é sobre isso. 

Por alguma razão, sou alheia ao fascínio dos videogames! Continuei distante do fenómeno apenas apreciando o visual dos games que o meu sobrinho me mostrava. E também a música, muito boa música se compõe para os games. Foi o meu sobrinho que me aconselhou a ver The Last of Us, série que eu logo julgara não ser para mim. Na minha crítica, entre outros pontos, questionava para quê adaptar uma história de um jogo de vídeo? Não seria melhor escrever uma completamente original? Estranhamente, ou talvez não, fiquei muito bem impressionada com tudo o que vi - tive de dar o braço a torcer! -  e considero-a uma das mais bem sucedidas séries que vi nos últimos tempos, muito acessível à maioria, adolescentes, jovens adultos, adultos, como eu, uma série com vocação popular mas excelente, primorosa no desenvolvimento de personagens, interpretações, na criação de ambientes e execução, etc. Esperava que obtivesse mais prémios mas eles não chegaram. Ainda assim considero-a um triunfo e aconselho-a sem hesitações aos amantes da fantasia.

Depois dessa boa experiência, eis que chegou Fallout. Mais uma vez eu não sabia nada sobre Fallout, a não ser que era um jogo de vídeo. Mas desta vez estava predisposta a dar-lhe uma hipótese. Não eram assim tantos episódios, apenas 8, e por estes dias só me tem apetecido ver séries e filmes que me façam evadir da realidade! (Cada um escolhe o melhor esquema que pode para as suas fugas.) Tal como sucede com The Last of us, quem nunca jogou o jogo, como eu, não sai prejudicado no entretenimento. Até talvez seja melhor assim pois não temos termo de comparação nem levantamos questionamentos de fã empedernido. Quando a série arranca estamos nos anos 50, uma época que me fascina em termos visuais e que aqui é retratada com um toque futurista. A guerra fria está em curso, o Macarthismo  persegue comunistas no meio da indústria cinematográfica, e uma estrela de cinema, (e depois da TV) , de nome Cooper Howard, vestido de cowboy, diverte crianças numa festa de aniversário, possivelmente por ter sido rotulado como comunista e ostracizado. A sequência inicial é brilhante e eu fiquei logo ali agarrada a Fallout: isto promete, pensei. É a sua pequena filha que primeiro observa o início da guerra nuclear, identificando uma explosão no horizonte e medindo o tamanho da nuvem que se forma com o seu polegar. Ela está sozinha no exterior enquanto o pai lhe vai buscar uma fatia de bolo. Nós, espectadores, estamos dentro da sala onde o ambiente é de festa, - apesar de na TV se discutir a possibilidade de uma guerra nuclear, pelo que os adultos a fecham para não estragar o ambiente - quando a onda de choque da explosão faz estilhaçar a vidraça e desperta todos os presentes para o horror do apocalipse que começa. Logo ali ficamos a saber que apenas alguns privilegiados têm um lugar seguro no subsolo e quando o tempo avança umas centenas de anos descobrimos que existem muitos "cofres" onde grupos de pessoas construíram uma vida protegida das agruras da superfície devastada. Num deles vivem Lucy (Ella Purnell), que acredita religiosamente na regra de não fazer aos outros o que não goste que lhe façam, e Hank, (Kyle MacLachlan) o seu pai, o supervisor do cofre. Não vou detalhar mais o que acontece a não ser que o cofre de Lucy - onde a vida perfeita e higiénica parece um pouco estéril, onde cada um acredita que irá repovoar a superfície com o melhor que a humanidade pode ser, quando ela for de novo habitável - é atacado, o pai raptado e ela forçada a deixar o seu lar e a descobrir uma Califórnia suja e violenta para o encontrar, uma vez que ninguém mais mostra interesse nisso. Na sua jornada ela vai-se cruzando com uma série de personagens e uma delas, a mais fascinante, é o Ghoul. O Ghoul é Cooper Howard, mas agora na forma de um mutante, um resultado da radiação e de tomas sucessivas de "medicamentos" que lhe permitiram a sobrevida na inóspita superfície. Se a personagem de Lucy vai ganhando interesse e substância ao longo da sua jornada, lentamente, à medida que perde a sua inocência e desperta para a realidade que lhe fora ocultada, à medida que se torna outra pessoa,  o Ghoul é, desde o início, cativante. Primeiro, percebemo-lo como um vilão rude e amoral, mas depois ele revela-se como um ser mortificado pelo passado, muito mais complexo do que poderíamos supor, através de gloriosos flashbacks. Walton Goggins - que já conhecia de Django Unchained, The Hateful Eight, e de Ant-Man and the Wasp - faz um papelão no desempenho destas duas personagens.

Os criadores da serie combinaram elementos de histórias de apocalipse pós-nuclear com a cultura dos anos 50, sua estética e música, - que é usada com muita ironia - convenções de filmes B e o sangue e violência dos filmes de terror. O humor e o absurdo funcionam com mestria, no tom certo, e é de forma surpreendente que o drama e a comédia se equilibram.  É uma mistura estranha e bem calibrada. Nos primeiros episódios, Fallout dá-nos a conhecer três personagens e a sua circunstância, - Lucy, uma donzela de alma pura, que vive na segurança de um cofre, Maximus, um recruta ambicioso que numa Irmandade de Guerreiros algo mística aspira a ser um guerreiro e a deixar de limpar latrinas, enquanto se sente injustiçado, e o Ghoul, o mais bem sucedido dos sobreviventes da terra queimada, do deserto, um caçador de prémios astuto e sem escrúpulos. A partir do quarto episódio começam a adensar-se os mistérios que nos envolvem até final num crescendo de revelações e que culminam num excelente desfecho. A série vê-se com uma espécie de sentimento de familiaridade apesar da criação de um universo visual muito distinto. Não é difícil a quem se interesse minimamente por temáticas distópicas lembrar-se de séries como The walking dead ou The silo, Westworld, ou até de filmes como Mad Max.

A revelação de Fallout, o spoiler que deviam evitar, é o de que o fim do mundo é um produto que se vende. Não apenas as empresas, também os governos e os próprios activistas anti-capitalismo são alvo da sátira de Fallout. Mas o principal vilão parece ser, afinal, a Vault-Tec, a criadora dos Cofres. Como assegurar o lucro? A paz era uma ameaça ao negócio dos refúgios no subsolo. Destruindo o mundo, provocando a guerra, sem ponta de escrúpulo, o sofrimento de muitos assegurará o lucro de poucos. E, além disso, auto preservando-se, usando para isso um sistema especial de cofres onde se guardou o melhor - ou o pior? - do capitalismo mais selvagem de sempre. Dessa forma será possível vencer o tempo, a última dimensão, e estar no comando 200 anos depois. É sabido que o poder corrompe, nada de muito novo, mas estas revelações em cadeia, se nada soubermos sobre a história que nos contam, são interessantes o suficiente para justificar a nossa jornada até ao fim e ainda ficar curiosos acerca do que se seguirá. Fallout começa e termina de forma brilhante. Pelo meio notei alguns solavancos, mas nada de imperdoável. Ainda assim, The Last of us é a minha favorita.

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