Dez horas ininterruptas de canções de Natal


Chega o último dia de Novembro e no café, ao balcão, assisto a uma discussão sobre as iluminações festivas. O município X tem tudo a bombar desde meados do mês, no Y já se vê alguma coisita, mas naquele onde a senhora reside, que vergonha, se ela quiser fazer uma selfie para o Facebook tem de fazer uma viagem até ao município vizinho pois aí, onde vive,  ainda reina a escuridão normal. Fico igualmente a saber que há excursões de portugueses a rumarem a Vigo onde as ruas generosamente iluminadas a LED fazem inveja a Nova Iorque, e onde se encontra a árvore de Natal mais alta, não percebi se de Espanha se da Europa. Engulo a dentada na nata quente, bebo o que resta da bica e saio.

O Natal agora é isto: uma corrida às luzes mais fotogénicas e às árvores decoradas mais altas do planeta. E sofremos, pelos vistos, pelo menos alguns de nós, desta ansiedade natalícia: não só queremos luzes na rua como as queremos cada vez mais cedo. Precisamos também de uma selfie com o Natal na rua como prova de bem viver a quadra. E quanto MAIOR e MAIS BRILHANTE for o Natal, melhor fica na fotografia. O Natal está na rua antes mesmo de haver um pinheiro enfeitado e/ou um presépio made in China dentro de casa. O Natal está em todo o lado menos dentro das pessoas. 

No dia 1 de Dezembro, oficialmente o mês do Natal, finalmente, se não choveu, muitas  fitas vermelhas, terão sido cortadas e discursos feitos, inaugurando assim o Natal de rua em muitas localidades. Além das luzes de Natal, algum botão premido pelo edil, seu representante ou por uma criança, fez com que as tradicionais canções de Natal tenham também começado a soar nas ruas de norte a sul de Portugal: Raindrops on roses/And whiskers on kittens/Bright copper kettles/And warm woolen mittens/Brown paper packages/Tied up with strings/These are a few of my favorite things.... 

No segundo dia de Dezembro, o meu peito começou a dar sinais de que vinha aí algo. Perguntam vocês se era o espírito natalício que assim se anunciava, enchendo-me o coração de amor. Não. Nada disso. Apenas um desconforto. Mais tarde notei alguns espirros que não se deviam a pimenta, de que abuso bastante. E depois uns arrepios que corriam pelas costas e que não eram de frio porque estava uma amena temperatura: cada novo Natal que chega parece ser mais quente do que qualquer Natal que a criança que fui recorda. Constato que o Portugal dos 365 dias de sol por ano já foi uma propaganda mais enganosa. 

No dia 3, ergui-me da cama e fui aos tropeções ao WC, pálida como um anjo, o espelho até se assustou. Tomei um café quente e engoli uma torrada áspera na cozinha. A tosse parecia querer arrancar consigo folhas de azevinho do mais fundo do meu peito. Estranhei também a náusea esquisita. Concluí que estava  envirosada ou coisa assim: fruta da época.

De repente todos os afazeres podem esperar. Regresso ao quarto e deito-me. Felizmente é Domingo, penso. O tempo deixa de correr,  entrei noutra dimensão. Faço por relaxar. Às dez horas em ponto um som familiar alcança-me, sorrateiramente, vindo da rua: You better watch out. You better not cry. Better not pout. I'm telling you why. Santa Claus is coming to town...

Ah, canções de Natal! Tão fofas e calorosas como um edredão de penas! Tão doces como um chocolate Regina! Ideais para embalar uma auto-diagnosticada virose. Rejubilo com a sorte. Isto é bom, isto é bom. Aconchego-me, mas daí a pouco sou sacudida por espirros.  Limpo o nariz, atiro para o cesto o lenço de papel das preocupações. Não acerto, mas deixa lá. Depois. As canções sucedem-se, umas com décadas, outras mais modernas, familiares, previsíveis, reconfortantes: It was Christmas Eve babe/In the drunk tank/An old man said to me, won't see another one/And then he sang a song/The Rare Old Mountain Dew/I turned my face away/And dreamed about you...

A manhã é longa e lentamente um frenesim começa a tomar conta do corpo. Estico uma perna e outra, como os gatos e os cães por vezes fazem, mas isso não ajuda. Este colar de pérolas musicais natalícias dá demasiadas voltas ao meu pescoço, tantas que já quase o estrangulam com tanta alegria e séries de frenéticas campanellas. Fazem-me sentir uma reclusa na minha cama,  confinada ao meu quarto, ainda que por minha deliberação. O que fiz para merecer esta sentença? I don't want a lot for Christmas/There is just one thing I need./ I don't care about the presents underneath the Christmas tree/ I just want you for my own/More than you could ever know/Make my wish come true/All I want for Christmas is you....

O tempo não anda. O ponteiro maior roda mais lentamente que uma perna a descrever um circulo na aula de Pilates. Ao meio dia estou capaz de estrangular o Pai Natal se ele se cruzasse comigo no elevador; às 16 horas mataria o Rudolfo, sangraria o bicho, removeria a sua pele e assaria o animal com requinte, juntamente com os guizos. Por volta das 19 horas pegaria nas guirlandas de Natal e ataria o Shane Macgowan (RIP) e a Kirsty MacColl (RIP) ao tronco da árvore de Natal mais alta do mundo, com inúmeras voltas, e, não satisfeita, colocaria uma bola de Natal vermelha na boca de cada um dos artistas para que não soltassem nem mais um dó. Estou mais ansiosa que a senhora da selfie, a do café. Não preciso de Cantadril, quero é Lexotan.

Nada de novo. É bem sabido que a música tem sido usada ao longo dos tempos como tortura. Imaginem-se num quarto escuro a ouvir uma playlist de canções de Natal durante horas! Quem não confessaria ter roubado o menino Jesus da manjedoura no jardim público a troco de um minuto de silêncio! Mas quais Hells Bells dos AC/DC!  Mariah Carey e Coro de St.Amaro de Oeiras on repeat e a maioria de nós cantaria a plenos pulmões e sem desafinar todos os segredos que guarda no  umbigo ao pior torcionário.

A noite chega e com ela o silêncio que é indubitavelmente de ouro, a oitava maravilha do mundo. Dou comigo a cantar (na cabeça), Silent night, holy night não sem algum embaraço. Tento vocalizar  All is calm, all is bright, mas a voz assemelha-se à do vocalista dos Pogues, a sua aspereza poupa-me à vergonha de continuar. Puxo o edredão e adormeço na esperança de acordar recuperada da virose, resfriado ou o que for, no dia seguinte.

O dia 4 desperta maravilhosamente silencioso, mas quando me ergo da cama percebo logo que me espera mais um dia de pousio. As pernas pesadas, os famigerados arrepios, quais aranhas a subir pelas costas, a cabeça que me pesa. Prescindi da torrada. O café quente despertou-me os sentidos.  Ainda deliciada pelo silêncio, olho o relógio avaliando quanta paz me resta. Um par de horas separam-me do início do transe. O  primeiro pensamento matinal é para a impossível Mariah Carey. Se soubesse como, ah, malditos agudos, rogar-lhe-ia uma praga! O segundo para os infelizes cujas casas, escritórios, estabelecimentos ficam próximos das colunas de som por esse país fora. O programa musical de Dezembro, este o loop infernal, vai repetir-se com precisão mecânica até aos Reis. 

Às dez em ponto alguma mão do demónio ligou o singelo interruptor e o som ondula, eufórico, pelo ar: Jingle bells, jingle bells Jingle all the way/Oh, what fun it is to ride/In a one horse open sleigh... Às dez em ponto, o recomeço da tortura, hoje, ainda assim, mais suave porque há trânsito ruidoso, cargas e descargas, pessoas que se movimentam, conversam, e isso abafa o tormento musical. Ou talvez o vento tenha mudado de direção. Mas agora, espertalhona, sorrio para mim com contentamento ladino. Uns pequenos tampões amarelos fazem o truque. Com delícia sinto o material esponjoso expandir-se nos ouvidos e o volume do som exterior a diminuir lentamente. Toma lá, Mariah Carey!

Sem nada que me apetecesse fazer, nada mesmo, fiquei a imaginar soluções alternativas à tortura, ciente de que deve haver quem goste, precise, deseje ouvir 10 horas ininterruptas de canções de Natal durante um mês e uma semana. Sim, claro, há gente para tudo. Mas quem? QUEM? Talvez um intervalo de cinco minutos entre cada canção? Talvez um drone musical que percorresse as ruas? Assim, uma rua poderia respirar de alívio ao ouvir a máquina levar para longe o Frank Sinatra e outra rejubilar com a aproximação do Elvis Presley. O martírio ainda mas agora com intermitências, e mais modernaço.  E mais variedade? Que tal acabar com o monopólio de 60 anos do Coro de Santo Amaro de Oeiras? Talvez um concurso local de canções de Natal transmitido em directo? Uma etapa por semana, durante o advento? Uma final grandiosa antes da Missa do Galo?

MAIS, MAIS, MAIS. Luzes MAIS cedo, árvores MAIS altas e MAIS canções de NATAL. MAIS é tudo o que precisamos para um NATAL em grande. Mas, o que digo eu? Só posso estar doente.  A todos um bom Natal (bis)/Que seja um bom Natal/Para todos nós./No Natal pela manhã/Ouvem-se os sinos tocar/Há uma grande alegria/No ar...

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