Decoração de Natal com livros

 



Quero, em primeiro lugar, desejar-vos umas BOAS FESTAS, e, em segundo lugar, desafiar-vos a reutilizarem um livro em fim de vida na vossa decoração de Natal! Bem sei, já estamos em cima do momento. Mas tenho estado doente e nada me tem apetecido fazer.

De acordo com o tutorial era necessário um livro de capa dura e com cerca de 300 páginas. Em Novembro entrei numa loja onde, entre outras velharias, se vendem livros em segunda mão e perguntei por um livro velho daqueles que ninguém jamais comprará, daqueles que nem de borla cativarão qualquer leitor. Há livros a quem a idade conquista um lugar ao sol; outros, porém, agonizam até à morte. Ao contrário das árvores que lhes dão vida e que morrem de pé, muitos livros acabam tombados num canto, esquecidos, ou encerrados em caixotes, inertes, longe de mãos e olhares humanos, assim aguardando o fim.

A loja, qualquer loja de velharias, é uma fascinante assemblagem mais fruto do acaso do que de qualquer plano. A obra extravasou das prateleiras, tomou as paredes e pendura-se do tecto, provocando-nos alguma claustrofobia e muitas questões. O homem, solícito, desapareceu atrás da barricada de destroços de vidas passadas, um bricabraque só em parte bem arrumado. Quando voltou, estranhando a desenvoltura com que se movia naquele espaço diminuto e labiríntico, vi que erguia na mão direita três volumes, desta forma salvaguardando os frágeis objectos no percurso. Fez-me lembrar uma gravura onde o nosso ilustre Camões, soerguendo o torso, levanta os Lusíadas numa mão, lavrando as águas do mar com a outra! Só que na outra mão este homem trazia ainda outro livro: "Um euro cada um, e se levar os três ofereço o quarto." Eu só tinha pedido um livro, um só livro enjeitado. No entanto, se agora me apresentavam quatro livros náufragos como recusar-lhes um lugar ao sol na minha estante? (Nem todos, três deles apenas, pois um estaria predestinado a um futuro decorativo e natalício.) Subtraídos ao descaso e ao pó dos dias, poderiam, enfileirados e de novo verticais, cumprir o seu destino de voltarem a ser folheados e lidos, ou apenas descansarem a lombada com dignidade.

O homem providenciou um saco grátis em plástico vintage, daquele que seguramente durará até à ressurreição de Cristo, e que já não se fabrica nem usa no comércio sob pena de escândalo ambiental. Agradeci. Chegada a casa arrumei o assunto que apenas ontem, tardiamente, desarrumei. Vi, finalmente, com olhos de ver, que tinha comprado quatro livros dos anos 80 em alguma ocasião adquiridos por alguém ao Círculo de Leitores segundo um ritual meu conhecido. A revista catálogo era entregue pelo agente os livros escolhidos, um postal destacado e preenchidos os espaços minúsculos com uma Molin. Depois de recolhido em mão, passado algum tempo ele tocaria à campainha para entregar a obra pretendida.

As capas estavam sujas mas em boas condições e as páginas amarelecidas pela luz do tempo testemunhavam um passado ilegível. Encontrei pistas em dois deles: datas, nomes de pessoas e lugares, dedicatórias escritas em caligrafia cuidada na folha de guarda, "A amizade é o amor sem asas", "Quando a adversidade nos atinge, se não nos derruba, torna-nos mais fortes". Imaginei estes livros novos e cheirosos a trocarem de mãos. Terão sido talvez um presente de aniversário, ou, quem sabe, um presente de Natal, de um Natal menos feliz de alguém, que os há tantos como livros abandonados à sua sorte. Imaginei que estes livros foram sorrisos e abraços, embrulhos enlaçados de curiosidade, antes de se tornarem uma torrente de histórias a correr sob uma ponte de afectos, uma memória estimada. Os autores eram conhecidos, as sinopses instigantes. Um deles deu origem a um filme de Bernardo Bertolucci. Outro foi uma primeira obra de sucesso. Fui incapaz de eleger um deles para o sacrifício. Faltou-me a coragem para o estropiar, incapaz de transmutar a sua vocação original. Limpei-os o melhor que pude e encaminhei-os para um porto de abrigo.

Há uns meses o carteiro deixou uma publicação envolta em plástico. De capa mole, fontes de escolha e combinação duvidosas, título bombástico, tradução duvidosa, era uma obra de propaganda religiosa, com capítulos intitulados "Esperança que infunde alegria", "Luz para os nossos dias", entre outros de menor conforto. Chegou com os folhetos dos supermercados, imobiliárias e cartões de canalizadores, desentupidores e limpa-chaminés do costume. Aqui por casa há sempre uma pilha desta papelada a um canto. O autocolante Publicidade? Aqui, não, já voou há muito da caixa de correio pelo que os folhetos atraem folhetos magneticamente, semana após semana. Até parece que se reproduzem! ..

Há uma frase conhecida que é, creio, atribuída a Albert Einstein: a coincidência foi a maneira que Deus encontrou de permanecer no anonimato. Chamar Deus para o meio do lixo pode parecer desrespeitoso mas diz quem acredita que ele está em toda a parte. Ao almoço, a leitora feliz que de manhã tinha salvo o livro, ainda não tinha conseguido fazer as pazes com a "decoradora de Natal". Mas, a meio da tarde, as duas pacificaram-se ao constatar que os folhetos já ultrapassavam os limites do aceitável fruto das agressivas campanhas de vendas do Natal. E foi então que a publicação veio à tona, repescada do fundo da pilha de papel, talvez porque Deus não quisesse que a sua vida terminasse abruptamente no contentor azul.

Os livros são como as pessoas: alguns envelhecem mal, outros, ainda que imaculados de juventude, tardam a encontrar o leitor que os vai resgatar e dar sentido à sua existência. Tal como as pessoas, não faltam livros a precisar de serem salvos. Atentai, pois, nesta máxima: quem salva um livro não muda o mundo, mas muda o mundo desse livro! Decorai, decorai. A todos um bom natal e aos livros, também.

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