A pandemia tornou-nos melhores seres humanos?


Alguns meses depois de Março do ano passado, mês em que foi reconhecido estarmos perante uma pandemia, lia-se amiúde na internet que depois dela tudo seria diferente. Até parecia que vinha aí uma nova era. Finalmente as pessoas iam mudar para melhor, triunfariam enfim os valores que andam pelas ruas da amargura, as pessoas acordariam para a solidariedade, descobririam a influência benéfica de cultivar a  empatia no quotidiano.  E esta mudança teria até impacto junto dos animais, ou mesmo no que ao planeta respeita, ambos, a Natureza, iam ser doravante melhor cuidados, respeitados. Estava próxima a era em que a tão propagandeada sustentabilidade seria absoluta realidade e não apenas uma bandeira de boas intenções, a condenação do consumismo desenfreado levaria à revisão da ideia de que não precisamos acumular coisas sem fim, o que importa é termos valor, enfim, era agora que ia acontecer o céu na terra.

Comecei logo a torcer o nariz a tais visões idealistas, sendo que por essa ocasião estávamos, - e estaríamos - muitos de nós, trancados em casa. Havia vídeos filmados do ar, com drones, que eram elogiados como um hino ao idílio. Mas naqueles espaços vazios de humanos eu só via estranheza. A malha urbana sem pessoas a cirandar no espaço público lembrava-me antes um cenário de guerra em que, abrigados, todos esperam um ataque iminente.  Mais realistas eram as fotografias que mostravam os chineses isolados em casa, à janela, ou nos terraços, a fumar ou a olhar o futuro incerto. As cidades desertas pareciam-me, habitual cliente de histórias e filmes sobre futuros distópicos,  mais assustadoras que belas. As cidades fizeram-se para serem habitadas. As que estão desabitadas estão mortas, como Pompeia, que foi engolida pelas cinzas do Vesúvio, Chernobyl, vítima do nuclear, ou as cidades fantasma construídas durante a corrida ao ouro, nos Estados Unidos. Essa suspensão aparente da vida era tudo menos natural, era, sobretudo, um sintoma de que algo não estava bem.

Enquanto os reputados pensadores se esticavam em grandes tiradas de imaginação futurista, eu reduzida à minha insignificância de anónima criatura pensante, dizia para comigo que afirmar que tudo ia ficar bem era coisa prematura e ingénua. À medida que o vírus atravessava fronteiras, ali estava uma grande parte do mundo encerrado entre paredes a ver outra parte do mundo na televisão,  aquele que não podia evitar circular no espaço aberto do perigo, o que dava o corpo ao manifesto. Estes não teriam tempo para pensar aquelas coisas românticas, e aqueles não deviam ter verdadeira consciência do que era "viver" a pandemia sem ser no sofá. Achava eu que era na acção que se afinavam os tais valores e ideais, e não a distância, ou no conforto dos binges do Netflix e das entregas à porta do Uber Eats, nem a escrever manifestos virtuais de três linhas no Facebook nos intervalos, ou no jornaleco online, empurrados com café e pão quente acabado de fazer que se podia antecipar o futuro. Pelos meses seguintes estas ideias ganharam asas e a cada dia se tropeçava em mais uma reflexão, uma opinião informada de um estudioso sobre o bem bom que estava para vir, sobretudo a crença na revolução no uso da tecnologia para curar quase todos os males era insistente. Não havia nada que não se conseguisse resolver com recurso à internet, da experiência da cultura numa Live, à compra de um bife com ovo a cavalo, ou até à descoberta de um novo amor.

Para nos fazer acreditar que tudo ia ficar não apenas bem, mas bem melhor, citava-se o exemplo das guerras e das comunidades que as haviam superado, saindo delas fortalecidas, argumentos que me faziam vacilar no meu cepticismo, afinal, não tenho certezas absolutas sobre quase nada, talvez estivesse errada. De facto, eu assistia, na internet, também a uma guerra, uma guerra contra o vírus que se travava nos hospitais, em Itália, e nos laboratórios, um pouco por todo o mundo, onde os investigadores se afadigavam numa corrida contra o tempo para obter uma vacina.  Esses estavam na linha da frente do combate. Os outros, bem, uns acabavam prisioneiros do Corona e terminavam o seu ciclo de vida no planeta, sucumbindo ao poder inimigo. Alguns, muitos até, conseguiam escapar ilesos, após dores, tosses e febres ligeiras, a havia ainda os que eram resgatados ao destino trágico com a ajuda de algum mix de fármacos porque ainda não tinha chegado a sua hora. 

Uma multidão começou a tomar o pulso ao valor da liberdade de circulação e de socialização que se tinham por garantidos e que agora eram limitados. Ficar em casa compulsivamente é até uma forma de cumprir pena, mas muitos acham que a prisão domiciliária não custa nada e que não devia ser uma forma de cumprir pena. É como a febre. Ninguém pensa nela como algo muito preocupante  até que sobe e se começa a sentir arrepios. Os efeitos colaterais das medidas colocadas em prática para cercar a ameaça viral começaram a mostrar-se: o isolamento gerava angústias várias, atrapalhava relacionamentos e laços; o encerramento dos estabelecimentos colocava a sobrevivência económica dos negócios e da saúde física e mental dos indivíduos em causa. As pessoas que não estavam a morrer com a doença sentiam-se a morrer aos poucos, da sua "cura".

A vivência do espaço privado foi reinventada à força até por quem já não sabia recrear-se sozinho ou longe da diversão oferecida no espaço público: a voltinha pelas montras do shopping, a ida ao café com os amigos, ao restaurante, ao cinema ou até ao parque, as escapadinhas de fim de semana, em questão de meses transformaram-se em miragens. E até aquele tempo livre que dantes se matava a olhar para o telemóvel começou a sobrar de forma desmesurada ou a cansar. Esse descontraído e mecânico passatempo era agora insuficiente. Então inventaram-se e redescobriram-se novos hobbies: escrever, pintar, reciclar, tricotar; fez-se ginástica na sala, amassou-se o pão, experimentaram-se receitas novas, de culinária, mas também de quase tudo o que permitisse a auto-suficiência e viver melhor entre quatro paredes. O objetivo número um era não ir à rua, não contactar com o outro cara a cara a não ser que fosse impossível. 

O desejo de aprender qualquer coisa tomou conta dos sitiados e então a Internet ofereceu cursos de tudo, mas de tudo mesmo, e quem já não era estudante, dedicou-se a aprender: a cortar o cabelo em casa, a fazer uma saia, a fazer plasticina caseira para manter a criançada ocupada. O trabalho remoto foi descoberto também à força por uma multidão, para uns um desafio inultrapassável, para outros  uma forma alternativa e confortável de evitar longas deslocações, e para outros ainda uma via a considerar até para futuro pós-pandémico. E até as pequenas lojas de rua criaram um pequeno site na internet para vender e entregar mercadorias na casa dos seus clientes, velhos e novos, já para não falar dos menus virtuais criados pelos restaurantes, forçados que foram a desenvolver serviços de entrega para não deixarem de existir. É escusado dizer que além das máscaras, - que se espalharam por todo o lado como uma praga - luvas e embalagens de gel, os desperdícios produzidos pela necessidade de empacotar, embalar e expedir devem ter aumentado de forma brutal.

Em  quase todos estes processos existe um traço comum que é o corte com a convivência habitual entre as pessoas: entre familiares, entre colegas, entre patrões e empregados, entre clientes e funcionários, entre alunos e professores, entre motoristas e passageiros, etc. Aconteceu um afastamento deliberado da convivência com os outros, fosse no nosso espaço privado, fosse no público. Passámos a olhar menos os outros, a conversar menos com os outros, a tocar menos os outros. Ora, eu não sei como é que perante tal quadro de um constrangimento de relações tão abrangente possa alguém lembrar-se de saírem deste processo reforçados os valores de cooperação e empatia entre as pessoas. A intermediação tecnológica não humaniza, bem pelo contrário. O distanciamento nem sempre é vencido a 100% pela comunicação, mesmo com uso dos meios modernos de imagem e som, nem em tempos de normalidade. A nossa comunicação é muito rica. Não passa apenas pela linguagem.  

E o nosso eventual desejo de recuperar o tanto que se perdeu, as nossas boas intenções de sermos melhores, de fazer melhor, são como as resoluções de ano novo:  começaram a diluir-se a partir do momento em que regressa a rotina com as sua prementes exigências. As novas vivências empurram para o fundo da memória os piores momentos, e isso  nada mais é do que sobreviver. Perante tudo isto, e mais que me escapa, sempre achei difícil que fruto da pandemia pudesse surgir um afinamento das nossas capacidades de relacionamento, e por natural extensão, uma exaltação dos nossos melhores valores. É verdade que em algum momento teremos assistido a bonitos exemplos de cooperação e interajuda, de inspiradora empatia, de humanidade com H maiúsculo, mas terão sido episódicos,  meras reações fruto do momento de necessidade e tragédia atravessado. 

Quando um soldado é atacado, todos os do pelotão acorrem em sua defesa, atacando o inimigo. É assim que acontece na guerra. Mas os vírus não são derrubados por balas de um pelotão. Antes de haver uma vacina, a  arma inicial era apenas o isolamento, o afastamento e o distanciamento dos outros: quando o vírus atacava alguém, a ordem era, por assim dizer,  "deixar para trás", isolá-la do nosso convívio. E o vírus virou-nos até radicalmente uns contra os outros na forma de preconceito. Porque alguns chineses comem animais selvagens, todos foram responsabilizados e ostracizados. De tal forma que ainda hoje o vírus tem, para muitos, nacionalidade chinesa. Mais tarde, algumas comunidades foram confrontadas com a corrida aos bens essenciais, sem consideração que não fosse a da satisfação da necessidade individual, liderada pelo caricato exemplo das compras de rolos e rolos de papel higiénico! 

Tanto quando observei, a pandemia deixou-nos mais treinados em nos bastarmos a nós mesmos e em evitar os outros. Se alguma coisa saiu mais afinada foi o exercício da nossa individualidade. A excepção aconteceu, ao nível das tais cooperação, solidariedade e  empatia, talvez naqueles recursos que foram directamente chamados à acção: todos os que estavam na linha da frente de combate, as equipas médicas, de enfermagem e socorros, sendo também de relevar a colaboração entre investigadores que estudavam o vírus e que criaram logo formas de fazer confluir a informação e de a partilharem  entre si.

E para quê estar agora a pensar todas estas coisas? Nos últimos dias assisti a várias cenas em locais públicos,  que me conduziram a esta reflexão entre um clique e outro. Uma, numa clínica, onde uma senhora que repetiu, por várias vezes, ao guichet, ter tido de deixar a criança, filho ou filha, pequena, com os vizinhos, para estar ali a reclamar, perdeu mais de hora e meia numa reclamação sem sentido. Aos berros, sem qualquer educação, chamou incompetente a toda a gente que ali trabalhava, desde as funcionárias às médicas, pediu o livro de reclamações e ainda chamou a polícia. Quando, depois da consulta, deixei a clínica, ela estava ainda no exterior, a conversar fora de si com os agentes da autoridade. A criança, claro, continuava em casa dos vizinhos, à espera. Não vou detalhar o motivo da reclamação, mas asseguro que não havia razão nem para ela perder tempo, nem para fazer os outros perder tempo. Depois, daí a uns vinte minutos, nos CTT, mais uma situação sem justificação, em que uma outra senhora se travou de razões com o funcionário no guichet, apenas porque ele a tinha chamado e não podia fazer o que ela queria, seria uma tarefa a ser realizada pelo funcionário do guichet ao lado dele, assim que acabasse de atender a pessoa que naquele momento ali estava. Mais uma vez, aos berros, porque todos nós ali presentes precisávamos de ficar a saber do grande erro cometido pelo homem e do grave dano sofrido pela mulher, assim ficando punido um e ressarcida a outra, em estridentes decibéis públicos. O funcionário repetiu três vezes a explicação antes da senhora "desmobilizar" e aguardar.

Estava a observar  esta demonstração da nossa melhorada humanidade quase pós-pandemia quando reparei num homem jovem com o cordão da sapatilha desapertada. Já ia a dar um passo para o avisar, quando parei. E se ele me dizia, aos berros, para  me meter na minha vida? E se armava um pé de vento, enxovalhando-me ali por coisa nenhuma? Parei. E então lembrei-me de espreitar a outra sapatilha. Estava igualmente desapertada. Mas quem é que usa as duas sapatilhas sem apertar os cordões, arriscando uma queda?  Considerei ficar quietinha e caladinha, bem resguardada pela minha máscara. 

Não sei se vocês saíram desta experiência da pandemia melhores do que eram, se alinham nessas ideias de renovação do ser humano através do sofrimento colectivo que a pandemia trouxe. Pessoalmente não vejo grandes melhorias nem em mim, nem nos outros.  Não sei se todas as provações e privações terão servido para mais do que isso, para experimentarmos que somos frágeis e vulneráveis, e que não controlamos o nosso destino. Se tornaram alguém mais tolerante ou mais compreensivo, talvez o efeito já esteja a passar e rapidamente. O isolamento e o sofrimento, as perdas que todos, de alguma forma, maior ou menor,  experimentamos, terão tido um impacto, isso é certo. Sem dúvida que foram um teste às nossas capacidades, aos nossos valores e sentimentos. Evidenciaram coisas positivas mas também as nossas fraquezas, as nossas ambiguidades. E devem talvez ter contribuído para tornar piores os que já eram medíocres. Para nos melhorar enquanto indivíduos, não creio, e para melhorar a sociedade, isso é o que ainda está para se ver. Uma ideia revolucionária teria sido juntar à prometida imunidade da vacina um acelerador de humanidade. Mas estou em crer que a grande maioria dos seres humaninhos haveria de enjeitar a oferta por se considerarem naturalmente bons. 


Comentários

Clara Fernandes disse…
Soberbo e realista, objetivo mas subjetivo na análise humorada fundada em argumentos difíceis de rebater.
Em conversa com um profissional de saúde, também abordei este tema da melhoria das relações interpessoais.Na opinião dele, a pandemia alterara o estado mental para pior: agitação, intolerância, urgência na satisfação dos pedidos e das necessidades, nervos à flor da pele...
Se a pandemia me mudou? Na mobilidade apenas: sedentarismo apresenta fatura elevada.No resto,tudo igual à exceção de sentir que o confinamento surge como desculpa e justificação para tudo desde dores nos joelhos a falta de estudo e de educação...