Televisão: Years and Years, de Russell T. Davies



(Contém spoilers)

Não sou grande seguidora de séries, prefiro o cinema, mas este ano vi algumas temporadas, e, já em jeito de balanço, coisa tradicional que chega com Dezembro, ao olhar retrospectivamente, pensei em dedicar algumas linhas a Years and years, vista no passado Verão, pois tem uma proposta relativamente simples mas original. A acção tem início no ano de 2019 e avança até 2034, ou seja não vamos além de um futuro próximo. Este curto hiato pode não parecer muito atraente aos entusiastas de ficção científica, poderá crer-se que esta exígua janela para o futuro não deixará vislumbrar grande coisa mas é o bastante para equacionar mudanças e observar impactos significativos. Exactamente  porque não há muito investimento em apostas mirabolantes o futuro parece assustadoramente provável. Em alguns anos apenas, o mundo deixa de ser um lugar estranho para se transformar num lugar tóxico. O futuro próximo tem Donald Trump reeleito como Presidente dos EUA, a ascensão da China, que constrói uma ilha artificial onde instala uma base militar, as mortes de Merkle e da Rainha Isabel II, a Irlanda do Norte em pegas com a Grã-Bretanha, tem Israel e Palestina ainda de costas voltadas, uma invasão da Ucrânia pelas forças militares russas provocando uma vaga de refugiados. Tem uma empresária que aparece na TV britânica, uma mulher populista, daquelas que dizem o que todos pensam mas não são capazes de dizer, sem soluções mas com muita bazófia, que vai vencer as eleições e tornar-se primeira-ministra do Reino Unido.

Muito do que se prospectiva em Years and years já é real actualidade, ou quase, vivida, usada, sentida e pensada por nós, hoje. O que a série faz é esticar o presente, os seus usos, sentimentos e conjecturas até uns anos adiante seguindo a trajectória da britânica e diversa família Lyons na era pós-Brexit, ampliando-o um pouco, explorando evidências, consequências, possibilidades e absurdos. São quatro irmãos, dois homens e duas mulheres, e restantes familiares em registo de luta com o futuro. O futuro, caso não andem distraídos, chega em porções de 24 horas, diariamente. Amanhã já é futuro. É fácil não dar pela sua chegada. Mas um dia o futuro explode-nos em cima. Quando eu era criança o futuro não era o dia seguinte, era aquele que via na TV quando assistia ao Espaço 1999.  Hoje, quando penso no futuro, imagino sempre cenários pessimistas e alguns deles já estão aqui e não longe: eles são o dia de amanhã. Muitos crescem e continuam a pensar que o futuro é lá longe. A série pede que prestemos atenção. Já hoje.
Years and years segue a via do pessimismo - embora seja percorrida por algum humor desconcertante - e apenas no último episódio falha este tom de desespero e medo: agarra-se à esperança e, incrivelmente, é quando nos enfastia. Porquê? Porque já não conseguimos acreditar que há salvação: não é possível, não sabendo o que sabemos e tendo assistido ao que assistimos. Pois se já hoje somos bombardeados com inquietude em tom crescente! Quem nunca sonhou evadir-se para uma ilha perdida, um local ermo e desconectado onde seja possível deixar as angústias para trás. O medo é um sentimento corrente, mais pelo que pressentimos do que pelo que sabemos: tal como se diz na série, o telejornal ou o feed de notícias da net, que há muitos anos era inócuo, é hoje uma fonte de desconforto. Tememos por nós, pelos que nos são queridos, por gente até do outro lado do mundo, assim tornado pequeno. Hoje queremos acreditar e não sabemos em quê porque a informação, a que é tão fácil aceder e que nos rodeia, nunca foi tão pouco fiável e manipulada. E se nos maravilhamos com a tecnologia e nela vemos espelhada a evolução, quantas vezes não nos surpreendemos por assistir à contestação e até ao combate do conhecimento e da ciência por parte das pessoas mais insuspeitas? Não nos dizem os memes que vivemos o tempo dos telemóveis espertos e das pessoas estúpidas? Rimos disso, fazemos tshirts estampadas com a frase, mas não fazíamos melhor se chorássemos?
Observamos como a teia familiar dos Lyons, quatro irmãos e uma matriarca, é testada pelas contrariedades que vão sobrevir e que tanto podem ter origem nacional como internacional: já como hoje também sucede, os quatro estão todos ligados,  mesmo quando estão separados. Em casa existe um assistente pessoal, o Signor, uma espécie de Alexa, favorecendo a intercomunicação.  Observa-se ainda como a globalização não é só uma palavra redonda. Uma grave crise financeira despoletada pelo colapso de uma empresa de investimentos americana cria o pânico em Londres com a falência dos bancos. O irmão mais velho dos Lyons, bancário, perde um milhão de libras e a casa em Londres, onde o imobiliário se tornara especulativo, em consequência dela. Ele e a esposa, uma mulher negra, com porte e estilo, regressam, com as duas filhas, sem opção de vida, a casa da matriarca, em Manchester: a mãe é a herdeira da consciência de um passado melhor e as suas celebrações familiares anuais ao ar livre, gelado, rituais simbólicos sobre a resiliência dos laços familiares. 
O mundo é pequeno, viaja-se facilmente e pode-se estar, como sucede com a irmã Lyon mais velha, uma activista, onde explode o míssil que os EUA lançaram para destruir uma base militar chinesa que o país, potência mundial em ascensão, instalou numa ilha flutuante e que mudou as vidas de muitos, no mundo inteiro. O outro irmão, um funcionário gay, casado, trabalhava no realojamento de refugiados e é aí que conhece um encantador ucraniano prestes a ser deportado. Divorcia-se e o romance acontece. Mas acaba por morrer quando a lancha onde ambos seguiam naufraga a 8km da costa de Inglaterra depois de um resgate de terras espanholas mal sucedido e uma negociação com oportunistas na costa francesa. O mundo é, assim, um lugar  pequeno, em mais que um sentido. Quando o seu corpo jaz na praia, a culpa por isso não é, como o irmão mais velho, revoltado, sempre clamará, de Vickor Goraya: é ainda do preconceito que obrigou o ucraniano a fugir do país natal onde os próprios pais o tinham denunciado. A irmã mais nova, deficiente motora, tem dois filhos de homens diferentes, e o segundo, um chinês, regressou à China, para cuidar da mãe. É despedida quando a superiora da cantina escolar lhe comunica que vão adoptar refeições semi-prontas produzidas a partir de bactérias, solução preferida a comida tradicional. Empreendedora, irá mais tarde confrontar-se com o recolher obrigatório imposto, o isolamento e policiamento da cidade por áreas, impeditivo de expandir o seu negócio ambulante, e fazer a diferença.
Years and years é empolgante de ver mas a velocidade a que o tempo corre prejudica-a. A sucessão de marcos temporais (aniversários, passagens de ano) repete-se, assim como os omnipresentes telejornais. É muito material, muito assunto, para tão pouco tempo. A sensação com que nos deixa é semelhante à de ver vídeos de retrospectiva de eventos em final de ano. Por isso também me lembrei dela hoje! Além da guerra nuclear citada, vemos imagens de países em turbulência, social e económica, invasões que há muito se desenhavam e que acontecem, governos em convulsão e mudanças legislativas que impactam as vidas de muitos, grandes vagas de refugiados e  medidas de excepção para lidar com isso, algumas com semelhanças a campos de detenção do passado. E ainda alterações climáticas, espécies, borboletas e aves, em desaparecimento e um cheirinho dos avanços tecnológicos: há sexo com robôs, máscaras de hologramas e óculos de realidade virtual que são usados pelos mais jovens, o "transhumanismo" é a nova loucura - no limite, os jovens querem descartar os corpos e fazer o upload da consciência para a cloud, terem mera existência digital, instalam chips sob a pele e dispensam dispositivos electrónicos - o sinal da internet dispensa suportes. Pondera-se, todavia, o retorno do papel porque a rede de electricidade - que encareceu - se tornou alvo dos ataques terroristas e as constantes perdas de informação forçaram o regresso do uso de papel mais fiável e acessível.  Preocupações ecológicas terão determinado a vida da dissolução dos corpos daqueles que deixam este mundo!O gelo nos pólos tornou-se história, mas ninguém se preocupa muito com isso, a não ser os loucos dos activistas.

Bem sabemos, também, que a vertigem da vida moderna é um traço característico do nosso tempo, da nossa moderna idade,  da globalização. O turbilhão de informação em que somos envolvidos diariamente é uma evidência. Em virtude de tudo isso que experimentamos, até nos podíamos sentir sintonizados com todo este fast-forward. Mas são 15 anos em 6 capítulos de 50 minutos que podiam ter à vontade sido explorados com mais profundidade em duas temporadas. Ficamos sem fôlego visual para tanto, forçados a digerir tudo como quem engole comida sem mastigar fruto da pressa: sem conseguir saborear completamente. Em vez de sorver a série somos sorvidos por ela.

Comentários

Valerie-Jael disse…
This sounds interesting but rather scary. What will the future be like? Thanks for sharing, hugs, Valerie