A história do guarda-rios e do comboio bala, ou Shinkansen


👀Vídeo   - How a kingfisher helped reshape Japan's bullet train - BBC News

Ontem publiquei aqui sobre um livro com ilustrações de aves elaborado por um japonês. Numa das folhas lá estava um guarda-rios ou "kingfisher", o rei pescador, como lhe chamam os ingleses. Por coincidência, de manhã, enviaram-me um vídeo muito curioso. Trata de biomimética, isto é, a área de estudo dos princípios criativos, e estratégias da natureza, que tem por objectivo a criação de soluções para os problemas dos seres humanos, conjugando funcionalidade, estética e sustentabilidade. A natureza é aqui tida como um exemplo e fonte de inspiração. A biomimética é utilizada com êxito em usada em diversos ramos: química, biologia, medicina, arquitectura, agricultura e no ramo de transportes.

O exemplo de biomimética mais conhecido e citado é o do velcro que foi inventado depois de George de Mestral observar ao microscópio que as sementes de bardana que se prendiam na sua roupa e pelo do seu cão durante os passeios possuíam minúsculos ganchos. Foi assim que ele imaginou um produto a meio caminho entre os botões e os fechos de correr, uma parte ganchos inspirados nas sementes, outra, um tecido de argolas de fio: o velcro. Em 1955 ele registou a patente. A sua empresa, criada para desenvolver o produto,  chamou-se Velcro, uma palavra composta de duas: "velvet" (veludo) e "crochet" (gancho, em francês). Passariam 20 anos antes do engenheiro suíço conseguir construir um tear que produzisse o material em larga escala. Após tanto esforço, e por incrível que hoje nos possa parecer, o velcro não foi bem recebido pelas pessoas que não viam nele grande utilidade. Com a sua descoberta pelos engenheiros da aventura espacial ele provou então o seu valor: impedia os objectos de flutuarem dentro dos foguetões, entre outras aplicações. Depois a moda reparou nele; Pierre Cardin foi um dos que passou a utilizá-lo na confecção. Hoje não passamos sem ele, o velcro, um produto sintético inspirado pelas sementes de bardana!


O vídeo da BBC explica como o guarda-rios (Alcedo atthis) inspirou uma solução para minorar o ruído provocado pelo comboio Shinkansen à saída de túneis devido ao aumento da pressão dentro do túnel. Em virtude do seu design, o ar acumulava-se à frente do comboio. A pressão, acumulada em ondas, quando libertada originava um enorme boom!

Existem mais de duas dezenas de nomes para o guarda-rios: chasco-de-rego, espreita-marés, freirinha, juiz-do-rio, martinho-pescador, ou martim-pescador, passa-rios, pica-peixe, piçorelho, pisco-ribeiro...! Muitos fotógrafos cujas páginas de fotografia visito chamam-lhe "raio azul", em virtude da sua velocidade e cor. As asas são azul esverdeadas, dorso e cauda apresentam um azul mais intenso, a face e partes inferiores são de cor laranja acastanhada e a garganta e a mancha do pescoço são brancas.  É uma ave muito bonita. Esqueci-me de referir as patas curtas e avermelhadas e longo bico negro, (nos machos, as fêmeas tem a parte inferior alaranjada) que serviu de estudo para a solução dos comboios rápidos japoneses.

Um aparte poético. Também a Miguel Torga não escapou a beleza desta ave que escreveu ter o céu nas asas: 

Saudação

Não sei se comes peixes, ou não comes,
Irmão poeta Guarda-Rios:
Sei que tens o céu nas asas e consomes
A força delas a guardar rios.

É que os rios são água em mocidade
Que quer correr o mundo e conhecer;
E é preciso guardar-lhe a tenra idade,
Que a não venham beber ...

Ave com penas de quem guarda um sonho
Líquido, fresco, doce:
No meu livro te ponho,
E eu no teu rio fosse ...

(Miguel Torga, in Diário II, Barril de Alva, 28 de Setembro de 1942)

O guarda-rios voa a grande velocidade e a baixa altitude, fascinando com as suas cores vivas sobre as águas. Em zonas com grande abundância de água doce, salobra ou até salgada, como rios, lagos, albufeiras, charcos e estuários, é possível avistá-lo facilmente em ramos secos ou outros suportes à espera do momento ideal para caçar. Executa mergulhos até 20 cm de profundidade, precisos, e com o seu bico apanha as presas que depois leva para  margem, onde bate com elas em pedras ou ramos antes de a ingerir. Foi a sua forma de mergulhar que despertou a atenção de Eiji Nakatsu, que, em minha opinião, devia ter sido mencionado no vídeo da BBC. O bico do guarda-rios, ao contrário da extremidade arredondada do comboio, era em forma de losango abaulado, permitido a sua entrada na água quase sem atrito. Ela flui ao longo do bico quando a ave mergulha em vez de fazer barreira. A transição entre o ar e a água acontecem com suavidade. Os engenheiros, baseando-se neste formato, corrigiram o design do comboio rápido. Além do guarda-rios, também o mocho e o pinguim permitiram aperfeiçoar componentes do comboio que produziam imenso ruído. 

O comboio Shinkansen faz parte de um sistema ferroviário japonês de alta velocidade que transporta 40% de todos os passageiros ferroviários do mundo - cerca de 64 milhões de pessoas todos os dias. (Estes dados podem estar desactualizados, já que se referem a 2012.) Os desafios desse requisito de alta velocidade incluíam ruídos, - o que levou à implementação de barreiras sonoras, por exemplo,  - vibrações e ondas de pressão que aconteciam quando o comboio passava por um túnel.



O comboio Shinkansen ficou conhecido como "bullet train" em virtude da sua rapidez e design da sua cabeça, vanguardista e inspirada na dos foguetões, mas que também fazia lembrar uma bala. Mas, se quando surgiu foi aclamado, o ruído que fazia à saída dos túneis tornou-o muito impopular. Era um verdadeiro estampido similar ao dos aviões que passam a barreira do som, que incomodava não apenas os humanos como a vida selvagem. Eiji Nakatsu, que tinha como hobby a observação de aves, apresentou então a hipótese de solução, que já descrevi, e que é explicada no vídeo da BBC. O comboio ganhou um nariz pontiagudo e com reentrâncias laterais. Isto não apenas resolveu a poluição sonora como tornou o comboio mais eficiente. Hoje roda a 320km por hora.

Se tiverem curiosidade vejam este vídeo Japanology Plus, de Peter Barakan, que mostra como o comboio Shinkansen começou o seu percurso, em 1964,  - na  Tōkaidō Shinkansen, a primeira linha -  a tempo das Olimpíadas. Era então  anunciado como o serviço de comboios mais rápido do mundo, ele circulava à velocidade máxima de 200km por hora. Hoje é um grande sucesso, mundialmente conhecido pela sua velocidade, segurança - nunca ninguém a bordo sofreu um acidente, e já passaram mais de 50 anos - e cumprimento escrupuloso de horários. Nem tufões nem tremores de terra, frequentes no Japão, parecem ter afectar a prestação do serviço. Um ponto fulcral no processo é o factor humano já que apesar de todo o software e computorização envolvidos, o controlo feito pelas pessoas é considerado essencial. Outro aspecto fascinante é que o comboio atravessa áreas de grande densidade populacional, facto que teria feito qualquer um  abandonar a execução do projecto. Mas a superação de obstáculos fazia parte da motivação dos envolvidos no projecto e a rede de alta velocidade expandiu-se de acordo com a calendarização prevista em plano. Para o final, a equipa de limpeza, mostra como, em 7 minutos, entre a saída e entrada dos passageiros, se processa toda a limpeza das carruagens. A operação de limpeza começa com uma saudação de cabeça, uma vénia, não apenas para o condutor saber que o empregado viu o comboio chegar, um quesito de segurança, portanto, mas também para agradecer aos passageiros, o facto de terem escolhido aquele transporte. À saída do comboio está alguém com uma saca para recolher lixo que os passageiros queiram deixar. Depois recolhem o lixo deixado no interior. Cada empregado limpa, de seguida, 100 lugares, e um outro fica encarregue do chão. A rapidez é fundamental pois a pontualidade é essencial para garantir o trânsito intenso de comboios: naquela estação são controlados 400 comboios bala.

Se pensam que isto é o futuro, não, não é. O futuro são os Maglev, comboios de levitação magnética, que em teoria poderão atingir velocidades acima dos 3000 km/hora. Actualmente a pequena linha de Shanghai é o serviço regular mais rápido do mundo. O comboio alcança uma velocidade máxima de 430 quilómetros por hora. O Maglev faz em pouco mais de 7 minutos um trajecto de 30 quilómetros!  O projecto tem sido criticado por não ser amplamente justificado. O número de viajantes que o utilizam é reduzido devido à localização e preço dos bilhetes. É considerado uma extravagância e uma atracção turística já que muitas pessoas fazem viagens de ida e volta ao aeroporto pela mera possibilidade da experiência de alta velocidade. Neste vídeo de Luke Starkenburg podem ver o Maglev na sua super rápida viagem entre o Aeroporto Internacional de Pudong e a Estação Longyang Road, em Pudong.

(E se pensam que isto é o passado, não, não é. É ainda o presente, em Portugal. E já se passaram 10 anos.)

Comentários

Valerie-Jael disse…
Many modern discoveries seem to be inspired by nature. I love watching the kingfishers on the stream by our house, but I don't think I would like to travel in such a fast train! Have a great weekend, hugs from cool and wet Germany, Valerie