Cinema: o sonho americano de Lucy

Há uns anos o filme Pearl Harbour fez um enorme sucesso junto do público. Eu não vi o filme. Entravam o Ben Affleck, por quem nunca morri de amores, e Josh Hartnett, até aí um jovem desconhecido, a partir daí, uma promessa, mas que, entretanto, desapareceu do firmamento de estrelas de Hollwood sem nunca ter chegado a brilhar intensamente. Este fim de semana fui encontrá-lo no filme Oh Lucy!, de 2017,  onde desempenha, e muito bem, o papel de um professor manhoso que ensina inglês americano a japoneses numa escola de línguas que mais parece uma casa de massagens explorada por algum mafioso da Yakusa!

Lucy, nome do filme - que devia antes intitular-se Hi Lucy!, se tiverem visto a fita talvez também concordem comigo - e nome americano que a japonesa  Setsuko recebe quando ingressa numa aula de inglês, é a personagem interpretada por Shinobu Terajima, uma excelente actriz que recordo ter visto no singular  O bom soldado,  um filme com uma forte mensagem anti-bélica, onde ela é a mulher de um soldado que regressa a casa sem braços nem pernas, e que, para se sentir vivo, reclama por sexo a toda a hora. Em Oh Lucy! Terajima é uma mulher de meia idade, de cabelo permanentado, feitio resignado e algo desdenhoso. Vive em Tóquio e apanha o comboio todos os dias para ir trabalhar num escritório cheio de colegas dissimulados e pouco camaradas. Na despedida de uma colega ela vê o seu futuro: sem trabalho, o mundo desaparece pois ele é o que ainda preenche a sua vida. Esta figura apagada, que não se destaca da pequena multidão que, na gare, aguarda ordeiramente a chegada do transporte, veste sem gosto, em tons pardos, e até quase desaparece a cada vez que entra no seu apartamento minúsculo atafulhado de coisas até ao tecto. Tornar-se-á evidente para nós que a sua falta de emoção ao ver um suicídio a desenrolar-se à sua frente enquanto passa o comboio rápido é mais do que habituação a um tal fenómeno ou mesmo contenção "à japonesa". Sem dúvida que a consideração de idêntica saída já lhe teria passado pela cabeça. De facto, a sua existência é apenas triste e vã, uma sucessão de rotinas entre a casa e o trabalho, que não lhe agradam mas com que se conformou. Nunca terá tirado férias mesmo se no local onde trabalha ninguém gosta dela. Com um feito difícil, sem amigos, sem companheiro, acusa a irmã, com quem tem um relacionamento péssimo, de ter roubado o seu namorado e casado com ele. Quando Lucy aceita fazer uma aula de teste naquela escola manhosa fica de imediato fascinada com John, o jovem professor americano que usa abraços, "hi-fives", nomes em cartões, bolas de plástico  e cabeleiras postiças como método de imersão na cultura e língua norte-americanas: finalmente o destino colocara no seu caminho uma oportunidade de mudança a que se agarra como se dali dependesse a sua salvação. O que ela desconhece é que, quando a sobrinha Miko lhe oferece a possibilidade de fazer as aulas que restam do seu curso de inglês, já que a escola não a reembolsa e ela espera que a tia o faça, este dinheiro se destinará a financiar a sua viagem para os EUA com John. Lucy receberá depois um postal com a imagem de um motel dos EUA com breves explicações da sobrinha e um convite para aparecer na "ensolarada Califórnia".  A japonesa decide então tirar férias e ir atrás do seu sonho, só por acaso, americano.


Não vou desvendar o resto desta história da viagem de Lucy aos EUA. É uma viagem de fuga para longe de si mesma mais do que pelo território estrangeiro. A nova identidade, um nome, uma peruca, um batom colorido, foram o combustível necessário para buscar uma vida nova,  soltar-se da insatisfação que a consumia. Age por impulso e ao sabor do momento e sofre as consequências. É uma figura trágica, uma mulher em crise, que não suscita simpatia, mas pela qual também é fácil sentir compaixão. A crise da meia idade costuma ser mais identificada como uma coisa masculina. É aquela fase em que se acorda insatisfeito com o que se fez e alcançou, seja pouco ou muito, se quer fazer tudo o que ainda não se alcançou, mas se pensa que jamais será possível, se quer começar de novo, de preferência ser novo outra vez, conquistar tudo e todos. É-se de novo adolescente a questionar o sentido da vida. Soçobra-se em angústias mil, a vulnerabilidade de novo à flor da pele. Arriscam-se figuras ridículas e o julgamento de amigos e estranhos a cada nova válvula de escape pensada para sair da rotina: ter experiência e estar bem instalado na vida são agora encaradas como pesos inelutáveis ao invés de metas ou desejos por que lutar. Por exemplo, no filme  Beleza Americana, Lester Burnham é um homem de meia idade que odeia o seu trabalho, que vive um casamento sem chama e que também está preso num ciclo de vazio e monotonia como Lucy está. Lester encontrou na jovem Angela, uma adolescente amiga da sua filha, um estímulo para despertar para a vida do longo como em que se encontrava: fica deslumbrado com a sua beleza, tanto como Lucy com a sua própria imagem, de cabeleira loura, no espelho. Há muitos filmes sobre este estado de espírito mas os protagonistas são sempre homens. Lucy contraria essa regra e mostra que a insatisfação tardia com a vida pode não ser uma comédia assim tão divertida como nos fazem querer abundantes piadas e histórias sobre homens barrigudos que têm affairs com jovens de quem podiam ser pais, ou se passeiam em bombas desportivas ou correm a maratona.

Este filme de Atsuko Hirayanagi, é uma primeira obra,  oscila entre a comédia e o drama, o banal e o absurdo. Ao longo da viagem de Lucy somos brindados com quadros que derivam do choque de culturas, alguns estereótipos, também não faltam revelações amargas e desencantadas como que a provar que as mais das vezes a aparência é uma e a realidade outra. De certa forma a amarga Lucy era mais genuina que todo o mundo ao seu redor. O final musculado desta viagem sacode em definitivo a experiência de vida da personagem e dá-nos liberdade para imaginar o seu futuro. A realização e as interpretações são boas mas à excepção de Lucy todas as personagens  acessórias beneficiariam de um maior desenvolvimento. Ver Oh Lucy!, apesar disso,  não foi tempo perdido. Além do mais, até me permitiu reencontrar uma memória perdida. É que enquanto assistia à aula de inglês do professor John, uma sequência realmente engraçada, recordei-me das minhas primeiras aulas de inglês no Ciclo Preparatório André Soares. A língua inglesa não era de todo estranha para mim. Já via filmes americanos e desenhos animados na TV,  e havia em casa uma caixa com um curso de inglês por correspondência, manuais ilustrados, cadernos de exercícios, cassettes, que os meus pais tinham utilizado. É claro que eu já tinha andado a a debulhar tudo aquilo com interesse. Lembro-me de colocar a cassete no leitor de cassetes de teclas brancas e uma vermelha. Ouvia com atenção o som roufenho e repetia o que diziam as vozes masculina e feminina. Já esqueci o nome da feminina, mas o nome do homem era um previsível "Mr. Smith". A cassete número 1 começava, claro, pelo capítulo das apresentações e ainda hoje o consigo ouvir dizer: "Hi! My name is Mr. Smith. What's your name?" Ao contrário do professor John que ensinava um relaxado inglês americano, o Mr. Smith era britânico e até os manuais bem grossos e pesados  traziam o Big Ben estampado na capa colorida.

A minha memória perdida diz respeito às aulas de inglês no Ciclo Preparatório: cada aluno tinha um nome em inglês. Creio que hoje é uma pedagogia ultrapassada nas salas de aula. Muitas folhas se estragaram a escrever o nome a esferográfica e depois a colorir com marcador e a dobrar. O início da aula era muitas vezes perturbado por esse ritual. Eu era a Jane e a minha colega do lado, a Cristina Mesquita, era a Mary. No início de cada aula e ao longo de todo o ano, sempre havia um aluno a vincar apressasamente a folha de papel com a unha para construir o suporte de papel! Devíamos guardar as folhas de umas aulas para as outras mas de vez em quando lá se perdia o papel e de novo se voltava a dobrar e a escrever o nome. Quando o professor John estendeu uma caixa cheia de nomes à Setsuko para que ela retirasse um nome que depois afixou na lapela, esta memória esquecida emergiu: "Hi! My name is Jane. What's your name?"

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