O ABC do LGBTI não tem lugar na escola?


Ontem pediram-me para explicar o que é a "ideologia de género" a propósito da polémica da ida da Ex-Aequo, uma associação LGBTI, a uma escola do Barreiro para fazer uma palestra no âmbito da disciplina de Educação para a cidadania. Desconhecia que esta disciplina ainda existisse. Adianto que não sou lésbica nem militante do Bloco de Esquerda, também não sou religiosa,  e que o meu interesse por estas temáticas, e, já agora, algum conhecimento, se prende com o facto de ter dado formação no âmbito da Igualdade de Oportunidades para Homens e Mulheres nos anos 90 e ter trabalhado em projectos internacionais. Lá fui ler as notícias para perceber o que se tinha passado.

Um deputado   não se inibe de usar os adjectivos "porcaria", "vergonha", "perversão"  para qualificar a ida da Associação Ex Aequo à escola, no seu entender uma "associação duvidosa", somando a isto publicação de um cartaz provocatório para reforçar que "tinha sentido na pele" a perseguição e a ameaça dos LGBTI no Facebook. Não acredito que seja com tiradas histriónicas como a do deputado, ao ir para o Facebook escrever em maiúsculas, ou com comentários sarcásticos e desinformados nas caixas de comentários, em apoio ou em desaprovação à sua reacção, que se obterá o que quer que desejem, uns ou outros, que as mulheres fiquem caladas e voltem para o colo dos maridos, fraldas, tachos, e esfregonas a tempo inteiro, ou que façam o que melhor lhes convier, que os LGBTI voltem para o armário de onde nunca deviam ter saído e por aí fora, ou que continuem a mostrar que existem. Seria mais desejável que todos, e especialmente pessoas com responsabilidades políticas, se informassem  antes de ir criar alarmismo social para as redes, pois que, na escola do Barreiro, segundo foi depois divulgado, nenhum educador se queixou, nada foi imposto unilateralmente.

É minha opinião, discordem se quiserem, que se a escola passou uma ficha aos encarregados de educação para eles autorizarem ou não a ida dos seus filhos/alunos à palestra, a situação ficou acautelada. O Barreiro está entre os concelhos com mais registos de casamentos gay desde 2010. "Diferentes orientações sexuais" não é algo que não exista no Barreiro e a que a comunidade seja estranha. A escola é de todos, paga por todos os contribuintes, e para todos, muito facilmente poderão ali haver alunos oriundos de famílias de vária orientação sexual. Além disso, num tempo que que tantas idades - possivelmente dos 11 aos 17 anos - convivem no mesmo espaço escolar, é apenas útil que se informe e aborde a questão LGBTI para que a diferença existente seja compreendida e, se não aceite, pelo menos tolerada sem agressões verbais, físicas ou psicológicas. Penso que tal uma abordagem apenas poderá concorrer para a melhor convivência de todos os estudantes nesse espaço. 
Também me custa a crer, como sugeriu o deputado,  que a Rede Ex-Aequo  tenha ido à escola "doutrinar" miúdos  6.º e do 8.º anos  no âmbito da disciplina de Educação para a Cidadania, ou seja, para disseminar os postulados da "ideologia de género" junto de potenciais simpatizantes. O seu projecto educativo está explicado no site. A palestra com o objectivo de "promover a igualdade de géneros" e "sensibilizar os alunos para as diferentes orientações sexuais", como se lia na ficha entregue aos encarregados de educação, tinha  "o objectivo de educar contra a discriminação a pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans ou intersexo (LGBTI)."Mais: " Procura-se, através destas estratégias, promover uma educação para a cidadania e para os direitos humanos, em específico na área da orientação sexual e da identidade do género. Este projecto está a ser desenvolvido para fazer frente à desinformação e discriminação ainda vigente no campo da Educação em Portugal em relação a este tema, que resultam na transmissão de informação incorreta, preconceituosa e estereotipada, assim como num ambiente negativo para o dia a dia dos jovens LGBTI ou com dúvidas, quer em casa ou na rua, mas especialmente no espaço escolar. O impacto deste tipo de contexto é, em muitos destes jovens, a depressão ou a ideação e tentativa de suicídio, entre outras situações negativas tais como agressões verbais ou até mesmo físicas e perseguições da parte de elementos da comunidade educativa. Estas situações só podem ser contrariadas através da criação de ambientes positivos, abertos e tolerantes em relação às pessoas LGBTI e de uma educação para a cidadania e os direitos humanos no campo da orientação sexual e identidade e expressão de género." Imagino que a escola do Barreiro terá sido contactada pela Rede e considerou pertinente uma palestra para ajudar a combater  " bullying homofóbico e transfóbico" de que até talvez tenha casos sinalizados. Parece-me irrazoável pensar que a Rede EsAequo, experiente neste tipo de sessões, fosse  abordar matérias que miúdos de 11 anos não iriam compreender ou que não lhes fossem tornadas acessíveis no âmbito da temática, tal como acontece nas sessões sobre Educação Sexual que, aliás,  também são contestadas por uma minoria educadores desde o seu aparecimento.

Recordo a esse respeito uma notícia do Público, de 2009, sobre uma plataforma de acção  formada por "pais conscientes do perigo em que uma lei totalmente irresponsável coloca os seus filhos e de outros cidadãos que os apoiam".Teriam ficado " em alerta vermelho com a recente aprovação do projecto-lei 660/X que impõe a inclusão obrigatória da educação sexual nas escolas". . . Entendiam que os filhos estavam a ser cobaias de experiências demenciais. O "nacional-sexualismo" seria uma doutrina que o Estado estava a impor às crianças e os deputados estariam a arvorarem-se em doutrinadores-educadores das crianças alheias. Fernanda Neves Mendes, uma das inscritas na plataforma, diz que a educação sexual na escola só vai incentivar a gravidez adolescente e as doenças sexualmente transmissíveis. "A educação sexual, tal como está pensada, defende um modelo que aposta na incitação à vida sexual desde uma idade em que as crianças ainda não têm maturidade para compreender", diz Fernanda Neves Mendes. "Por que é que se fala de métodos contraceptivos cada vez mais cedo?"

Para este ano lectivo a mesma Plataforma incluiu um modelo de carta contra a participação dos alunos em aulas de Educação para a cidadania, qualquer acção ou aconselhamento, sem o acordo por escrito,  atempadamente solicitado pela escola. Esclarecem que os módulos  da "Educação para a Igualdade de Género" e o da "Educação para a Saúde e Sexualidade" lhes suscitam especiais preocupação e repúdio. Não autorizam a participação nas actividades do programa PRESSE - o PRESSE é o Programa Regional de Educação Sexual em Saúde Escolar, promovido pela Administração Regional de Saúde do Norte, I.P. Quanto aos demais módulos, dizem que constituem uma total perda de tempo, abordando como abordam temas que integram a educação que os pais já ministram. Dizem ainda que não autorizam sob pena de imediato procedimento criminal, que docentes dessa disciplina, qualquer que seja a sua formação académica (psicologia ou outra), a título formal ou informal, dentro ou fora da sala de aula, se aproximem dos filhos para lhes prestar qualquer tipo de "acompanhamento", "aconselhamento" ou "atendimento" psicológico que incida designadamente sobre essas temáticas. Solicitam informação  com a devida antecedência, de qualquer outra actividade de «enriquecimento curricular» prevista para o contexto de aula, tais como filmes, documentários, reportagens, palestras, visitas de estudo, acções de sensibilização, etc., sendo que, se não houver possibilidade desse aviso, a orientação é de que eles não participarão em tais actividades.

Só para termos uma ideia, segundo documentação elaborada no Fórum Educação para a Cidadania, em 2009, eis algumas das competências essenciais a desenvolver na tal disciplina que é uma perda de tempo, por exemplo quanto a estereótipos de género:

- Saber comunicar no respeito pela igual liberdade e pela igual dignidade de todas as pessoas, tendo em conta a pluralidade de pertenças individuais.
- Saber comunicar de igual para igual com homens e mulheres.
- Saber respeitar a diversidade humana, exercer a liberdade cultural no quadro dos direitos humanos e de uma concepção global e sistémica do mundo em que vivemos.
- Saber reconhecer as injustiças e desigualdades e interessar-se activamente pela procura e prática de formas de vida mais justas.
- Adquirir critérios de valor relacionados com a coerência, a solidariedade e o compromisso pessoal e social, dentro e fora da escola.
- Saber viver em paz, igualdade, justiça e solidariedade, e promover estes valores nas sociedades plurais dos nossos dias.

Também fui ao Google tentar averiguar se a Ex Aequo se tratava de uma "associação duvidosa", embora não se entenda exactamente o que o deputado quer dizer com isso. Existe desde 2003 e os oradores são capacitados para tal, recebem formação. Por vezes, um professor poderá nem ser a pessoa ideal para tratar o tema, aliás, é o que sucede com a temática da Sexualidade, que muitos gostariam de empurrar para o colega, nos casos em que a escola não chama oradores do Centro de Saúde. A avaliar pela reacção do deputado, imagino que ele mesmo seja estupendo a tratar de esclarecer os eventuais filhos que tenha, ou venha a ter, sobre as questões que eles eventualmente possuam, ou venham a levantar, sobre o assunto LGBTI. A família é a base de valores, atitudes, pensamentos, emoções e comportamentos futuros da criança. Falar de sexualidade foi considerado tabu durante muito tempo. Ainda hoje é difícil para muita gente e mais ainda falar sobre homossexualidade. É certo que muitos pais conversam com os filhos, mas outros não. Hoje o casamento entre pessoas do mesmo sexo é legal em Portugal e, além disso, as imagens de LGBT entram em casa de todos, pelo PC ou pela TV, nos telemóveis, em séries, filmes, videos. O bullying nas escolas também é real. O medo é real. Os pais devem ser os primeiros a dar respostas às questões dos filhos, - se os filhos tiverem abertura para lhes colocar as questões, - não devendo delegar noutros a tarefa de o fazer. Mas muitos evitam o assunto: não têm tempo, são contra, desvalorizam ou não sabem como. Oradores habituados a fazer estas palestras sabem como abordar estes assuntos no registo certo.

Os oradores não foram, decerto, à escola arregimentar apoiantes, doutrinar as crianças para a homossexualidade ou para serem contra as famílias heterossexuais, como pretendeu difundir o deputado ao divulgar o cartaz  da silhueta do homem com a família tradicional na cabeça à qual estava apontado um revólver segurado por uma mão arco-íris ou LGBTI. Se aceitar a diferença e a diversidade não é fácil para alguns adultos conservadores como este deputado, imagine-se como será difícil para uma criança diferente crescer num meio adverso à sua diferença, seja em casa ou na escola, presa fácil do mesmo preconceito que inspira as reacções extremadas dos adultos perante uma palestra quando, basicamente, o exercício que a associação propõe não seria muito diferente de aprenderem a colocar-se na pele do outro, a respeitá-lo independentemente de diferenças,  a perceber o que é  isso da discriminação e aprender a evitá-la.

Em Portugal a inclusão obrigatória da educação sexual nas escolas ainda gera polémica, mas na Escócia a temática LGBTI passou a integrar os programas escolares do ensino oficial. O anúncio foi feito no final do ano de 2018, e, obviamente, nem todos aceitaram ou consideraram isto um avanço civilizacional. Todas as escolas públicas da Escócia têm apoio do Estado para ensinar igualdade e inclusão LGBTI em diferentes faixas etárias e disciplinas. Isto implicará a compreensão da terminologia e das identidades LGBTI e o reconhecimento e compreensão da homofobia, da bifobia e da transfobia. O objectivo principal desta iniciativa é que todos os jovens se vejam refletidos nos contéudo das suas aulas regulares.  Por exemplo, o caso de Alan Turing, um herói da Segunda Guerra Mundial, por ter conseguido decifrar o Enigma – código usado pelos alemães  – e ter desenvolvido os primeiros avanços que viriam dar origem aos computadores, poderá ser mencionado na aula de matemática, possivelmente como parte de uma discussão sobre matemáticos inspiradores. Turing foi condenado por "indecência grosseira" quando a homossexualidade era ilegal no Reino Unido e suas conquistas em Bletchley Park não foram reconhecidas até décadas após seu suicídio em 1954. Nas aulas de inglês, os activistas dizem que os estudantes podem estudar a vida e o trabalho de Edwin Morgan - o famoso poeta escocês que anunciou ser gay no seu 70º aniversário. Trata-se de uma abordagem transversal, em tudo idêntica à que se faz em Portugal no que respeita à Educação Sexual.

Seria, pois, somente desejável que todos conseguissem  dialogar, expôr as suas ideias, contestar com clareza em  vez de irem para as redes sociais gritar VERGONHA como fez o deputado, que tem, concerteza, o direito  a manifestar a sua opinião discordante,  e a expressá-la. Mas informadamente. De outra maneira esteve apenas a deitar mais achas para a fogueira do preconceito e a agitar a panelinha das polémicas.

Na próxima postagem escreverei sobre o que é a Ideologia de Género.
Sugestão de leitura
LGBT vão às escolas: do pré-conceito à educaçãoO Projecto Educação LGBT, da rede ex aequo, desloca-se às escolas de todo o país para falar sobre temáticas que, na sua maioria, não são abordadas em contexto escolar como orientação sexual, identidade e expressão de género. O SOL foi assistir a uma sessão informativa, que teve lugar na Escola Secundária de Palmela, que envolveu várias dinâmicas de grupo e acesos debates, especialmente entre alunos.

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