Alerta vermelho! Artesanato português Made in China!



O ano passado foi notícia uma iniciativa da Organização das Mulheres de Cabo-Verde (OMCV) , que visou combater a inexistência de artesanato verdadeiramente cabo-verdiano no mercado capaz de refletir a realidade, a cultura e a tradição cabo-verdianas, e impedir que esta falta continuasse a ser preenchida com produtos alusivos ao país, mas "made in China". As novas peças são feitas por mãos de mulheres cabo-verdianas, que tiveram formação. São feitas de forma tradicional: as mais velhas ensinam as mais novas. As criações são em é cerâmica, em "panu di terra" (um tecido típico feito de forma artesanal em teares manuais), produtos de corte e costura com aplicação de "panu di terra" e moldagem de pedras vulcânicas. Trazem a marca Mãos de Cabo Verde que é também uma garantia de qualidade, inovação e acabamento aperfeiçoado. Bolsas, camisas, brincos, magnetos, pilões, porta-canetas, vasos e pequenas esculturas, há produtos para cativar as mais variadas preferências dos visitantes e com a garantia de serem genuinamente locais, pelo que o turista ao comprar um deles sabe que levará consigo um pouco da cultura daquele país.
Bolsa de ombro feita em panu di terra, tradicional, de Cabo Verde
Desde sempre me recordo de ser apreciadora das artes manuais e mesmo que não compre nada quando visito algum lugar, em Portugal ou no estrangeiro, gosto sempre de me informar sobre o que de original e típico aí se produz. Recordo que, na minha infância, quando ia passar férias ao Algarve com os meus pais, as lojas não estavam repletas de quinquilharia muito similar e de toda a espécie como hoje acontece. Não que esteja contra o negócio, mas muitos desses objectos colocados à venda nos lugares mais turísticos são, hoje, ou pensados aqui em Portugal e depois feitos na China, ou fabricados na China mas estampados aqui, para haver alguma personalização, ou produzidos na China a partir das nossas instruções. O "Made in China" aparece quase sempre nas etiquetas, quando as há, ou o "made in " qualquer outro país que trabalhe barato. Não estou a dizer que nunca comprei nada "Made in China" que não estivesse bem feito. Comprei sim. Ou souvenirs. O meu actual porta-chaves é um peixe azul brilhante, de metal, com uma medalha onde se lê Praia da Rocha. Possivelmente, na maior parte das praias algarvias, lá estarão pendurados às dezenas nas lojinhas de souvenirs rua da marginal, com a adequada medalhinha. Tem uns anos e a tinta azul começa agora a desaparecer.

Ninguém escapa aos souvenirs. Mas eu até resisto bastante, ainda assim. Ainda assim, quando estive na Bélgica comprei um chaveiro do Tintin e da Milú. Não sei onde é que terá sido fabricado. De Amsterdão trouxe uns ímans de casinhas com coffee shops, smart shops e sex shops do Red Light District que são tão perfeitinhos e tão engraçadinhos que ainda hoje todos param em frente ao meu frigorífico admirando as casinhas como se fossem um Vermeer que eu tivesse roubado do  Rijksmuseum! Também ignoro se foram importados da China mas a invasão desse tipo de oferta "Made in China", abafou qualquer tipo de similar produção local, penso que em Portugal e um pouco por todo o lado.  E a ilusão de que por serem "Made in China" serão baratos é uma ilusão já que são vendidos por preços turísticos.

Longe vai o tempo em que me sentia na obrigação de trazer souvenirs para distribuição ou não estaria a ser uma boa amiga. Pergunto-me agora porque perdia tanto tempo à procura do souvenir ideal. Quem é que daria, afinal, qualquer importância a essas ofertas que não eu mesma. Não vi ninguém a correr para ir trocar o seu porta chaves do Benfica pelo do Big Ben que eu entregava tão ufana da minha escolha. O que lucidamente agora me parece é que todos esses souvenirs acabam no fundo esquecido de uma gaveta qualquer. Até os que trago para mim. Mas o que dizer ao meu amigo que me trouxe um íman de uma tartaruga "Made in China", a dizer Algarve, de Albufeira, em Agosto passado, que não um sincero muito obrigada?

Evidentemente que são engraçados, coloridos, apelativos, mas a maioria desses souvenirs apenas faz parte de uma experiência massificada de consumo e de engodo turístico. Bem gostavamos que a nossa memória se comportasse como um íman do Algarve agarrado ao frigorífico, que não largasse nunca mais aquilo que de bom vivemos. Mas para a maioria de nós não é assim. O bom e o mau acabam por se desvanecer. Por outro lado, não podemos trazer nada do que nos entusiasmou tanto embora alguns tentem delapidar o património onde calha. Então materializamos a nossa vontade de possuir o que não podemos trazer na mala num pedaço de plástico esmaltado. O souvenir seria o objecto mágico capaz de perpetuar aquela efémera experiência por que tanto tempo esperamos e que tanto nos deixou felizes. Só que, no regresso, o souvenir cumprirá muito mal essa função e tanto pior quanto menos conseguir falar por si mesmo dos lugares e das pessoas que deixámos para trás. Foi verdade que fui a Londres e comprei um porta-chaves com o Big Ben feito na China. Era apenas um pedaço de plástico sem história, saído da produção em cadeia de uma máquina industrial ou semi-industrial qualquer, num país onde as condições de trabalho são miseráveis, China, India, Indonésia, Bangladesh, é só escolher. Não poderei contar a sua história a ninguém, nem a mim mesma, porque a sua história só existe na minha história de viajante e é mínima e insignificante. De forma diferente uma tartaruga de pedra vulcânica da ilha do fogo, feita por uma artesã de Cabo Verde. Esse pequeno objecto tem a sua singularidade. Nenhuma dessas peças é igual. Uma terá sido esculpida num dia triste, outra num dia alegre, uma ao início da manhã, outra ao fim da tarde. Uma terá suor, outra talvez até tenha sangue de algum dedo cortado; outras ouviram risos de uma boa jornada, outras foram molhadas pelas lágrimas de alguma perda. Cada tartaruga incorpora o sentir e o saber de uma pessoa- ou várias - que lhe deu forma e a tornou única. E conta a história de uma ilha num arquipélago  onde existem vulcões, e onde se protegem as tartarugas da extinção. O artesanato local é uma muito melhor oferta onde aplicar o nosso dinheiro porque nos conta uma história.

E finalmente a questão que me levou a encetar esta viagem. O que pensar quando se anda por aí, "pelos caminhos de Portugal", e se entra num atelier onde as pessoas estão a trabalhar as matérias primas locais e, já na saída, se constata que, numa prateleira, estão peças "Made in China", a serem subtilmente vendidas como se fossem produto da mesma linha de produção local? As estiquetas não enganavam: não tinham o tradicional "Made in China", antes ostentavam o nome da casa. Mas eu achei que já as tinha visto à venda na internet. O espanto com que deixei o local fez-me  ir à internet fazer uma busca pelas plataformas online que hoje nos permitem comprar directamente aos produtores, na China, sem intermediários. Foi lá que encontrei os produtos que vos mostro acima, inspirados por alguns dos mais queridos líderes políticos da actualidade, e, à mistura, com milhares de ofertas encontrei, sim, as peças em tudo idênticas às que vi no atelier. Escusado será dizer que encomendei uma das peças, que, de acordo com a indicação no site, receberei dentro de aproximadamente um mês. As peças que vi na loja custavam 15 euros e eu encomendei por 4 euros, com portes incluidos. Todos sabemos que a China embaratece os produtos cortando também na qualidade e que muitas vezes eles não são o que parecem nas fotografias. Só quando tiver recebido a encomenda poderei então ter a certeza sobre o que vi no atelier, mas a margem para dúvida é muito pequena. Ainda estou a desejar ter-me equivocado e por mais do que uma razão. Não estou, mais uma vez, contra o negócio, mas contra a forma do negócio. Que necessidade há de estar a enganar quem compra? É também um descrédito para a produção artesanal ali em curso, muito criativa e de boa qualidade, e com longa tradição, se no final verificar a veracidade da minha suspeita.

"O mundo é pequeno", é o título de um livro escrito nos anos 30,  por Somerset Maugham, romancista e dramaturgo inglês do século XX. Este homem viajou por todo o mundo tendo as suas viagens tido forte influência na sua escrita. Ora, o mundo tornou-se muito mais pequeno desde que apareceu a internet e isso pode ser tão incrível como decepcionante. Já não bastava o embuste dos souvenirs em que todos consentimos mercê da nossa ânsia por felicidade contínua, agora nem no artesanato local podemos confiar para viajar com verdade pela nossa memória dos lugares e das pessoas.

P.S. Quando receber a encomenda, contarei mais.


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