Visita memorável ao Mosteiro de Santa Maria de Coz


"Em Cós está o Convento de Santa Maria, ou o que dele resta. Não se espera, em povoação tão apartada dos caminhos habituais, encontrar um edifício assim grandioso, e rico de expressão artística."

José Saramago, Viagem a Portugal

À chegada ao Mosteiro de Santa Maria de Coz é grande a expectativa. Em anterior visita a Alcobaça, fora-me indicado no posto de turismo local que era monumento imperdível. Após uma subida pelo meio da tranquila povoação, encontramos muito facilmente uma tabuleta em madeira, com floreira, onde está gravado: Mosteiro Santa Maria. O olhar é atraído pelo campanário e seu cata-vento torto. Na parede do edifício que se apresenta pela esquerda, uma portada em verde indica a provável entrada para a igreja. Mais à direita uma construção em ruína, aparentando processos arqueológicos e de recuperação. No espaço de terra batida e pedra miúda que nos separa calharia bem, talvez, um jardim com mais algumas laranjeiras para fazerem companhia a uma única, que entristece, sozinha, e afastada, já próxima da estrada que talvez siga para Castanheira.

O conjunto não impressiona bem o visitante recém-chegado.  Não é o cartão de visita imaginado. No  entanto, o exterior do edifício conservado, e a desolação do seu vizinho, serão duas faces de uma única história, que o sr. Eurico Leonardo, responsável pelas visitas guiadas, nos desvendará com saber e devoção.

Logo encontramos um lugar de estacionamento muito perto. À saída do carro, o ar que se respira ali parece mais leve do que o habitual na nossa cidade. E até perfumado. Passamos por uma ponte e contornamos o volume paralelepídico da igreja até alcançarmos a placa informativa: a recepção é na antiga adega do mosteiro. Tentamos adivinhar onde fica e  dirigimo-nos para o que parece ser uma oficina de artesanato local pois no exterior estão ceirinhas de junco penduradas e um grande cartaz na parede a promover apetecível pão-de-ló. Entramos. No interior, muitas mais de formatos e cores diversas, empilhadas, a piscar o olho a visitantes vaidosos, fruta para venda, e ao fundo dois teares, onde Titus trabalha e logo entabula conversa, esclarecendo-me que não, o mosteiro não está fechado, e que já vai avisar o nosso guia. Maria, uma jovial senhora de 75 anos, entra na casa,- que é afinal, a tal adega - com um braçado de junco. Mais tarde iremos vê-la tecer o junco no tear com dedos tão rápidos que parece mentira. Estará a dar corpo a um ninho de passarinho, que também ali se vende. O sr. Eurico Leonardo, é o guia a guardião do tesouro, não perde tempo e rapidamente conduz-nos até à entrada da pequena porta secundária,  situada junto da placa infomativa.

É já com o pé dentro do passado mas apenas aflorando ainda o mistério da igreja de Cós, que tem início uma bela lição de história,  aproveitando o calor do sol que ainda trespassa a ombreira, pois da porta seguinte em diante, tudo será frescor de parede de pedra espessa e secular, onde a luz existe mas não aquece o corpo, talvez apenas a alma. Ali está o que resta de uma estrutura de pedra da antiga da igreja quinhentista, com  pequena pia de água benta.

Estar em Coz, - hoje, Cós, assim estava escrito nas placas que encontrámos ao longo da estrada - é estar em pleno território do que outrora se chamava o couto (lat. cautum: para segurança) de Alcobaça. Situada a cerca de 8, 5 km a norte da cidade de Alcobaça, Cós é a sede de freguesia da União das Freguesias de Cós, Alpedriz e Montes. Em 1153, D. Afonso Henriques doou esta área recém-conquistada aos mouros a D. Bernardo, Abade de Claraval, possivelmente em paga de favores obtidos,  com o propósito de aí ser fundado o Mosteiro Cisterciense de Santa Maria de Alcobaça, e,  também para ajudar a consolidar a debandada imposta aos infiéis. Tratava-se de uma  área de magníficos 440 km 2 de terras pouco ou nada povoadas, densamente florestadas por pinheiros, carvalhos e castanheiros, algures percorridas pelas ribeiras Alcôa e Baça, e outros cursos de água,  planícies, pântanos, serras e até portos. Foram os monges que, ficando obrigados a garantir o seu sustento, desbravaram a rude natureza e elegeram os melhores terrenos para cultivo,  a que se dava o nome de granjas, e fizeram desta zona da Estremadura um exemplo de progresso agrícola, quem sabe em parte explicando o apuro da boa fruta que ainda hoje é produzida na região.


O mosteiro de Alcobaça administrou esta vastidão latifundária até à época liberal, cativando riqueza, impondo disciplina e organização, promovendo cultura e arte. Foi então que a Ordem foi extinta e o mosteiro feminino de Cós, um dos mais ricos, e que daquele dependia, também não escapou ao destino, as monjas atiradas para o mundo e sobrevivendo à miséria apenas mercê de soluções de caridade. Foi Joaquim António de Aguiar quem promulgou a desditosa  lei em 1834, - e em virtude dela e seu espírito anti- eclesiástico, ficaria conhecido como o Mata-Frades - pela qual declarava extintos "todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios, e quaisquer outras casas das ordens religiosas regulares", sendo os seus bens secularizados e incorporados na Fazenda Nacional. A nova visão impunha a laicização da sociedade. O poder era agora terreno e a ordem queria-se constitucional, não mais religiosa. A lei republicana da separação entre o poder público e a igreja, no ano de 1911, contribuiria também para o desbarato indiscriminado do legado das ordens religiosas em Portugal.  Houve saque e destruição, ignorados quaisquer valores de teor histórico e artístico. O Estado tomou posse dos bens, mais tarde vendendo em hasta pública. Em Cós, os privados ajudaram à missa carregando do mosteiro o que podiam para incorporar nas suas construções ou dando usos nocivos às estruturas existentes. Por quase milagre, a igreja foi poupada. E foi assim que ao chegar nos deparamos apenas com uma igreja e os anexos em bom estado de conservação e uma ruína. O visitante habitual de mosteiros cistercienses  tem de imaginar tudo o que ali já não existe mais: os claustros, a sala do capítulo, um refeitório, cozinha, casas de padres, estruturas como celeiros, adegas, moinhos, que estariam no limite da cerca do mosteiro, a cerca, de qual apenas umas pedras mal alinhadas ainda restam.


A Ordem de Cister é uma ordem monástica católica, beneditina, fundada em 1098, por Robert de Molesme, em França. São Bento fundou os mosteiros - antes disso, os monges viviam como eremitas, não em grupo - e organizou a vida monástica comunitária. Todos seguiam a Regra de São Bento (Regula Monasteriorum), livro por ele escrito contendo as regras para a vida monástica comunitária: o silêncio, a oração, o trabalho, o recolhimento, a caridade fraterna e a obediência são os seus pontos cardeais. Esta Regra foi seguida na Península Ibérica também pela Ordem Militar de Cristo e pela de Avis. Bernardo, um jovem de Fontaines, ingressa entretanto na Ordem de Cister e será sob o seu impulso que a Ordem se expande por toda a Europa, chegando a Portugal a partir do séc. XII, acompanhando de perto a primeira dinastia e a consolidação do reino, gozando de favor régio. Os monges, nomeados monges brancos em virtude do seu hábito, acabaram  também conhecidos por "Bernardos" em virtude da fama de santidade e sabedoria de Bernardo, que foi conselheiro de Reis e de Papas, uma personalidade respeitada em toda a Europa. 

A fundação do Mosteiro de Santa Maria de Coz ocorreu em 1279, por iniciativa do abade alcobacense D. Fernando, em cumprimento de um desejo expresso em testamento por D. Sancho II, que terá deixado uma certa quantia para o efeito. Inicia-se nesta época a multiplicação de mosteiros femininos, até aí inéditos na Ordem, que o monarca D. Sancho I e filhas, (rainha D. Teresa, e infantas D. Sancha e D. Mafalda), apoiaram.  Há relatos de que as primeiras religiosas que habitavam o mosteiro seriam mulheres viúvas e piedosas que, aproveitavam as águas do rio Cós para lavarem os hábitos sujos dos monges de Alcobaça. Só mais tarde abraçariam a Ordem de Cister.  O mosteiro de Cós seria consagrado na Ordem de Cister apenas no tempo do Cardeal-Rei D. Afonso, com funções no Mosteiro de Alcobaça no início do séc. XVI.

A partir deste século, a comunidade de Cós possuía já uma organização autónoma e era governada por uma abadessa. O papel da abadessa era não só fazer respeitar a Regra de São Bento, - fazer com as as monjas cumprissem os votos jurados e restabelecer a ordem usando de repreendas, em privado ou públicas, privação da participação da mesa, de convívio e até castigos corporais,- mas também fazer a gestão do património. Os mosteiros femininos medievais acolhiam mulheres das camadas sociais abastadas, mulheres solteiras -  filhas que não arranjavam casamento, filhas que não queriam casar com os pretendidos pela família, etc - que deixavam assim de ser um peso para a família, ou viúvas, ou quem sentisse vocação para a vida monástica. Sobretudo oriundas da aristocracia e burguesia da zona geográfica envolvente de Cós, à época, próspera, e não tanto da alta nobreza frequentadora da corte. O mosteiro medieval cisterciense feminino impunha condições de entrada às que ali buscavam refúgio, nomeadamente, uma forma de assegurar a sua subsistência, fosse um dote em dinheiro ou rendimentos ou bens.

O mosteiro de Santa Maria de Cós, tal como hoje o conhecemos, surgiu apenas no século XVI. A iniciativa deveu-se ao abade comendatário de Alcobaça, D. Afonso, filho de D. Manuel I, que iniciou a sua construção. Durante os séc. XVII e XVIII o mosteiro deverá ter florescido. O que encontramos na visita, na igreja e dependências anexas, é obra fundamentalmente de finais do século XVII. A isso somam-se o vestígios arruinados de uma parte da ala do dormitório.

O sr. Eurico Leonardo abre a porta seguinte e convida-nos, então, a entrar na igreja. Avançamos e giramos sobre nós. Olhamos à esquerda e à direita. A surpresa engole a nossa vontade de dizer seja o que for. Os olhos percorrem o espaço sem conseguir eleger um ponto onde se fixarem: a igreja é um tesouro artístico. Por onde começar? ( Peço desculpa pela má qualidade das fotografias, mas que isso seja o incentivo para uma vossa visita.)

Os painés do tecto da igreja
O presbitério
Perspectiva do altar
A grade
Purgatório, Josefa de Óbidos
Coro das monjas
Parte do cadeiral
Portal manuelino
A igreja tem uma única nave, dividida em duas zonas: a do coro e a dos fiéis. O retábulo do presbitério, ricamente trabalhado em talha dourada, marca o início do estilo barroco em Portugal. Destacam-se as colunas repletas de uvas e parras. O trono eucarístico tem  uma Nossa Senhora da Assunção, lá no alto, que a minha vista não alcança completamente. Mais perto, uma Sagrada Família com figuras de tamanho natural, com destaque para o Menino Jesus crescido, que caminha pelo seu pé, entre as duas. O elemento pagão está por ali: há figuras de mulheres grávidas e peitos desnudos, talvez um vestígio ao culto da fertilidade, ou uma celebração da maternidade. Uma imagem de São Bento, outra de São Bernardo, assentam em mísulas com carrancas feias. Tudo é dourado brilhante  e reflecte  a luz. No altar-mor, várias telas sobre a vida de São Bernardo, uma delas, uma pintura que representa a aleitação se São Bernardo pela Virgem Maria, que ele venerava especialmente, interpretação simbólica da sabedoria e iluminação que este dela receberia. Nas paredes laterais da Igreja, cobertas a azulejo, até meio, janelas várias deixam entrar a luz e abaixo, diversos altares, com imagens, em retábulos de talha dourada. Num deles, uma pintura de Josefa de Óbidos, alusiva ao purgatório.

O tecto é curvo, totalmente coberto por 5 filas de painéis pintados com imagens e frases em latim, alguns, pareceu-me que dedicados à Virgem, que são chamados "caixotões". São talvez 50 metros de pinturas alinhadas.

Na zona do coro das monjas, oposta ao presbitério, as paredes estão integralmente cobertas de azulejos. O padrão inclui  uma curiosa estrela de cinco pontas.  Aqui também existem janelas, e ao fundo um óculo, ovalado, além de altares em retábulos. Pequenos azulejos têm figuras de inspiração chinesa: o leão é inequívoco. Aqui está o cadeiral, com uma centena de lugares; simples, mas elegante, apresenta diversos embutidos e um "S" nos espaldares, aberto a interpretação. Será "S" de Sancho? "S" de São Bernardo? É aqui que também encontramos um portal manuelino, que foi trazido de outra construção para embelezar, com as  habituais esferas armilares e um brasão. O plano desta zona é elevado em relação ao dos fiéis que viessem assistir ao culto para permitir que as monjas conseguissem observar o altar. Uma grade de ripas de madeira cruzadas separa as duas áreas. Não está lá uma espessa cortina destinada a garantir a incomunicabilidade visual dos dois espaços.

Uma porta dá acesso à sacristia contígua totalmente coberta azulejo. Alguns são painéis de azulejo com representações da vida de São Bernardo. O tecto é, de novo, forrado por tábuas pintadas. Na divisão seguinte, aguardam por nós uma pintura mural ainda perceptível representando monjas e frescos quase apagados...
Na sacristia
Tábuas do tecto
O tecto
Azulejos- falsa porta
Azulejo e fonte
Saímos por porta diferente daquela por onde entrámos e, de volta ao coro das monjas, o sr. Eurico conta-nos a "história das favas", que não irei desvendar aos meus leitores. Quem a quiser saber terá de rumar ao Mosteiro da Igreja de Coz.

A visita tinha terminado, julgávamos. Saímos para o ar livre, mas ainda vistamos a estrutura em ruínas: é o corredor do dormitório, que tem dois pisos, e apercebemo-nos das espessas paredes da construção. No piso térreo há vestígio de uma capela e da casa da grade, com vão de janela e roda, elemento que permitia a troca de bens com o mundo exterior, sem a necessidade de estabelecer o contacto visual. 

A tarde vai adiantada, o sol já desceu, e bem, sobre a linha do horizonte, não déramos pela passagem do tempo porque fomos transportadas para um outro tempo, através do nosso profissional interlocutor. O sr. Eurico, muito mais que um simples guia turístico, é um verdadeiro animador -  do latim tardio animatōre, que dá a vida - que sabe como dar vida a monjas que ali oraram e trabalharam num passado distante e até às pedras antigas. Por isso aprendemos tanto. Um pouco à semelhança do estilo barroco, que mais que ao intelecto, apelava à emoção, também o sr. Eurico Leonardo conseguiu bem temperar a História, imaginando eu que até o visitante mais empedernido não sairá da igreja de Coz sem afeição pelo que ali aconteceu.

D. Maria e Titus, nos teares
A boa fruta da região: maçã de Alcobaça
O trabalho do junco: tradição
 O trabalho do junco: inovação
Projecto COZ'ART - Artesanato - Ruralidade - Turismo
O Sr. Eurico Leonardo e a  aprendiza desajeitada
O ar continua leve e perfumado, não sei se por razão das flores dos campos ou  das laranjeiras, e oliveiras, árvores que vi em redor, quando atravessamos o terreiro, prosseguindo até à casa da adega. Mas antes o sr. Eurico ainda nos aponta um telhado de um edifício que pode ter sido o celeiro do mosteiro, hoje na mão de particulares. 

Na casa da adega, inteiro-me do que seja o COZ'ART, - para informações sobre visitas e workshops,  969 642 970 - um projecto de produção de artigos em junco, da área da economia social, promovido pela Câmara Municipal em parceria com o Centro de Bem-Estar Social de Coz e União de Freguesias de Cós,  Alpedriz, e Montes. Fico a saber que não há pão-de-ló, e agendo uma hipotética visita sem data apenas para satisfazer a gula. A D. Maria e o Titus trabalham com afinco e é-me oferecida a possibilidade de testar a habilidade dos meus dedos no tear. A D. Maria faz um intervalo e eu tomo o lugar dela. Titus, ao lado, deita o olho e sorri, já antecipando, decerto, que não me iria safar.  O sr. Eurico vem em meu auxílio, mas nem assim. A fazer fé no meu jeito, nenhum passarinho habitaria um ninho feito em junco!

Ninhos de passarinho em junco
Fico satisfeita por saber que se adquirir uma das bonitas peças em exposição estou a contribuir para uma dignificante causa social: o bem estar da terceira idade. Já a tinha visto, horas antes, quando ali entrara, e agora é minha. Uma pequena malinha de junco. Levo-a ao nariz e o odor típico do junco é a última memória olfactiva que guardo antes de iniciar a viagem de regresso ao presente. 
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