Os benefícios de cultivar a etiqueta e as boas maneiras


Nenhum gesto de gentileza, por menor que seja, é perdido. (Esopo)

Myka Meier é uma estrela no firmamento das boas maneiras.  Este é o seu site. Começou em Kensington, e foi treinada, em parte, por um membro da casa real britânica. A sua aposta foi "quebrar o estereótipo de que a etiqueta é percebida como uma forma de arte desactualizada, inacessível ou até mesmo perdida". Para alcançar a maioria das pessoas, Myka projectou cursos tradicionais de etiqueta mas com um toque moderno, que não são intimidam o iniciado. Isto só foi possível em virtude da sua experiência em comunicação intercultural e paixão pela etiqueta. Aprender etiqueta está na moda. Os casos de casamentos de pessoas com membros da família real inglesa que tiveram de aprender o protocolo talvez tenham influenciado alguns no desejo de aprenderem mais sobre as "boas maneiras". Ou mesmo a exibição da série de TV Downton Abbey, que retrata um tempo onde a etiqueta "falava" pelas pessoas. Muitas das formalidades dessa época estão ultrapassadas, mas algumas permanecem actuais. Nessa altura, uma vez à mesa, ninguém devia encostar as costas a uma cadeira, um mordomo da época Edwardiana usava uma régua par dispor a mesa, o pessoal que servia era tanto melhor quanto mais invisível! Nunca se devia agradecer os seus préstimos! Por outro lado, um convite nunca, mas nunca devia ser endereçado pelo telefone...

A fama de Myka Meier atravessou o Atlântico e co-fundou um curso de etiqueta - Beaumont Etiquette - no Plaza Hotel, em Nova Iorque, que se tornou imensamente popular. Os nova-iorquinos acorrem. Enquanto os adultos podem aprender o essencial do protocolo empresarial moderno, as regras sociais e a etiqueta do jantar, as crianças e os adolescentes podem aprender maneiras básicas à mesa, o bê-á-bá das interacções sociais adequadas e habilidades de comunicação online. A etiqueta é menos severa que a britânica mas uns pontos acima da americana.

Myka Meier é uma espécie de Clarisse Renaldi apostada em fazer de todas as Mias Thermopolis umas verdadeiras princesas da etiqueta. Ou uma versão feminina de Henry Higgins a braços com Elizas Dooltittles. Aliás, Myka, não sendo professora de línguas, como Higgins, é formada em comunicação. Não anda exactamente a transformar estudantes adolescentes em princesas, como Clarisse, no filme de Garry Marshall, ou mulheres do povo em damas da alta sociedade como o professor do clássico  My Fair Lady. Quem mais a procura são os "millenials", isto é, os nascidos a partir dos anos 80-90, até 2000, em tempo de profundas mudanças tecnológicas e de prosperidade económica. São os filhos da internet, que cresceram dos computadores para os laptops, dos telemóveis, para os smartphones. São indivíduos profundamente conectados, mas cujo comportamento e hábitos veio a revelar uma lacuna que Myka tenta colmatar. Porque crescem emersos na realidade virtual, sendo a sua vida pautada pela interacção virtual no plano pessoal, profissional, de lazer, ou do consumo, Myka diz que esta geração está a perder as soft skills: falta-lhe o treino da  interacção social cara-a-cara, o contacto visual e o domínio da linguagem corporal. Por isso não sabem como comportar-se quando colocados em situação de proximidade convivial, ignorando por completo os seus códigos mais básicos. Mas para quem prefira o ambiente tecnológico, ou esteja longe, ela disponibiliza tutoriais online.

No vasto campo da etiqueta sempre dei particular atenção às regras que ditam o saber estar à mesa. Mas, será que não saber identificar o talher que está na mesa para comer o peixe será assim uma tão grande nódoa? Ou trocar a ordem dos copos da água e do vinho? Ou empurrar um prato para o centro quando se terminou a refeição? Algumas regras parecem ser meras convenções quase vazias de utilidade. Mas outras há que modelam a nossa conduta egoísta e nos levam a considerar os interesses dos outros com o objectivo de tornar aquele momento proveitoso para todos. A etiqueta é um facilitador do convívio e um incentivo ao respeito e consideração pelo outro.

Entendo que a refeição é um espaço de privilégio. Tudo começou há muito tempo quando era adolescente e detestava preparar comida. Desde então passei a reverenciar quem a preparasse e o momento da refeição, esforçando-me por saber estar à altura. Nunca esqueci quem me convidou para sua casa e preparou comida para mim, e ainda hoje são convites que muito estimo.  Não gosto de ser interrompida e não me passa pela cabeça olhar para o telemóvel. Uma mesa preenchida é um privilégio e  uma festa para os sentidos, com muito que olhar, cheirar, saborear. E até podemos trocar estimulantes pontos de vista. Podendo, devemos dar-nos tempo para isso tudo, pois pode tornar-se um pequeno prazer diário. E  daí a utilidade de algumas regras que nos aconselham, por exemplo, levar à boca comida um x número de vezes e depois pousar o talher para uma pausa.

Por outro lado, a etiqueta pode fazer-nos sentir artificiais, ao parecer valorizar a encenação em vez da nossa voz original, que, em rigor, nem sempre seria polida, mas, calhando, mais verdadeira. Também há que dizer que  uma certa espontaneidade pode ser considerada uma forma de demonstrar intimidade, sendo habitual dizermos que não fazemos cerimónia com alguém quando somos bastante íntimos, amigos, dessa pessoa, e assim relaxamos  na etiqueta.

As boas maneiras referem-se mais à forma como interagimos uns com os outros e menos a faqueiros e jogos de pratos e copos colocados a distâncias exactas. Existem claros benefícios em cultivar as boas maneiras mas por vezes, ao observar o que me rodeia, até parece que nunca foi tão fácil ignorá-las. De um modo geral, elas facilitam o dia-a-dia pessoal, social e profissional, agilizando as relações entre as pessoas. São um passaporte de entrada em eventos profissionais, empresariais, e sociais: uma pessoa cordial e que sabe estar à altura das circunstâncias é naturalmente bem vinda pois acredita-se que saberá criar um bom ambiente, dialogando com todos os presentes, evitando conflitos. As primeiras impressões podem ser decisivas e as boas maneiras, o uso adequado de expressões e linguagem corporal, a cortesia, marcam de forma positiva um primeiro encontro de qualquer teor.  Podem concorrer para evitar conflitos ou modelar a sua resolução permitindo o seu desenlace mais rápido e ordeiro. As boas maneiras dos adultos servem de exemplo a seguir pelas crianças, jovens, mas também de pessoal a cargo, colegas, amigos, e até vizinhos ou outras pessoas do círculo próximo, que podem ser influenciados pela conduta; costumam ser valorizadas pelos outros como sinal de respeitabilidade, educação, civilidade, vantagem. Estimulam a manutenção de laços de comunicação pelo uso das suas fórmulas tradicionais. Boas maneiras geram boas maneiras! Experimente o inverso e poderá ser desagradavelmente surpreendido.

O bom das boas maneiras é que podemos investir na sua aprendizagem e ir limando a nossa maneira de ser. As boas maneiras não devem apenas ser exercitadas em ocasiões especiais e esparsas. A ser assim há franco risco de parecem pouco genuínas, forçadas. Não devemos esperar por ambientes requintados ou eventos cerimoniais,  que a maioria de nós até talvez pouco ou nunca frequente ao longo da vida, para agirmos de forma cortês. Nem precisamos de decorar um manual de regras rebuscadas que só um mestre de cerimónias domina. No quotidiano, no banal quotidiano, apressado, repetitivo, cansativo, há muito espaço para melhorar os nossos comportamentos sociais. Um pequeno esforço, um "update" ao nosso modo de agir pode fazer uma enorme diferença.

Sugestão de leitura

 Gafes, vexames e micos - Revista Época, um texto sobre etiqueta, boas maneiras e o livro de  Henry Alford, um dos muitos autores que escreveu sobre o tema.

No Ocidente, a questão das boas maneiras também ocupou pensadores de diferentes épocas. O precursor de todos os manuais de boas maneiras é o Tratado de civilidade pueril, escrito pelo filósofo holandês Erasmo de Roterdã (1466-1536). Essa obra fundadora estabelece os dois focos que, ao longo do tempo, nortearam os livros sobre boas maneiras. Um deles dá conta dos procedimentos para ações específicas – como tratar uma dama, como sentar à mesa com o rei, como falar com um vassalo, além das maneiras corretas de usar o talher, fazer a higiene, montar a cavalo. Tais dicas, num mundo ainda semifeudal, eram sobretudo úteis. No século XV, a maior parte das pessoas ainda comia com as mãos e tinha hábitos de higiene mais precários do que hoje. O Palácio de Versalhes, na França, não tinha nenhum banheiro. Entre as recomendações de Erasmo para as refeições estava não limpar a mão suja de comida na roupa. Ela deveria ser lavada numa tigela com água ou esfregada no pelo de um animal próximo.

A outra parte do livro de Erasmo se aprofunda no lado filosófico e toca na questão central até hoje: como tratar as outras pessoas de forma civilizada. Que é, em última análise, o foco do livro de Alford e a essência das boas maneiras. Para fundar sua tese, Erasmo recorre aos filósofos do Renascimento. O padre e pensador francês Jean-Baptiste de la Salle (1651-1719) acreditava que as regras de boas maneiras moldavam o espírito do homem. Fazendo o bem, ele se tornaria bom. “Os filósofos iluministas criticavam os códigos de comportamento porque diziam que eram empregados para alcançar vantagens materiais na corte”, diz a historiadora Maria Cecília Pilla, autora de uma tese de doutorado sobre a relação entre boas maneiras e poder. “O francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que fazia parte da turma iluminista, afirmava que as boas maneiras deveriam nascer do bem-querer, em detrimento de códigos impostos.” Tais princípios norteiam o livro de Henry Alford. E também a lista que você lerá a seguir. Não a veja como um receituário de regras, e sim como um conjunto de dicas para treinar respeito, afeto e gentileza – os bons sentimentos que estão na raiz das boas maneiras, hoje como no tempo de Erasmo.




Would It Kill You To Stop Doing That?, de Henry Alford , está à venda online, na WOOK



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