A sociedade patriarcal e a mulher cigana



Volto ao cinema de Leonor Teles para recomeçar a escrever, ainda sobre a etnia cigana, e por duas razões. Porque gosto de cinema e porque esta realizadora, de origem cigana, é uma voz privilegiada sobre o assunto em questão. No seu filme Rhoma Acans, - que significa “olho do cigano” em romani, dialecto antigo da comunidade - ela parte em busca do verdadeiro peso identitário da sua herança cigana. Nascida no seio de uma família de um pai cigano e de uma mãe não cigana, mas fora da comunidade, Leonor questiona em filme o que teria sido da sua vida se o pai, inspirado pela sua própria mãe, não tivesse quebrado a tradição onde nasceu. Para isso segue a trajectória de Joaquina, uma jovem cigana de 15 anos, que contava com um casamento falhado e ambicionava sair da comunidade cigana para ser modelo. Leonor percebe e mostra-nos mudanças alcançadas e outras por vir.

O filme foi rodado no Casal dos Estanques, em Vialonga, em Maio de 2012. A comunidade cigana aceitou ser filmada mas nas entrevistas realizadas sobre alguns assuntos mais pessoais Leonor notou alguma resistência. Rhoma Acans foi produzido no âmbito de uma disciplina semestral leccionada na Escola Superior de Cinema e Teatro (ESTC), onde, em 2012, a jovem se licenciou. 

O documentário "Rhoma Acans" valeu a Leonor Teles o prémio Take One! na edição 2013 das Curtas de Vila do Conde. O filme foi ainda distinguido com uma Menção Honrosa no IndieLisboa (prémio Árvore da Vida), com o prémio de Melhor Curta-Metragem Escolar do Curtas Sadinas e o prémio Património Imaterial do concurso de vídeo da Fundação INATEL.

Diz Leonor, em entrevista ao Mirante: “É complicado falar com uma miúda cigana de 15 anos e perguntar que sonhos têm. Elas não sabem responder porque nunca pensaram nisso e estão formatadas para viverem segundo a cultura”. Leonor Teles diz que há raparigas com vontade de sair da comunidade cigana mas “se o fizerem ficam sozinhas no mundo”. Apercebeu-se que as jovens ciganas saltam uma etapa na vida, a adolescência, que é essencial. “Elas passam de brincar às casinhas para terem maridos aos 14 anos”. Por isso defende que a mudança de mentalidade tem necessariamente que passar pela educação e pela frequência da escola, espaço onde podem ter acesso a outras vivências e culturas.

Que tradição é esta que Leonor diz que o pai quebrou? A família é um valor muito importante para o cigano e o casamento uma tradição muito forte, essencial para a construção identitária, gerador de sentido de pertença ao grupo. Desincentiva-se que ocorra fora da comunidade: ele é essencialmente endogâmico e assegura a reprodução do grupo e da sua cultura. Existem casamentos com indivíduos fora da etnia, tolerados: se o cigano casar fora, com uma mulher, ela pode entrar e submeter-se à lei cigana; se uma cigana casar com um de fora, tem de deixar a comunidade. a vida no grupo é marcada por fortes laços, é uma referência fundamental e inclui membros afastados, parentes, com quem se pode também ter negócios além de laços afectivos. O clã, uma relação de famílias, é aqui uma realidade fundamental: em conjunto reagem a eventos funestos, a morte, uma hospitalização, um crime; ou de celebração, casamentos, aniversários; auxiliam-se na carência económica, no amparo de crianças e velhos, considerados depositários da sabedoria. A par da família e do respeito pelos mais velhos, o respeito pela criança, a censura ao abandono dos filhos e à separação entre cônjuges e o cumprimento dos compromissos estabelecidos entre famílias, ou a extrema importância atribuída à virgindade da mulher são outros valores que norteiam a vida em comunidade.

O sistema patriarcal assenta numa estrutura hierarquizada em que a autoridade vai do mais velho ao mais novo, do homem à mulher. Um homem só é importante na comunidade se casar e tiver filhos.  É ele o chefe da família, o decisor. O noivado é curto e o namoro sempre feito longe de olhares públicos. A mulher tem de ir virgem para o casamento, e faz-se prova da virgindade, num cerimonial, o arrontamento, um ritual de desfloramento, que é, para quase todas, uma questão de honra. O casamento pode acontecer entre os 13 e os 21 anos. A festa de casamento chama-se abiéu. O dote, o traje de casamento e o enxoval serão custeados pelo pai do noivo.

Ao casarem, os ciganos deixam automaticamente a escola e iniciam a vida adulta, assumindo a responsabilidade inerente, de aumentar e prover para a família. A mulher em solteira obedece ao pai, casada, ao marido. Deve dar filhos ao homem para ser respeitada. É considerada a guardiã da cultura e identidade ciganas, que transmite aos filhos. Os filhos são um motivo de orgulho para a família, muito acarinhados, e sinónimo de poder e consideração dentro do clã ou tribo. As mulheres criam os filhos: orientam as meninas até ao casamento, enquanto que os filhos acompanham os homens nas suas lides e actividades lucrativas. Também pode trabalhar para prover ao sustento da casa, acumulando as tarefas domésticas. Valores da autoridade masculina e da obediência feminina, são raramente contestados, o divórcio é difícil de concretizar, e a violência doméstica, tolerada. O matrimónio cigano não é regido pelo Código Civil Português ou pela Igreja Católica, e antes pela Lei Cigana, um conjunto de regras e códigos sociais. Trata-se, aos olhos da nossa lei, de uma união de facto. Alguns casam pelo Civil, e alguns pelo Civil e pela Igreja, ainda assim. A fidelidade feminina exige-se mesmo após a morte, o luto das viúvas é muito rigoroso: rapam o cabelo, vestem-se totalmente de negro, com lenço na cabeça, meias de lã, manto, etc. Nunca mais participam em festas e divertimentos, não podem voltar a casar. A mulher passa a ser “a viúva de”, perde estatuto social, assim como ascende, por via do casamento. O código de honra e justiça dos ciganos é denominado Cris Romani.

Este domínio do masculino sobre o feminino, hoje considerado inaceitável, também já foi regra entre nós. O regime da ditadura do Estado-Novo, a mulher era apenas uma personagem secundária no palco da sociedade patriarcal. Na generalidade, as mulheres viveram em casa, não podendo trabalhar, viajar, estudar. Sem a autorização de um homem - o marido, ou o pai - os movimentos das esposas ou filhas estavam bem limitados. O Estado percebeu o valor da instrução e a mulher podia ensinar as crianças, uma espécie de prolongamento da sua missão de mãe de família. O trabalho feminino fora do lar, especialmente no sector secundário, era contrariado. Mas as mulheres substituíram os homens que emigraram e ganharam terreno na indústria, na agricultura, onde fossem precisas.

A Constituição de 1933 atribuía  o voto nas eleições nacionais a mulheres com o ensino secundário ou superior. Em 1968, nas municipais, votavam apenas os chefes de família, figura legal que só desapareceria do texto da lei perto dos anos 80.  Finalmente, a Constituição de 1976 deu o direito de voto a todos os cidadãos portugueses, homens e mulheres. Só para se ver como a emancipação da mulher demorou a tomar forma. Como coloquei em evidência a propósito da reflexão sobre os provérbios e estereótipos de género, recordo que o Código Civil de 1967 (informado pelo Código de Seabra, de 1866) que regia a ordem jurídica de então, permitia ao homem repudiar a noiva não virgem, elegia o homem como o chefe de família enquanto a mulher se ocupava da casa e de criar os filhos. A Igreja católica prescreve que as pessoas se casem para a vida e o Código era claro: o casamento era um contrato perpétuo entre duas pessoas de sexo diferente. Não podia haver dissolução do casamento por divórcio dos casamentos católicos celebrados após a entrada em vigor da Concordata entre o Estado Português e a Santa Sé, em 1940. O meu foco ao fazer esta chamada  é apenas realçar que esta é a marca de uma sociedade patriarcal que pode existir em qualquer cultura. Já existiu na nossa, e ainda hoje existem reminiscências dela; e existe no seio da comunidade cigana. Mas, como disse a Leonor, existe um caminho: o da mudança de mentalidades.

Neste campo, é importante conhecer o resultado da 4.ª conferência internacional realizada na Finlândia, Helsínquia, a 17-18 Setembro de 2013, particularmente a Estratégia para o Progresso das Mulheres e Raparigas de Etnia Cigana 2014-2020, da Rede Phenjalipe de Mulheres Ciganas. O documento apresenta um diagnóstico da situação das mulheres ciganas, feito por mulheres ciganas, activistas, e  refere os principais desafios por elas enfrentados: as práticas tradicionais nocivas; a redefinição das representações tradicionais do papel das mulheres ciganas nas suas comunidades e na sociedade em geral; o desapontamento com a falta de apoio por parte das activistas da área da igualdade de género quando os Direitos Humanos das mulheres ciganas são violados; a necessidade de denúncia de experiências de discriminação no seu quotidiano, a necessidade de mecanismos de queixa a nível nacional e internacional; alterar a forma negativa como as mulheres ciganas são retratadas na comunicação social e a necessidade de construir imagens positivas de mulheres ciganas. Sublinharam ainda a necessidade de investir mais nas raparigas ciganas, especialmente na educação.

Note-se o foco na necessidade de adoptar uma abordagem de Direitos Humanos - de reconhecimento, respeito pelos direitos humanos e as liberdades fundamentais – direitos políticos, económicos, sociais, culturais, civis ao abordar a questão dos direitos das mulheres ciganas. E também a importância de integrar a dimensão do Género nos projectos a desenvolver. São as mulheres ciganas ali reunidas que o afirmam, "o papel tradicional do homem não deixa espaço para as mulheres, o baixo estatuto socioeconómico, o analfabetismo e a falta de conhecimento limita sua capacidade de reivindicar os seus direitos e de encontrar apoio quando confrontadas com situações de violação dos direitos humanos. Por outro lado, a dimensão de género das atitudes discriminatórias que as mulheres ciganas enfrentam passa muitas vezes despercebida."

 A mulher enfrenta uma dupla discriminação, a da intolerância contra o cigano em geral, exclui as mulheres ciganas de muitas áreas da vida social, institucional e política em comparação com as mulheres da maioria, e até mesmo com os homens ciganos. Mas as mulheres ciganas vivem a discriminação de género, não só na sociedade em geral, mas também internamente dentro das suas comunidades. "Meninas e meninos são tratados de forma diferente dentro das famílias e comunidades. As relações de género na comunidade são caracterizadas pela subordinação das mulheres. A lei tradicional dos ciganos não reconhece a igualdade entre os dois sexos. O número de filhos não é decidido pelas mulheres, depende antes da tradição e do grau de integração social. Para a maior parte da comunidade cigana a honra da família é a coisa mais importante, e a castidade e a pureza das mulheres é fundamental para essa honra. A opinião dos membros da comunidade é uma parte muito importante da vida dos ciganos. Para manter uma boa imagem pública, os pais ciganos exercem um controlo rigoroso sobre as meninas da família desde tenra idade. Existe uma necessidade de reconhecer e lutar contra o papel dos regimes patriarcais no seio da comunidade cigana, enquanto factor-chave da opressão das mulheres ciganas. Os membros da família não agem como indivíduos, mas sim como parte de um grupo familiar."

Sugestão de leitura
Advogada e cigana, um rosto do princípio da mudança - reportagem do Público

"Moral da história? “Estamos no meio do fogo cruzado”, repete de novo a mãe. “Para os não-ciganos somos ciganos e para os ciganos não somos bem ciganos.” “Às vezes até fico cansada. Queria ser ou não ser. Sinto-me dos dois lados. Às vezes, é difícil lidar com isso.”

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