A etnia cigana e o casamento precoce



O guião do vídeo que vimos no Workshop de Género foca algumas realidades, como o absentismo e o abandono escolar que, resulta em baixa escolarização, ou o casamento precoce, que acontece com frequência no seio da etnia cigana, muito penalizadoras do sexo feminino. Maria, a personagem, criança e jovem, cresce à sombra de uma cultura hegemónica, no seio de uma cultura identitária forte, patriarcal, onde é o homem que conforma o papel feminino na família, e na sociedade, e aonde qualquer transgressão é censurada fortemente pelo grupo. Maria, cresce, e além de ser mulher, pertence à minoria étnica. Faz parte de uma classe social desprivilegiada, dominada pela pobreza persistente, historicamente perseguida, e conotada com vícios vários, - ligação ao crime, ao tráfico de droga, ao parasitismo social, - habitualmente com baixa escolaridade, com larga percentagem de mães adolescentes, e quase consensualmente condenada pelo preconceito. Mercê de tudo isto, ser-lhe á difícil, quando não impossível, ter oportunidades de participação cívica, económica e social, baseadas numa igualdade substantiva e não apenas formal. É normal que os sonhos lhe pareçam impossíveis de concretizar.

Como é do geral conhecimento, a idade para casar tem variado ao longo do tempo. Sem recuar mais, na regulação da idade do casamento em Portugal, o Código Seabra proibia o casamento aos menores de 21 anos, enquanto não obtivessem o consentimento dos seus pais, ou daqueles que os representam, considerando nulo o casamento de menores de 14 anos, sendo do sexo masculino, e de 12, sendo do feminino. A vizinha Espanha era o país Europeu com a idade mais baixa para casamento até 2015: rapazes e raparigas podiam casar-se a partir dos 14, desde que obtivessem para tal autorização de um juiz. A idade mínima foi alterada para os 16 anos.

Como já referi, existe um caminho: a mudança. A etnia tem ser levada a reavaliar e repensar o valor da educação das crianças e jovens, por um lado; e, por outro, a recuar na intransigente recusa de ceder no “costume” dos casamentos precoces que é, no mínimo, responsável por roubar a rapazes e  raparigas possibilidades de educação e perspectivas de futuro numa sociedade em rápida mudança, e responsável, sem dúvida, por gravidezes na adolescência, que constituem um risco significativo para a jovem mãe e o feto. Li que a idade média de matrimónio subiu entre os ciganos portugueses  e que o movimento evangélico - que tem vindo a seduzir os ciganos -  tem feito um esforço para ajudar as pessoas a tomarem consciência de que não podem unir crianças como é tradição. Mas de tempos a tempos surgem notícias como esta: "A Polícia Judiciária de Aveiro anunciou esta quinta-feira ter constituído como arguidos dois casais, com idades entre os 35 e 38 anos, residentes em Albergaria-a-Velha, num processo relacionado com um "casamento cigano" entre dois menores." Sim, ela com 13 anos de idade e ele com 15, viviam maritalmente, em condições análogas às dos cônjuges. Os jovens contraíram matrimónio com o consentimento prévio dos pais de ambos, e viviam na habitação da família do rapaz.

Há quem defenda que não nos devíamos preocupar, que isso é entrar pela sua esfera privada, que devemos respeitar as suas tradições. Discordo. Os ciganos são portugueses. A comunidade maioritária não está a tentar derrubar o “costume cigano” por preconceito, e antes em nome dos direitos adquiridos das crianças, que não possuem nem maturidade nem meios para reagir.

Da Antiguidade até à Idade Média, as crianças não existiam como grupo, eram vistas como adultos em tamanho pequeno. Na Idade Moderna, os jesuítas, entre outros, preocupados com a educação e a moral, começam a incutir na sociedade a ideia de que as crianças têm de ser preparadas para a vida. A escola passa a ser a garantia de que uma criança se preparava para a vida. Na Antiguidade romana a criança valia tanto como um escravo. Em termos jurídicos, não tinha na mão nem a sua vida nem o seu destino. No século XIX, com o contributo de variadas ciências como a pedagogia, a psicologia e a medicina infantil, assiste-se a uma definitiva separação das crianças como grupo relativamente aos adultos. Assim, gerou-se uma nova consciência colectiva acerca da criança e do seu universo, da necessidade de protecção da criança e do valor da infância. No século XX aparecem normas que visam proteger e desenvolver a criança: a educação escolar é assegurada pelo Estado e passa a ser entendimento comum que todas as crianças independentemente da sua origem social ou da sua crença religiosa devem estudar. Começa a considerar-se que é preciso investir na infância, que as crianças são o futuro.

O entendimento legislativo europeu é que o casamento forçado - que a etnia diz não ocorrer - e/ou precoce, é crime e um abuso dos direitos humanos, uma forma de violência, incluindo violência sexual, e, se a vítima tiver menos de 18 anos, um abuso de crianças. (Em Portugal, permite-se o casamento aos 16 anos, com o consentimento dos pais.) A nível nacional, a Comissão de proteção de jovens e crianças em risco (CNPCJR) define que “Criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos de lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo’’ (Art.1º da Convenção dos Direitos da Criança).

Podemos e devemos respeitar a cultura cigana mas não devemos, nem podemos, pactuar com crimes. A etnia é maioritariamente portuguesa. Todos os portugueses têm direitos e deveres. Dois destes são o dever de respeitar o direito à educação das crianças e à sua auto-determinação sexual, embora outros também possam ser afectados por esta tradição enraizada, por exemplo, o direito à saúde. Parece evidente que entre a prática de casamentos infantis, precoces, ou combinados, acaba por levar à manutenção do ciclo de pobreza que a saída do sistema de ensino formal fortemente condiciona. A prática do casamento precoce também afecta os rapazes, mas reflecte especialmente a desigualdade de género, porque no seio da etnia a construção de toda a identidade feminina se prende quase exclusivamente com a maternidade e com o casamento, que acaba por determinar a fraca escolarização do sexo feminino.

Se as medidas jurídicas não chegam para prevenir e combater a discriminação contra as crianças e jovens mulheres, há que procurar outros caminhos, outras medidas de natureza diferente coadjuvantes da sua finalidade. Sem dúvida que é premente a necessidade de aumentar o nível de conhecimento da comunidade cigana, homens e  mulheres ciganas sobre os seus direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados na legislação, pois só assim poderá ser desconstruindo o seu direito consuetudinário, o seu "costume", as tradições e práticas nocivas. Os casamentos precoces e combinados,  não são um exclusivo da tradição cigana, existem também noutras culturas, por exemplo, na Tailândia, no Zimbabwe, na Índia. Neste último país, onde as filhas representam um enorme encargo para os pais, o casamento com um "guardião" é fomentado pela extrema pobreza e  encarado como uma forma de sobrevivência. A Índia tem lutado contra esta situação com emissão de legislação aplicável a registo de casamentos; a esta escapavam os casos  em que as uniões eram de mera co-habitação, com recurso a simples cerimónia, sem documentação legal. A partir de 2013 o supremo tribunal indiano declarou que relações sexuais de homem com menor são equiparadas a violação, o que permitiu enquadrar/dissuadir também estes casos.

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