A arte perdida da conversa e a pirâmide do desacordo




"If moving up the disagreement hierarchy makes people less mean, that will make most of them happier."

Paul Graham, e o autor da pirâmide do desacordo, aqui. Foi publicada num ensaio divulgado em 2008, How to disagree,  onde define sua “hierarquia da discordância”, um guia simples para analisar e melhorar argumentos em discussões. A grande facilidade da interacção virtual e o distanciamento envolvido promovem a fraca qualidade da discussão. que não acontece na vida real pois sofreríamos consequências ao nível do nosso círculo de conhecidos, amigos e colegas, se conduzíssemos as nossas conversas como o fazemos online. Esta irresponsabilidade resulta na manifesta pobreza intelectual de muitas discussões virtuais e na criação de uma ambiente de combate que repercute ondas de intolerância e mal-estar por toda a internet, contribuindo para que as pessoas se sintam infelizes nessas interacções. 

O silêncio é a minha maior tentação. As palavras, esse vício ocidental, estão gastas, envelhecidas, envilecidas. Fatigam, exasperam. E mentem, separam, ferem. Também apaziguam, é certo, mas é tão raro! Por cada palavra que chega até nós, ainda quente das entranhas do ser, quanta baba nos escorre em cima a fingir de música suprema! A plenitude do silêncio só os orientais a conhecem.
Eugénio de Andrade

Já estive em diversas redes e troquei-as por outras, pela novidade ou pelo cansaço, ou nem sei porquê. Penso que mais tarde ou mais cedo também deixarei o Facebook, que já frequento muito menos, não exactamente pelo cansaço da rede em si, ou porque a "realidade é que é a única que é real", ou porque me incomodem os seus TOS e critérios censórios, mesmo incomodando, ou porque tenha outras que considere mais interessantes, e até tenho, ou porque tenho vários blogues, hoje em dormência, mas prontos para acolher as minhas deambulações. O que se passa é que, não raras vezes,  abandono a rede bastante irritada e não vejo qualquer vantagem nisso.

Sinto que o Facebook é uma coisa onde perco mais tempo do que ganho. Certo que é lá que estão os textos tão admiráveis como pouco frequentes de duas ou três pessoas, as fotografias de outras tantas e o contacto com mais meia dúzia que não param noutro lugar, e que me vão mimando com postagens bem humoradas, os seus Likes e achegas. Mas o que sobeja e me provoca todos os dias, são argumentações sem nexo, bastos comentários canalhas e sem escrúpulos de gente que eu espero seja apenas irreflectida ou inconsciente, embora desconfie sejam exactamente o que aparentam ser: pessoas que não sabem conversar, ignorantes que nunca aprenderam a bem discordar, ciber-analfabetos que nunca ouviram falar de etiqueta virtual! Se um dia destes começarem a notar em mim sinais desta doença, cada vez mais comum, peço encarecidamente que me alertem quanto antes para que eu possa procurar tratamento: impor-se-á o silêncio forçado. Se por vezes alguém cria uma grande impressão por ter dito alguma coisa, outras, atinge-se idêntico resultado ficando calado". A frase não é minha, é do Dalai Lama. Quem sabe não terei então sido também contagiada pelo mal das redes, a mania de que "eu tenho direito à minha opinião e de dar a minha opinião",  e de a dar da pior forma de que sou capaz, isto é,  transformando cada conversa numa batalha a vencer a todo o custo, como se estar no Facebook fosse um campeonato, não raramente insultando, provocando, atacando qual cão raivoso.

Na vida real, bem cedo aprendemos à nossa custa que não saber concordar e discordar tem consequências. Tentamos comunicar e compreender o melhor possível. Já no Facebook toda a sabedoria fica à porta do Login. É um paradoxo. As pessoas estão nas redes sociais para se encontrarem. Encontram-se mas depois não conseguem manter uma conversa sem acabarem, muitas vezes, irritadas e a irritarem os outros. Então passam o tempo a desamigar-se e a excluir-se por dá cá aquela palha. Não acontece uma nem duas vezes, e, felizmente, não são amizades das minhas, raras vezes se passa comigo, até hoje devo ter bloqueado duas pessoas apenas, em mais de 10 anos no Facebook. Mas não raro leio comentários em perfis de amigos e assim acabo confrontada com essa tal imbecilidade desastrada, ou uma qualquer coisa que ainda não foi talvez catalogada, mas de que certamente muitos se orgulham. Até há quem faça uma espécie de contabilidade semanal: "Hoje já fui bloqueado por 3 pessoas; hoje 2 pessoas desamigaram-me, mas até ver ainda não me bloquearam."

Quando um assunto é pacífico não há grande coisa a dizer. Quando é polémico, surge a discordância, uma coisa normal, mas a esta vem coladinha a discórdia e a irritação crescente. Rapidamente se passa ao insulto. Porque não podem as pessoas discordar melhor? Seria tão mais benéfico para todos! Aprendamos alguma coisa com a pirâmide de Graham, uma forma de classificação de críticas e argumentos em sete níveis, do mais baixo e irracional ao mais alto e consistente. Da base para o topo, melhora a qualidade do desacordo manifestado. A base larga explica que tipo de desacordo é mais frequente, a estreita, o mais raro. A pirâmide de Graham é uma forma de classificar as formas de desacordo.

Olhemos o gráfico. Ela começa na zona rosa, que é a zona do insulto fácil, do ataque que vemos com tanta frequência online, umas vezes mais simples, outras elaborado. Em ambos os casos, observado o seu conteúdo útil, ele é inexistente. Há manifesto desrespeito pelo outro, o vocabulário pode ser variado, atacam-se as característica se os comportamentos do autor da opinião/comentário, no final o que importa é que não se visa o argumento, o seu mérito, apenas o sujeito. Ex:

És um perfeito idiota!

Na zona seguinte, a zona laranja do gráfico, Ad hominem, são atacadas a isenção ou credibilidade, a autoridade  de quem escreve alguma coisa, mas não se usa um insulto. Neste tipo de discordância não há refutação do argumento do autor. Desvia-se a atenção da sua ideia de uma forma  que pouco ou nada pode interessar quanto à qualidade do ponto de vista.  Atacar com o ad hominem  não demonstra o erro e nem serve para refutá-lo, quando o que deve ser apurado é se o autor está ou não correcto. Ex:

O aquecimento global é falso, pois os cientistas estão a receber fundos de ambientalistas contrários ao progresso.

Na zona amarela, trata-se da resposta ao tom, ao estilo do texto, à gramática, à ortografia, isto é critica-se o tom da escrita e não o argumento que foi escrito, embora o autor seja deixado em paz.  O tom de uma peça escrita é algo cheio de subjectividade. Por exemplo, para uns o que é irónico, não é  para outros. Focar o desacordo no tom não é dizer grande coisa sobre o que se não concorda num assunto. Devemos ir ao argumento do autor, ao conteúdo, e procurar aí a razão para o nosso desacordo, não na forma. É esse o foco que devemos ter. Ex:

Não posso concordar com uma ideia escrita de forma tão pretensiosa.

Na zona turquesa, temos o plano da contradição, onde alguém invoca uma ideia contrária à do texto, mas sem aportar grande evidência. Neste tipo de desacordo, apenas se adianta uma alternativa, por regra afirma-se o oposto, contradiz-se, portanto, o que foi afirmado. mas sem se fornecer um dado evidente. Ainda não se vislumbra prova de nada. O debate permanece pobre. Ex:

A autora diz que Portugal é racista, mas todos sabemos que não é verdade.

Na zona azul, temos a utilização do contra-argumento. É apresentada uma contradição, mas com suporte em uma evidência. Aqui já surge uma possibilidade de prova. É visado o argumento da proposição original,  e a isso juntam-se  argumentos sólidos, racionalmente sustentados. Se for dirigido ao argumento principal utilizado pelo autor, o desacordo poderá convencer. Por exemplo, o contra-argumento não permite avaliar da qualidade das thsirts vendidas na feira. Apenas que no Bangladesh existe quem faça boas tshirts. Ex:

Ela disse que as tshirts vendidas na feira são feitas no Bangladesh, sem qualidade. Mas eu estive lá o ano passado, falei com um empresário e até trouxe de lá esta camisola que trago vestida, bem boa.

Na zona lilás, temos a refutação do erro em determinado trecho, uma parte relevante da argumentação do autor. Na refutação recorre-se a evidência sólida, como a citação, para discordar de um ponto encontrado na argumentação do outro. Mas esse ponto refutado não é central ao argumento defendido pelo autor. O que sucede? A refutação não chega para derrubar o raciocínio na sua totalidade.

Na zona de topo, a zona, cinza, temos a refutação do ponto central . Esta tem como alvo o ponto central da ideia defendida pelo autor original. Uma vez refutado, toda a argumentação precisa ser abandonada ou revista. Quais são os requisitos desejáveis a uma boa refutação?

- deve visar o conteúdo da ideia original e não o seu autor;
- deve identificar correctamente os argumentos apresentados;
- deve focar-se nos pontos centrais;
- deve apresentar evidências sólidas;
- deve apresentar referências das citações apresentadas.

Em suma, utilizar este gráfico, para quê?

- é um critério para separar bons e maus argumentos
- permite evitar os argumentos que não aportam nada à discussão e valorizar os que tenham mérito
- ajuda a nortear a forma como discordamos de algo
- ajuda a promover discussões mais pacíficas e ricas intelectualmente
- o seu autor diz que nos pode tornar pessoas mais felizes😊 

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