O livro que Maria Schneider devia ter escrito


Maria, em entrevista, 1983
O último tango em Paris, o filme maldito, que muitos reduzem a sexo depravado, não é um filme sobre sexo. Não é um filme pornográfico, embora possa ser considerado obsceno. É muito mais sobre o desespero de Paul, personagem interpretada por Marlon Brando, cuja mulher acabara de se suicidar. Há muito sexo num apartamento, filmado pela perspectiva masculina, é o homem que tem o poder, mas as cenas de sexo estão ali para nos revelar quem é Paul. Não é um fim em si mesmo ou o filme seria pornografia. São inúmeros os filmes que, através do sexo, nos desvendam personagens consumidas por angústias diversas. Este atreveu-se a ir mais longe. Visualisado hoje nem parece assim tão escandaloso e inovador, e permanecem apreciáveis a grande interpretação de Brando, a audaciosa Schneider, a cinematografia, a banda sonora e a mão de Bertolucci na realização.

Entendo que não é pelo seu olhar masculino que temos de demolir o filme, isto é, não é por não haver uma relação de equilíbrio entre personagem masculina e feminina que devemos automaticamente considerá-lo um filme humilhante para as mulheres. A história é essa e essas histórias existem, na vida real e nos filmes. Existem, felizmente, nos filmes, para nos fazer pensar, inquietar, questionar. Não devemos condenar nem quem as filma nem quem lhes dá corpo porque ousaram filmar temas ingratos. Inclusivamente, Jeanne pode a muitas mulheres - e porque não homens? -  não parecer inteiramente realista: que mulher passa três dias com um desconhecido, angustiado e problemático, estando praticamente noiva? Que mulher resolve a situação de se livrar do incómodo amante com um tiro certeiro?

O que já é infamante no filme, e passível de condenação, é que o realizador tenha considerado que todos os meios justificam os fins para alcançar um resultado artístico. Isso é abuso de poder. O abuso de poder é capaz de se manifestar em toda a parte onde alguém reúna em si uma qualquer autoridade. Calha, aqui, ser no meio cinematográfico. Estamos no plano do faz de conta, da representação. Mas estes homens e mulheres não deixam de sê-lo apenas porque deixam a sua identidade à porta de um estúdio e se transvestem na pele de uma personagem. Para isso, preparam-se física e psicológicamente. É o seu método. É o que fazem para qualquer cena, o seu trabalho, e, como tantos, não pode ser, na maioria das vezes, espontâneo, mero improviso. 

Bertolucci retirou a Maria a possibilidade de se preparar para uma cena complexa. Muitos anos mais tarde ele admitiria isso mesmo. Ela era uma jovem e praticamente inexperiente. Sentiu enorme desconforto perante o que lhe foi sugerido em cima do joelho, no momento da rodagem da cena, e não conseguiu opôr-se por ingenuidade, ignorância ou porque se sentiu coagida pela circunstância. Infelizmente as pessoas, hoje, preferem desculpar a planeada artimanha de Bertolucci na sua busca por uma reacção espontânea da actriz, - o que não se percebe de todo, já que em cinema um realizador pode repetir o take até à exaustão, na sua busca de perfeição, ou seja, ele tinha alternativa; - do que sequer compreender as queixas de Maria, invocando toda a espécie de argumentos, dos mais ignorantes aos mais rebuscadamente intelectuais, mas que apenas demonstram uma total falta de empatia por alguém que foi tratada de forma injusta, levada, à má-fé a desempenhar uma cena que a repugnou, sem poder nem preparar-se nem escudar-se psicologicamente para ela. Infelizmente, num filme repleto de sexo, era uma cena de teor sexual e por isso houve abuso sexual. Não se tratava de uma cena de homicídio, caso em que, quem sabe, Maria talvez pudesse ter sido apunhalada por Brando na genial busca de Bertolucci pela verdade em cena, caso em que teria havido somente abuso da sua integridade física.

Para aqueles que dizem que o filme estava repleto de nudez e outras cenas que não lhe causaram repulsa, isso apenas demonstra a diferença entre o estar e o não estar preparado para elas. Além do mais, se ela estava confortável com a nudez e a exibição do seu corpo, ou a linguagem crua, ou cenas incomuns, tal não significa que estivesse disposta a tudo sem reservas. Para os que dizem que a manteiga era apenas um detalhe sem importância, sugiro que façam o exercício de a retirar do contexto e me digam se a cena permanece igual. O que se seguiu à estreia do filme comprova a apreensão de Maria naquele momento: a manteiga tornar-se-ia a bandeira do filme e esta cena de sexo uma das mais célebres, senão a mais célebre cena de sexo do cinema. Em virtude do detalhe foi que a insultaram na rua, em restaurantes e a consideraram uma depravada, continuando a tratá-la na vida real como se fora Jeanne, a personagem, quando, afinal, Schneider não era assim tão liberal.

O realizador nunca foi capaz de olhar a "cena da manteiga" sem ver outra coisa que o êxito do seu processo criativo. É que, na realidade, a reacção de Maria Schneider foi primorosa: o nosso horror perante a cena é a medida da genialidade de Maria. Só que a humilhação sentida não era encenada, era real. Mas como pode a nossa admiração pelo Bertolucci de O conformista não ceder à estupefacção depois de sabermos que, para nos oferecer tamanha autenticidade, ela se sentiu "um pouco violada" quer por Brando, quer por Bertolucci? Nenhum cinéfilo que ame verdadeiramente o cinema poderá alguma vez concordar com a conduta indigna do realizador, que demonstrou total falta de escrúpulos, negando à actriz o seu direito a preparar-se e tratando a mulher jovem que ela era com total desprezo. Eis o "método Bertolucci" para o sucesso. Mal estariam os actores e as actrizes se todos pensassem e agissem tão egoisticamente. 

De igual modo, causa consternação assistir a esses videos onde um realizador que admiramos explica que tudo estava escrito no guião (leia-se a cena de violação) menos o detalhe da manteiga, ou justifica, como se todo o público do seu cinema fosse idiota, que foi tudo simulado e que não houve abuso algum. E, por fim, ao ouvi-lo admitir o seu remorso patético, a sua culpa mas não o seu arrependimento, após a morte da actriz, temos de concluir que, afinal, O último tango em Paris, que há muito sabíamos ter sido duro para Schneider e Brando parece ter transformado todos os seus intervenientes em vítimas, umas em maior, outras em menor grau.

Capa do livro

O livro lançado pela editora francesa Grasset, em Agosto passado,Tu t'appelais Maria Schneider, escrito por Vanessa Schneider, prima da actriz Maria Shneider, que contracenou com Marlon Brando no filme O último tango em Paris, está disponível para compra online na Wook. O seu objectivo é recuperar um pouco da imagem perdida de Maria Schneider.

A autora explica que, muitos anos após a rodagem, Maria vivia ainda inquietada com a herança deixada pelo seu papel no filme, O último tango em Paris. A imagem que perdurou dela junto do público foi a representada no filme, uma associada a humilhação e violência. Maria queria deixar algo que contradissesse isso, abordou a prima, jornalista política do Le Monde, para escreverem um livro. Ter-lhe-á pedido quinze anos antes da edição que "lhe emprestasse a caneta" para explicar sobre a mulher e a actriz que ela tinha sido, assinaram um contrato e tudo o mais, mas a dado ponto Maria não foi capaz de avançar pois a memória era ainda dolorosa. Não conseguindo fazer a paz com o passado, e tendo falecido prematuramente, restou à prima escrever sózinha este livro que diz ser uma evocação, não uma biografia nem a verdade sobre Maria Schneider. É um livro híbrido onde a autora escreve sobre ambas, aliás, dirige-se a ela também, dizendo-lhe coisas que já não lhe pode dizer. Relata o que partilharam, a influência que ela teve na sua vida de criança e na sua construção como mulher. A dado ponto diz que é um romance familiar, já que Maria foi viver com os pais dela, era criança quando a prima rodou o filme. Maria era a filha da irmã mais velha do pai de Vanessa e esta recorda-se dividida entre a admiração pela prima e a vergonha: uma mulher de temperamento forte, inteligente, bela, carismática, uma figura positiva mas com uma faceta negra, quando, o que ela queria, como todas as crianças, era uma "família normal". Talvez por si, e não apenas pela prima, seja que Vanessa escreveu. Ela até diz que escrevemos para cicatrizar as coisas, com palavras, mas que não tem a certeza se isso tem efeito terapêutico ou não.

O livro é também sobre os anos 70, da revolução sexual, as figuras que povoaram a vida de Maria, os seus "pais cinematográficos", Alain Delon e Brigitte Bardot, e outras personagens que o grande público desconhece. Vanessa Schneider baseou-se também, muito, na imprensa da época para o escrever. Diz que o livro demorou a ser concluido. Facto que me desconcerta, até porque é jornalista, é que, classifica o filme como sendo retrógrado na forma como retrata a liberdade sexual, mas nunca ousou visionar o filme em respeito pela amargura de Maria que tinha pedido que não se falasse do filme na família, tornado assunto tabu, e, mais tarde, que não se pronunciasse sequer o título do mesmo nas suas exéquias, já que o filme tinha destruido uma parte dela. Na entrevista de divulgação do livro, a autora refere a rodagem extremamente violenta, com uma cena em particular que não foi planeada no guião, mas não viu as imagens, não viu O último tango em Paris. Não teria Maria preferido que, em nome da verdade, a prima visionasse o filme para escrever sobre isso com conhecimento de causa?

Digamos que, depois de ouvir Vanessa, não fiquei com grande vontade de ler o seu livro: eu teria gostado de ler o livro de Maria, não o livro de Vanessa, sobre ela e Maria. De certa forma, as declarações de Maria Schneider, muitas, que estão espalhadas na internet em entrevistas, as de Bernardo Bertolucci, a biografia de Brando, as opiniões de artistas que a conheceram, como Warren Beatty, e algumas críticas da época, quer positivas e negativas, um documentário, enfim,  todo esse tipo de material me parece de mais interessante leitura, opiniões e juizos mais autênticos da experiência de Schneider, mesmo pela sua proximidade no tempo. Questiono-me sobre se o contributo deste livro irá acrescentar muito mais e lastimo que Maria Schneider não tivesse orientado a sua escrita e transmitir-nos a sua verdade. Um pormenor que me desagrada sobremaneira é que Vanessa tenha colocado a sua fotografia na capa do livro. Afinal, em que ficamos? Que mulher é que precisa de ter a sua imagem reconstruida? Ela ou Maria? Quem é que, primeiro, quis este livro escrito? Mais uma vez, parece que nem a família lhe está a dar o tratamento que merecia. Ocorre exclamar, como o Bertolucci, "culpado mas não arrependido," dos últimos anos:"Pobre Maria!"
Capa do DVD do documentário de Serge July
Maria era menor de idade - a maioridade estava fixada nos 21 anos - na época da rodagem de um filme repleto de violência sexual. Possivelmente porque se vivia a época da grande revolução sexual e da exaltação dessa liberdade, esse pormenor não incomodou ninguém. Bertolucci terá dito que a miúda não tinha maturidade para perceber o que estava a acontecer. Não andava longe da verdade. É ela mesma que afirma isso ao Libération: " Eu senti-me violentada. Sim, minhas lágrimas eram verdade. Eu era jovem, inocente, não entendia o que estava fazendo. Hoje eu recusaria. Toda essa confusão em torno de mim me confundiu." Maria é ultrapassada por um papel difícil, cuja dimensão não captou totalmente, um que lhe conferiu notoriedade imediata, que a impulsiona para o estrelato mas que também a deixa destruida emocionalmente. Ser reduzia ao papel de mulher objecto parece não ser coisa de mais para o público, muitas actrizes antes e muitas depois, passariam pelo mesmo, mas até um sex-symbol como Marylin Monroe lutou toda a vida por papéis mais consistentes. O que para mim sempre foi extraordinário nesta história, foi, num primeiro momento, observar a forma audaz como Maria agarrou este papel e, depois, a constatação de que Maria Schneider se revoltou contra esta sentença que a indústria lhe quis impôr, com firmeza e sem excessos, quando soube o que queria.

Mas a sua rebeldia, primeiro, e a sua denúncia, depois, não foram bem recebidas, nem no passado, nem actualmente, já que, para muitos ela continua a ser vista como um um ser de segunda categoria. Na realidade, para a maioria das pessoas as actrizes não passam de prostitutas ao serviço dos caprichos dos realizadores, trabalhadoras e mulheres sem direitos nem grande inteligência. É como se actrizes e prostitutas estivessem uns quantos pontos abaixo das restantes mulheres. Gostamos que tirem a roupa sem preconceitos, gostamos de gozar com o esplendor dos seus corpos, mas se se queixarem de maus tratos físicos ou psicológicos, não terão sido saber ser profissionais. De Maria Schneider alguém escreveu: "É um sex-symbol que não sabe o seu lugar". Foi na imprensa portuguesa da época mas não consegui localizar o link para comprovar a afirmação. No entanto, eis uma prova de falta de consideração comprovada em papel e tinta, na forma como a notícia da morte de Maria Schneider foi dada pelo jornal Libération, que, anos antes, tinha acolhido as suas declarações de actriz humilhada.

O então editor-chefe do Libération, Vincent Giret, depois de reconhecer que a foto selecionada, retirada do filme que lhe deu toda a fama e onde Maria aparece de despida, com a legenda - "Maria Schneider, a última dança" - provocara um debate aceso na redacção, justificou-se assim: "Ainda é o filme pelo qual permanece, com sua aura de provocação. Também achamos essa foto muito bonita e feliz, e isso faz a diferença numa notícia tão sombria." Ao lado, a escolha para assinalar o óbito de Marlon Brando: "Um actor chamado desejo".
Obituário de Maria Schneider(2011) e Marlon Brando(2004), no Libéraion
Vanessa Schneider diz-se satisfeita por constatar que o público começa a repôr esta história no seu lugar descobrindo as convicções e o combate de Maria Schneider: "Ela foi vítima de um diretor sem escrúpulos, mas parte do público também se voltou contra ela associando-a a um objecto sexual. Ela sofreu enormemente e em toda a sua vida lutou constantemente contra essa imagem". Questionada sobre o #MeToo, Vanessa afirma que este movimento reúne casos muito diferentes, que variam de estupro a assédio e comportamento inadequado. Por ser baseado em alegações à opinião pública é bastante problemático, mas os benefícios são superiores porque a consciência era necessária. No cinema, como em outros lugares, a violência contra as mulheres é insuportável e deve ser denunciada.

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