Maria Schneider, Brando, Bertolucci, O Último Tango em Paris e o abuso: os factos

Filoump [CC BY-SA 3.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)], from Wikimedia Commons

Como cinéfila, vi a maioria dos filmes de Bernardo Bertolucci, e o talento dele como realizador nunca foi por mim questionado. O meu filme favorito de Bertolucci é O conformista. Na minha óptica, quanto mais recentes menos interessantes se revelariam, mesmo se foi agraciado com um braçado de nomeações e Oscars pelo seu O último imperador. Desta forma, lamentei mais a morte do homem do que do artista, já que não esperava dele obras revolucionárias há muitos anos.

Desde o anúncio da sua morte, em Novembro, que a maioria dos comentários que li foram menos sobre preferências cinéfilas e o cinema que fez, do que sobre a polémica em torno da "cena da manteiga", protagonizada por Marlon Brando e Maria Schneider, no filme O último tango em Paris, rodado em 1972. Os mais radicais que li referiam que Bertolucci não passava de um estuprador e que não mercecia qualquer homenagem, nem na morte, que os seus filmes deviam ser destruidos, ou então que Maria Schneider tinha sido uma farsolas, uma hipócrita, uma falsa vítima que resolveu fazer de Bertolucci o bode espiatório de todos os seus problemas.

Desde logo se adivinha em muitos comentários a ignorância das pessoas sobre os factos que estão a comentar pois em muitas afirmações torna-se evidente que nunca viram o filme ou sequer a cena em questão, ou mesmo que nunca leram as afirmações feitas por Maria Schneider, velhas de pelo menos 11 anos, ou que tão pouco leram/escutaram o que Bertolucci disse a propósito do incidente, após a morte da actriz, em 2011, e em várias ocasiões. Muitos parecem ter-se ficado apenas pelos tweets dos artistas americanos que reagiram à redescoberta do facto em 2016, outros parecem ter lido peças um pouco mais extensas, agora publicadas, sem as ter - ou querer ter - entendido. E então escrevem coisas como: "Expliquem-me por que é que depois desse filme que a tornou famosa e melhorou seu estilo de vida, e que poderia ter recusado, ainda aceitou vários papéis em filmes parecidos ?" Ou "era só ela mandar parar a cena no momento em que se sentiu desconfortável, ou então não autorizar que a sua imagem degradante fosse divulgada. Deve ter ganhado um bom dinheiro para fazer a personagem!" Ou: "Tanto choradinho, se foi assim tão humilhante, porque fez a cena? Bastava recusar. Todas querem ser famosas e ricas, depois inventam histórias." E ainda: "Bastava sair do estúdio e procurar um advogado e processar todos, inclusivamente proibir a exibição da cena. Era Hollywood, o mundo da ilusão. Toda esta conversa de estupro foi apenas um truque promocional, que aliás deu resultado, afinal estamos a debater isso até agora." E mais: " Aquilo é um estúdio de cinema, cheio de gente, bastava um grito de socorro. Marlon não seria louco para cometer um crime diante de câmeras. " E esta: "Essa putinha sabia que o preço seria esse, até hoje isso acontece." Só mais esta: "Tanto choradinho. É só um filme. Na hora de ganhar dinheiro ninguém reclama de assédio, quando já são famosas é que vêm reclamar. Mais: "Uma hipócrita, uma manipuladora, uma cínica." e" Num filme com tanta cena de sexo ficou traumatizada pela manteiga?" ou "Como é que isso a traumatizou em cinco minutos quando há mulheres que aturam violência a vida toda?" E para acabar: " Se o filme não tivesse recebido tantas críticas negativas na época e se a actuação dela tivesse tido muitos elogios, ela não se tinha sentido agredida, mas a repercussão foi negativa numa época em que cenas de nudez eram poucas nos filmes." ou "Mas se ela ficou amiga de Brando é porque gostou, ora."

Vi o filme há uma dezena de anos e no seguimento do meu interesse fiz as habituais buscas por mais informação e foi assim que li, algures, pela primeira vez o sucedido. Pode ter sido a entrevista de Linda Das ou a Wikipedia. Nessa entrevista Maria afirmou que tinha feito 50 filmes ao longo da sua carreira, mas que todos apenas lhe perguntavam sobre um filme com 35 anos: O último tango em Paris. "Marlon era tímido com a sua nudez, mas eu achava a nudez uma coisa bonita, isso não era um problema. Todavia, depois da rodagem nunca mais Maria se despiu num filme, embora lhe tivessem oferecido muitos papéis assim: "Fiquei triste por ser reduzia a um sex-symbol. Eu queria ser reconhecida como uma actriz."- disse. "Agora consigo olhar o filme e gostar do meu trabalho nele". Na realidade, ofereceram-lhe, a seguir ao Tango, poucos bons papéis, excepção para The passenger, com Jack Nicholson, uma filme que na altura teve pouca circulação. Recusou um papel em Calígula, por entender que era pornográfico, por exemplo.

Bertolluci, na realidade, manipulou-os a ambos, Marlon Brando também se sentiu afectado pela rodagem, aqui Maria faz o paralelo: " Eu era jovem de mais para saber melhor, Marlon, mais tarde, admitiu sentir-se violado e manipulado, imaginem, eu, Marlon tinha 48 anos." A "cena da manteiga", como ficou conhecida, tornou-a instantaneamente famosa, e ao filme. É a propósito desta que Maria desabafa: "A cena da manteiga não estava no guião original. Foi Marlon quem teve a ideia." Os dois homens só lhe disseram quando tiveram de filmar e ela ficou furiosa: "Devia ter ligado ao meu agente William Morris ou chamado o meu advogado ao set, mas, ao tempo eu não sabia isso." - diz Maria. "Não sabia que podíamos recusar uma coisa que não estava no guião. " Marlon disse-lhe que não se preocupasse, que era só um filme. Mas enquanto filmavam a cena ela chorou lágrimas verdadeiras. "Senti-me humilhada, e, para ser honesta, senti-me um pouco violada, quer por Marlon quer por Bertolucci". Maria esperava ter sido consolada por Marlon depois da cena, ou receber um pedido de desculpas, mas tal não aconteceu, nem por Bertolucci, que só muitos anos após haveria de admitir sentir culpa pelo sucedido mas não estar arrependido. Muitos acreditaram que as cenas de sexo eram reais e nesta entrevista Maria reafirma que foram simuladas. E que ficou amiga de Marlon até ao fim.

Maria, que não percebeu inteiramente os contornos do guião, chegou a pensar não aceitar o papel e rodar antes um outro filme, com Alain Delon, mas o seu agente convenceu-a, porque iria contracenar com o grande actor do seu tempo: Marlon Brando. A fama mundial, tanto positiva como negativa, foi algo com que não conseguiu lidar e as drogas, que já consumia, tornaram-se o seu refúgio. Sofreu overdoses, tentou suicidar-se mas sobreviveu e encontrou um novo rumo. Reencontra Bertolucci em Tóquio em 1999, ignora-o, e assim faz até à morte, nunca lhe perdoando. Quanto à fortuna obtida com a rodagem do Tango, Maria ganhou pouco mais de 3,000 dólares, como estreante que era.

Maria tinha 19 anos, Marlon, tinha 48 anos. Também ele ficou perturbado ao participar no Último Tango em Paris. Numa entrevista Bertolucci afirma que não se falaram por longo tempo: "Quando no final do filme ele viu o filme, eu descobri que ele percebeu o que estávamos fazendo, que ele estava entregando muito de sua própria experiência. Ele ficou muito chateado comigo e eu disse-lhe: “Escute, você é um adulto. Mais velho que eu. Você não percebeu o que estava fazendo? "E ele não falou comigo por anos. Marlon esteve 15 anos sem falar a Bertolucci, que lhe telefonou em 1993, quando estava em Los Angeles. Noutra entrevista, Bertolucci afirma que uma amiga de Brando lhe disse que, ao fazer o filme, ele não teria percebido o quanto da sua verdade foi entregue para a câmera. Ele se sentiu enganado. Quando ele viu o filme, ele percebeu que ele foi muito mais longe do que ele pensava. Brando sentiu que Bertolucci lhe tinha roubado a sua humanidade. Mas Brando acabaria por perdoar ao realizador. E sobre Maria, Bertolucci afirma aqui que ela era selvagem, que falava à maluca sobre façanhas sexuais - dormi com 55 mulheres e 75 homens - quando o filme estreou em Nova Iorque. Mas que depois, passado um tempo, dizia em entrevistas que ele lhe tinha roubado a juventude. Bertolucci sente-se mal com esta afirmação: afinal ele tinha ido pesquisar a personalidade dela, como fazia com todos os actores que se posicionam em frente à sua câmera. Disse, desculpando-se:"Neste caso, a garota não estava madura o suficiente para entender o que estava a acontecer." Além disso, diz que em "1972 foi o começo do feminismo. Na Itália, tive uma espécie de julgamento feita por um grupo de feministas. Foi feito um artigo para uma revista. Havia um jornalista e quatro ou cinco líderes feministas, fazendo perguntas e me acusando de coisas. " Germaine Greer, feminista de segunda vaga, foi a sua advogada. Mais tarde, perante acusações de anti-feminismo, ele dizia que tinha sido apoiado por Greer e que, portanto, não podia ser anti-feminista.

Em entrevista à agência de notícias italiana ANSA quando Schneider morreu, Bertolucci disse: “A morte dela veio cedo demais, antes que eu pudesse abraçá-la carinhosamente, dizer-lhe que me sentia perto dela como no primeiro dia e pelo menos uma vez, dizer estava arrependido. O forte relacionamento criativo que tivemos durante as filmagens do ÚltimoTango foi envenenado com o passar do tempo. Maria acusou-me de ter roubado sua juventude e só agora me pergunto se não havia alguma verdade nisso. Na verdade, ela era muito jovem para sustentar o impacto com o sucesso imprevisível e brutal desse filme."

Subido em 2013, no YT, um video mostra Bertolucci em cadeira de rodas, envelhecido, a ser entrevistado. Tem esta legenda: No último sábado, 3 de Fevereiro, em College Tour, (um programa Holandês de TV) o homem que venceu 8 oscars com o The Last Emperor confessou ao público que ele havia colocado a actriz Maria Schneider contra sua vontade, a levar com manteiga de verdade por trás, no lendário filme Last Tango in Paris. Bertolucci afirma:

"Pobre Maria. Morreu há dois anos, penso. Eu fiquei muito triste. Depois do filme não nos víamos porque ela odiava-me. A cena da sequência da manteiga é uma ideia que tive com Marlon na manhã que antecedeu a filmagem. No guião estava que ele tinha de a violar. Estavamos a tomar o pequeno-almoço no chão do set e estava lá uma baguete e manteiga e nós olhamo-nos e soubemos o que queríamos. Fui, de certa forma horrível, com Maria, porque não lhe disse. Eu queria a sua reacção como uma uma mulher, não como uma actriz. Queria que ela se sentisse humilhada e gritasse: não, não. Ela odiava-me e ao Marlon porque não lhe dissemos este detalhe da maneiga usada como lubrificante. Sinto-me muito culpado por isso. Não me arrependo de ter filmado esta cena assim, sinto-me culpado mas não me arrependo. Por vezes nos filmes, para obter algo, temos de ser completamente livres. Não queria Maria que interpretasse a sua humilhação, a sua raiva, eu queria que ela sentisse, não que interpretasse a sua raiva e humilhação. Então ela odiou-me-me para a vida toda."

Bertolucci não fazia segredo da sua interpretação dos factos. Numa entevista no The Guardian, também em 2013, lemos: "Pobre Maria. Eu não tive a oportunidade de lhe pedir que me perdoasse. Ela era uma garota de 19 anos que, como os actores em Me and You, nunca havia actuado antes. Talvez, às vezes no filme, (Tango) eu não não lhe dissesse o que estava acontecendo porque eu sabia que a atuação dela seria melhor. Então, quando filmamos essa cena com Marlon [Brando] usando manteiga nela, eu decidi não lhe contar. Eu queria uma reação de frustração e raiva."

Noutra entrevista ao The Telegraph, ela afirma: "Não, eu não me sinto culpado, mas quando ela morreu, pensei, Deus, sinto muito por não poder pedir desculpas pelo que Marlon e eu fizemos com a cena e por decidirmos não lhe contar. A sua humilhação foi muito real, mas acho que o que realmente a ofendeu foi ela ter sentido não ter sido autorizada a preparar-se para a cena como actriz. Mas eu queria a reação dela como pessoa, não como actriz."

Mas foi a sua publicação no site El Mundo de Alycia que parece ter colocado o assunto na ribalta: "Abusaram psicologicamente e, quem sabe se também, fisicamente dela. Obviamente, este facto traumatizou a jovem actriz por toda a vida. Ela foi repudiada, ninguém acreditou na versão dos factos até que, após sua morte - quarenta anos após a gravação - o director confessou os actos perversos cometidos. Apesar dos anos que a entrevista tem, ela praticamente não teve impacto nas redes sociais ou na media. Apenas alguma menção em alguns artigos relacionados com filmes eróticos. No entanto, consideramos que, neste caso particular, esta classificação é errónea, pelo menos nesta cena, já que não podemos considerar que erotismo seja sinónimo de abuso de poder, engano e desprezo em relação a uma mulher. Nos perguntamos como é possível que um caso tão grave como este não tenha atingido a opinião pública ou sido denunciado. Infelizmente, é um exemplo claro de violência de género, ao qual as mulheres são submetidas diariamente, sem quaisquer consequências."

A partir desta publicação, o caso de Maria Schneider foi repescado pela opinião pública e em especial a partir do tweet exaltado de Jessica Chastein, actriz norte-americana, ganhou ainda maior atenção:

Print screen Twitter

No seguimento de muito debate nas redes sociais, Bertolucci faz um comunicado:

"Eu gostaria, pela última vez, de esclarecer um equívoco ridículo que continua a gerar reportagens sobre o Last Tango em Paris em todo o mundo. Há alguns anos, na Cinemathèque Francaise, alguém pediu detalhes sobre a famosa cena da manteiga. Expliquei, mas talvez não tenha sido claro, que decidi com Marlon Brando não informar Maria [Schneider] que usaríamos manteiga. Nós queríamos sua reação espontânea a esse uso incomum [da manteiga]. Isso é de onde o mal entendido nasceu. Alguém pensou, e pensa, que Maria não havia sido informada sobre a violência contra ela [na cena]. Isso é falso! Maria sabia tudo porque leu o guião, onde tudo foi descrito. O único elemento novo foi a ideia da manteiga."

Temos ainda a opinião do cinematógrafo, Vitorio Storaro: para ele tudo não passa de um escândalo ridículo, não teria acontecido nada de malicioso no set e a surpresa da cena era apenas a forma como Bertolucci trabalhava. Garante que Schneider estava encantada por trabalhar no filme. Eram uma equipa pequena e passaram um tempo maravilhoso juntos. Maria era um pouco snob, uma actriz francesa parecendo não querer dar importância a um grande actor americano e um grande director italiano. Mas depois até já chorava por aquela experiência ir acabar tão depressa. O que ele diz sobre a entrevista de Bertolucci:

"É algo que algum jornalista ignorante escreveu. Fiquei enojado com o que foi escrito, que não é verdade em nada. Eu acho que os jornalistas estão criando um problema que não é realmente um problema. Eu li que houve uma espécie de violência cometida contra ela, mas isso não é verdade. Isso definitivamente não é verdade. Isso é terrível. Eu estava lá. Nós estávamos fazendo um filme. Você não faz isso de verdade. Eu estava lá com duas câmeras e nada aconteceu ... Ninguém estava estuprando ninguém. Isso foi algo inventado por um jornalista.

...provavelmente Bernardo sentiu que talvez ele não se tivesse explicado completamente a Maria desde o começo e é por isso que ele se sentiu um pouco culpado e nada mais do que isso. O que Bernardo disse mais tarde foi que ele gostaria de se desculpar a Maria, só porque ele provavelmente não explicou no início o que foi discutido com Brando. Nada aconteceu durante a filmagem.

Existe a possibilidade de que Bernardo não tenha mencionado um detalhe específico para ela ... [Maria] sabia perfeitamente bem o que estava fazendo. Ela sabia muito bem o que estava acontecendo em todas as cenas. Ela era actriz e não tinha problemas com isso. Foi um trabalho de actuação, não outra coisa."

Questionado sobre a filmagem específica da cena da manteiga: "Eu só sei que Maria estava lá como em toda cena normal e sabia que estávamos fazendo uma cena de amor mesmo que fosse uma cena de filme bastante incomum ... Tudo estava escrito, mas todas as manhãs Bernardo adorava adicionar algo. Eles adicionaram algo com Brando em todas as cenas, mas isso era normal. Eles adoraram fazer isso. Nós conhecíamos o guião e sabíamos o que queríamos fazer, mas todas as manhãs chegavam com ideias diferentes, então discutia-se especificamente essa cena naquele momento."

Há que contrapôr outra opinião, a de Serge  July, no seu documentário Il était une fois... Le Dernier Tango à Paris, em cuja sinopse se lê: "Ao descobrir o pesadelo de Maria Schneider, aprendemos o que a levou a nunca mais ver Bertolucci e por que Marlon Brando considerou esse filme como uma violação de sua personalidade." De acordo com este documentário, a equipa de filmagem lembra-se de uma rodagem cansativa, uma experiência louca e dolorosa, da qual ninguém saiu ileso.
Print screen da cena da manteiga


Bernardo Bertolucci Interviewed by Scott Feinberg

Para terminar, uma entrevista de Bernardo Bertolucci por Scott Feinberg onde ele diz que Maria nunca o perdoou, e que Brando também ficou transtornado, e explica, com muita naturalidade, a sua tese da obtenção de uma reacção real por parte da mulher e não de uma encenada, de actriz, acrescentando ainda que é ridículo que alguém possa pensar que a cena de sodomia do Último tango em Paris é real, que isso seria o mesmo que num filme de acção alguém ser atingido por um tiro e morrer de verdade. Ao minuto 23: 31, se consegui perceber bem, Bernardo Bertolucci diz que se olharmos bem (a cena da manteiga) vemos Brando agarrar na manteiga e a metê-la nas jeans de Maria. O entrevistador diz-lhe que, após a estreia do filme, num momento ele estava a ser censurado por todos e no outro era o maior realizador do mundo e podia fazer tudo o que lhe apetecesse. Olhando para o print screen acima, fico com a impressão que ele sempre pode fazer tudo o que lhe apetecia. Deixo à vossa consideração.

Sugestão de leitura: O livro que Maria Schneider devia ter escrito


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